Tuesday, March 27, 2007

A ficção

A ficção seduz-me fortemente. Gosto de criação, mais do que de ficção. Gosto de me sentir embrenhada nos filmes, nos livros, nas peças de teatro, em quadros, esculturas, exposições, em músicas e no que elas significam. Mas há uma grande diferença entre ouvir e tocar, entre ler e escrever um livro, ou entre apreciar e esculpir. Há uma grande diferença entre gostarmos de uma coisa e sabermos sobre ela. A mesma diferença que existe entre arte em geral ou pintura no particular, no específico. Também há uma grande diferença entre vivermos e sabermos viver.

Gosto de crápulas do cinema, personagens execráveis. Adorei, por exemplo, o Hannibal Lecter e acho que nenhum actor faria aquela personagem com tanta arte como Sir Anthony Hopkins. Todavia, não me apetecia nada cruzar a minha vida e os meus caminhos com os daquele homem. Por isso, costumo dizer que mentiras, sacanices, torpezas e sadismos, só na ficção. Na vida real tenho pouca ou nenhuma curiosidade. Ou então quero espreitar e vir embora, do mesmo modo que se espreita sexo ao vivo num bar. Voyeurismo puro.

Tenho um grande descontentamento com a maldade. Parece-me sempre baixo ver um ser humano a pontapear outro, seja verbal seja fisicamente, ou até mesmo em pensamentos. Evidentemente, não sou uma inocente, há muitas pessoas cuja cabeça me apetecia esmagar como quem esmaga alhos no almofariz. A questão é: de que me serviria isso? Nem eu ficava melhor, nem a pessoa aprenderia lição nenhuma. Muitas vezes capitulamos da forma mais honesta que existe, que é a de desistir de colocar em ordem o que nunca esteve bem.

Temos de contar com diversos factores: a maldade é tão humana como a bondade e existiu sempre, desde os primórdios, na luta pela sobrevivência; ao longo dos séculos, e intemporalmente, há pessoas sem consciência, cuja função literal é arruinar o que são (mostrando apenas o que pensam que são ou o que gostariam de ser), e com isso arrastarem a multidão que puderem. Quando olho para Hitler vejo isto mesmo: é uma figura perversa, enraivecida, torpe. Projecta o que gostaria de ser: imortal. Mostra o que é: parvo. Arrasta uma multidão na mesma, que não o questiona. São massas amorfas de gente sem consistência interior. Só assim somos arrastados pelos outros: através da ficção, da mentira, da projecção, mas nunca da verdade. A verdade não arrasta nem convence do mesmo modo que a mentira. Não se socorre de nenhuma retórica específica. Mas a ficção tem uma retórica estudada ao pormenor. Como fazer política sem retórica? Não andamos por aí como Sócrates, a convencer os outros do que é o Bem e do que é a Verdade. Mas é pena…

Podíamos ser melhores pessoas se não nos deixássemos enganar tanto e de tantas maneiras estúpidas. A maior parte desses recursos submerge completamente o que somos. E só assim somos, para nós e para os outros. Ser arrogante, por exemplo, é uma estratégia de defesa que resulta bem: afasta as pessoas de nós, constrói um muro à nossa volta intransponível. Os outros ficam de fora. É como dizer «daqui não passas». Mas a arrogância tem no seu oposto uma função muito semelhante: não servirá a simpatia para nos protegermos também? Evidente que nem todos somos só uma coisa ou outra, mas há pessoas cuja preponderância de uma ou de outra característica nos deixam boquiabertos. E enganam, se não estivermos atentos, o mais comum dos mortais.

Há diversas coisas absolutamente ficcionais, mas nem todos dão por elas. Os narcisistas, por exemplo. Experimentem ir ao blogue do Cláudio Ramos e têm a surpresa da vossa vida: há dezenas de pessoas a apoiá-lo, a achá-lo fantástico e a chamá-lo de frontal, honesto, verdadeiro. Para o Cláudio Ramos, o mundo deveria girar em torno do seu umbigo, da sua cara, das suas palavras. Sou franca que ele até nem escreve mal, mas quando, e só quando, não fala dele próprio. Ao Cláudio Ramos eu daria o castigo de fazer trabalho voluntário com crianças cegas e surdas: sem ninguém para o ver ou ouvir, quem iria ele convencer que é o melhor do mundo? Que estratégias utilizaria? Teria certamente de sair da sua existência tosca, das revistas porcas que lê, dos comentários falsificados que faz e perceber, de uma vez por todas, que até os pais, irmãos, mulher (ou ex-mulher) e filha têm mais que fazer do que estar a ouvi-lo. Quem teve ideia de lhe dar voz na televisão, tempo de antena? De lhe dar atenção, trabalho? Não sei. Sei que lhe pagam para ele ser estúpido.

Há pessoas cuja existência se baseia em serem vermes nojentos. Pagam-lhes para serem os piores vermes. Uma vez a Maya (a tal taróloga-relações públicas) disse-lhe: “Ainda bem que as pessoas te odeiam, estás a fazer o teu papel“. Portanto, ele é pago para ser odiado, mas é narcisista e quer ser admirado, adulado, amado? Que confusão…Nem na adolescência eu vivi num armário assim tão cheio de cadáveres. Claro que o blogue dele se chama «Eu, Cláudio», como «Eu, Carolina». Aliás, o princípio da existência das duas personagens é o mesmo: quanto mais reles, mais atenção, quanto mais atenção, mais dinheiro. Ele e ela são especialistas no seu próprio umbigo. Mas ela ao menos sabe que ninguém gostaria de estar na sua pele, a ser ameaçada de morte, agora o Claudinho, esse acha que todos têm inveja dele e lhe devem alguma coisa. Amigos, vão para casa ler Dalai Lama, aprender que no universo somos só um pontinho, aprender, como diz aquela parábola oriental, que quando o macaco julga que chegou à lua está num dos dedos de Buda e ainda tem de enfrentar o deserto do mundo.

Mas todas estas personagens à parte, existe a vida do dia-a-dia, e a maior parte de nós corre o dia todo, sem tempo para ficções de maior. Porque temos emprego, casa para cuidar, filhos, cães para pôr a fazer xixi, uma cozinha para arrumar, livros para ler, tarefas inúmeras que sobrecarregam o nosso dia. Lemos a «Caras» e a «Lux» basicamente numa de divertimento com roupas, festas e declarações fantásticas de uma tiazorra qualquer que diz frases com expressões francesas pelo meio (mesmo à Eça), ou, como já aqui disse uma vez, de uma entrevista retiram e dão relevo a uma das frases mais medíocres e desinteressantes, como aquela da D. Isabel de Bragança «a minha casa tem correntes de ar». Como não acredito que a senhora seja estúpida (pelo menos não parece) creio que a entrevista devia falar de coisas mais importantes, como a educação dos filhos.

Todavia, a maior parte de nós não tem uma vida glamourosa, por isso criamos ficções muito diferentes. Criamos ficções pela expectativa, pelo sonho, pela projecção, pelo rótulo, também. Umas ficções ganham asas, outras não. Há inúmeras pessoas que conheço que poderiam perfeitamente concorrer com o Cláudio Ramos, a todos os níveis: ao nível da tal «honestidade», que basicamente consiste em falar do que não sabemos e sermos mal-educados, ao nível do «eu tenho as melhores coisas do mundo», ao nível de «eu sei tudo» ou «eu sou bom e todos me querem» (tipo Reginaldo Rossi). Temos de rir. Não há outra atitude. A megalomania gera loucura, muitas vezes disfarçada de um humanismo que não existe, não está lá. O Cláudio Ramos considera-se «boa pessoa». Como me disse a minha avó um dia: “ Sou boa pessoa, não minto, não roubo, não faço mal a ninguém “. O Cláudio diz exactamente o mesmo, enquanto disfere insultos contra quem aparece nas capas das revistas, porque não tem «motivos» para aparecer – portanto ele tem, certo?

Há pessoas que querem o impossível: serem só elas no mundo e fazer dos outros meros espectadores da sua existência divina. Muitas pessoas gerem o mundo à sua volta dando volta aos outros, sem dó nem piedade, e tratando mal quem não lhes lamba o rabo, desculpem a expressão rude. O que lhes dói mais é serem ignoradas, como diz a Lisa. Ser ignorado implica estar fora do palco, fora da ribalta, fora de jogo. Para essas pessoas, é como não existir, provoca solidão e pânico. Um narcisista sem público é como um parasita sem hospedeiro: um não existe sem o outro, porque um existe por causa do outro. Em suma, deixem de adular o Cláudio Ramos e de comprar livros da Carolina Salgado. Vão ver que resulta.

Monday, March 26, 2007

O dia em que Salazar venceu

Tenho de ser franca. Nunca pensei. Depois de tanto gozo, de tanta crítica, de tanta gente esquerdista e semi-esquerdista a tentar apagar a memória dessa figura mítica, eis que Salazar surge do nada e apanha comboio para a vitória sobre outros concorrentes, quando a mim muito poderosos: D. Afonso Henriques, D. João II, Aristides de Sousa Mendes, Álvaro Cunhal, Fernando Pessoa, Camões, Vasco da Gama são aqueles de que me lembro. Acima de tudo, lutou ali pertinho e bem renhido em relação a Álvaro Cunhal. Era o que todos queríamos, saber se em Portugal tem mais força a direita conservadora da Igreja ou a esquerda libertina. E, mesmo tanto tempo depois do 25 de Abril, ressurge esta figura com contornos pitorescos, acho eu, com mil e uma histórias mal contadas, figura austera e pouco simpática, o pai e o professor cuja autoridade nunca teríamos coragem de pôr em questão ou apanharíamos decerto uma bofetada valente ou um olhar que nos meteria tanto medo que sentíamos as cuecas molhadas. Não é Salazar. É «o» Salazar. O gajo, o filho da mãe, o cusco, o conservador, o poupadinho, o velhadas. Ontem a figura dele até parecia sorrir de regozijo: “ Toma lá Cunhal, e põe-te a mexer! “. Eu nunca pensei vir a dizer isto, em toda a minha vida, mas viva o Salazar!

O conceito do programa «Os Grandes Portugueses» é interessante, mas roça a tolice colocar figuras como Salazar a par de Fernando Pessoa ou Camões, D. João II ou Aristides Sousa Mendes. Para mim ganhava logo o D. Afonso Henriques. Sem ele, os outros todos arriscavam-se a falar castelhano ou árabe, e eu não me apetecia nada seguir as regras do Corão e muito menos – mas muito menos – ser espanhola. Ser português é um orgulho graças ao D. Afonso Henriques, de quem, pelos vistos, todos descendemos. É certo que hoje ele poderia ir ao Goucha e ser eleito o trolha do ano: o homem cheirava mal, falava mal, era bimbalhão e analfabeto e, quando se via ameaçado, socava e pontapeava a própria mãe, D. Teresa (ou Tareja, quase a rimar com «tareia»), que quanto a mim devia estar a pedi-las. Sem este grande português, nem Camões nem Pessoa tinham versos tão belos, isto é, em português.

Os portugueses elegeram Salazar e isso deve ter uma explicação – ou não, se calhar telefonaram as pessoas aficcionadas e prontinhas a gastar uns tostões para defender o «seu» português. Depois lá vinha a Maria Elisa com aquelas perguntas a soarem a falso: “ Fernando Pessoa era criativo ou depressivo? “. O «ou» disjuntivo é que está mal, porque assim a senhora assume que alguém criativo não pode ser depressivo, ou vice-versa, e no caso de Pessoa as duas características andavam de mãos dadas, sem desprimor nenhum para a sua arte. Aliás, esse é o grande problema. Quando as pessoas tentam fazer algo de jeito, toca a chamá-las de maluquinhas. Compará-lo com Camões também me pareceu de muito mau gosto: desde quando um classicista como Camões tem alguma coisa a ver com um modernista como Pessoa? É preciso entender o contexto da obra Mensagem, para se entender porque Pessoa desejava ser um supra-Camões. Ele não era tolo, sabia o que estava a dizer, e no programa pareceu-me que o trataram, incompreensivelmente, abaixo de cão.

Quando veio à baila a comparação entre Salazar e Cunhal, também fiquei perplexa com as tentativas – infrutíferas – de todos para definir «líder». Uns diziam que líder é o que tem poder, outros que tem um poder que emana do povo, outros que um líder não pode ser imposto. Não estamos a ler bem as coisas. Em primeiro lugar existe o factor diacrónico, a história. Cada líder aparece consoante a história mundial, a história das mentalidades, a história nacional de um país. Depois existem características pessoais que põem um líder a liderar: o carisma, a palavra, a retórica, a presença, até a capacidade manipulativa, a paciência para convencer uma ou várias pessoas ou até multidões. Existe também a irracionalidade das pessoas, o vazio interior que leva as massas a exterminarem o «outro», o diferente, o menos bom ou menos capaz. E há a necessidade histórica que convoca aquele líder. É o caso de Salazar. Não lhe reconheço nenhum carisma por ali além, devia mesmo cheirar a mofo, mas era inteligente, sagaz, e soube aproveitar as circunstâncias para defender o país o melhor que sabia. Não vale fazer convergir nele defeitos incríveis ou achar que ele é a encarnação do mal. Preferiam o Hitler ou o Mussolini? Eu não.

Ao menos não andámos a exterminar judeus por dá cá aquela palha. Toda a gente sabe que os judeus fazem falta (mesmo quem não os acha seres humanos), no comércio, na sovinice, no controlo de bens, e claro, em Hollywood. Os judeus mandam em Hollywood, caso não saibam Spilberg e Woody Allen são judeus, entre muitos produtores, realizadores, actores e, acima de tudo, financiadores de filmes com tiragens excepcionais. Está bem, os judeus mataram Jesus, mas alguém tinha de o fazer, o tipo falava demais, e ser filho de Deus não pode ser…isso é querer ser mais papista do que o Papa.

A Odete Santos gritava que tinha havido fascismo, o José Hermano Saraiva outrora defendeu que não. A realidade dos dois é muito diferente. Ela defende uma realidade fora da História e ele conhece a História por dentro. Dentro do fascismo e dos fascistas, Salazar foi o melhorzinho que por aí andou. As tropelias da polícia política em Portugal não se comparavam às SS dos alemães, nem a propaganda portuguesa à do Goebbels, autor de uma das frases mais verosímeis da História: “ Uma mentira muitas vezes contada torna-se verdade “. É isso mesmo. Portanto, e em última instância, cada povo, cada nação, cada família, cada pessoa tem a mentira que merece. E cá em Portugal tivemos mentirinhas. O Salazar não apareceu com ideias de extermínio, apenas tentou que ficássemos fechados neste cubículo chamado Portugal, longe do resto, e conseguiu. As consequências perduram até hoje. A ideia de que Portugal é o litoral do continente, em particular Lisboa e Porto ainda tem sucesso, concentrando-se nessas zonas o melhor e o pior do país, a todos os níveis: ensino, produtividade, competitividade. O excesso de pessoas em ambas as cidades deu origem a guetos e bairros de lata nas periferias.

Salazar foi o fascista necessário, aquele que merecíamos ter. Eu sei que o país era pobre e mal amanhado, muito mais do que hoje. O acesso a tudo e mais alguma coisa era diminuto e as mulheres faziam parte de um grupo triste e soturno que não tinha direito a respirar fora de casa. Ser gaja era sinónimo de ser burra, obediente, dona-de-casa e mãe. Poucas mulheres saíam deste núcleo e quem saía era muito mal vista. Como diria a minha avó, uma mulher solteira e com filhos era uma vergonha, uma mulher solteira depois dos vinte anos era uma vergonha, uma mulher viúva não se podia voltar a casar, porque era uma vergonha…sobrava as outras hipóteses que, invariavelmente, deixariam a mulher largada a um epíteto pouco doce: vadia, prostituta. Se tivéssemos continuado com Salazar, andávamos todas de burka.

Salazar fez o tinha de fazer, o que estava ao seu alcance, nas suas mãos. Não foi cruel, foi necessário. Foi útil ao país da maneira que podia. É insensato pensarmos que, se tivesse sido outro tipo de pessoa, teríamos tido liberdade mais cedo, porque ele foi, à sua maneira e no seu tempo, um Messias. Quando começou a desagradar, não quis sair do poleiro nem ouvir ninguém. Um líder que não ouve perde-se, obviamente, porque o poder está naquilo que os outros não sabem e ele sabe. Se os outros sabem e ele não, desvirtua-se o jogo, como no filme «Underground», cuja personagem principal é mantida na ignorância relativamente ao fim da guerra da ex-Jugoslávia, e vive numa cave com tanques, pronta a defender-se do exterior.

Os anos do fascismo deixaram as pessoas perdidas, sem saberem muito bem quem eram e do que gostavam. Não tinham escolha. Quando em Abril de 1974 passámos ao outro extremo, a coisa complicou-se.

Toda a gente sabe que os comunistas são bichos perigosos, excepto os próprios comunistas. São bichos com asas, mas graças a Deus não voam, que é como quem diz, fazem falta na oposição, mas ninguém lhes dê o poder para as mãos. Por isso alguém da plateia do programa reclamava com grande fé que o grande líder vivo desta nação era Mário Soares, afinal afastou os comunistas com uma contra-proposta para o país, que nos fez encarreirar noutro caminho bem diferente do de Álvaro Cunhal. Ninguém vive só de ideologias, precisamos da barriga cheia. Não venham chorar que Cunhal é excelente, também lhe reconheço brilhantismo, mas se algum dia fosse governador, teríamos Portugal igual a Cuba e continuávamos a apregoar que éramos todos «iguais». Os comunistas adoram gente igual. Gente igual a eles. Os outros podem pôr-se a milhas.

Quanto a Soares, alguns portugueses fizeram o favor de o afastar dos dez mais, do top dos melhores portugueses. Tudo o que é demais enjoa. Desta última candidatura dele à Presidência da República retive a cena daquele dinossauro velho a dormir, enquanto uma brazuca esfregava o rabo freneticamente na cara dele. Homem que dorme perante este cenário está cansado (ou é bicha)… Uma pessoa também se cansa do poder. Ou um dia diz, como um dia disse Cavaco Silva: “ Agora tenho netos para cuidar “. Na verdade já devem ter crescido, até este voltou ao poder… Além disso, Soares tem prole e uma família que mete o nariz em tudo, uma mulher beata, um filho desajeitado e arrogante cuja sede de poder é evidente. Os Soares são a família-mete-nojo de Portugal: se um é mau, três é pior. Com sorte os netos vão para padeiros, varredores de rua ou bombeiros, prestando um serviço à nação de grande monta e significado (não é ironia).

A grande questão que me coloco é o porquê de portugueses em massa ou bloco irem votar na figura controversa do Salazar, quando poderiam ter votado, por exemplo, no Vasco da Gama? Está enraizado na nossa cultura que um homem de extrema direita ou um de extrema esquerda só pode ser mafioso, mentiroso, e também que um político só pode ser manipulador. À excepção dos escritores, que figuras foram à votação final? Políticos. De uma maneira ou de outra, até Vasco da Gama era político, convencer o rei das viagens que pretendia fazer deve ter sido obra, o resto era arte de navegação e sorte pura. Vasco da Gama era, assim, uma figura bem mais neutra do que Salazar e igualmente importante. Porquê Salazar? Não há grande saudosismo da época da repressão: ou será que há? Teremos saudades de regras excessivas, que puniam «a sério» alunos faltosos e agressivos, por exemplo? Teremos saudades de quando as mulheres eram mais submissas, mais ligadas à família, menos cabeças de vento prontas a ir ao divórcio por dá cá aquela palhinha? Teremos saudades de não poder ter blogues a «dizer tudo de todas a maneiras»? Ou teremos simplesmente saudades de valores enraizados, profundos e do tempo em que não podíamos endividarmo-nos porque não havia o bem dito «crédito»? Quiçá teremos saudades simplesmente de não haver anúncios estúpidos a dizer «Allgarve» aqui em Portugal. Porque Salazar estava cá e não deixava. Decerto as mulheres, com excepções raras (como a minha avó) não devem ter saudades de não poderem votar, de serem analfabetas obrigadas a saber coser e cozinhar com perfeição, de terem as finanças controladas, de precisarem da assinatura do marido ou dos pais para poderem sair do país ou dar aulas, e de terem um acesso diminuto à universidade.

A estilista Ana Salazar (que não é filha do Salazar, descansem) conta que quando começou a usar o cabelo vermelho os olhares viravam-se todos para ela, as pessoas comentavam, mas que hoje em dia passa despercebida. Ser diferente ou estar de forma diferente era punido, daí que a minha avó tivesse interiorizado a ideia de que, no tempo do Salazar, não havia homossexuais e as mulheres eram dignas de pena. Ela conta sempre como o meu bisavô, figura extremamente semelhante ao D. Afonso Henriques, que lhe rasgava a bainha subida das saias porque era «uma pouca vergonha» e lhe mandava os cremes pela janela fora, achava todas as mulheres dignas de pena. Até a gata, por ser fêmea, recebia uma carcaça para comer todos os dias, mais do que qualquer gato da época da outra senhora poderia almejar. A minha avó ainda hoje está convencida de que aquilo é que estava certo. Também nunca percebeu bem a utilidade de uma mulher estudar ou trabalhar, nem percebeu ainda porque é que uma mulher se divorcia ou uma viúva mete os cornos ao falecido, voltando-se a casar. Já os homens, para ela, podem e devem ter o acesso livre a todas estas coisas. Basicamente, desde que um homem não espanque uma mulher, a vida corre de feição para ela. A minha avó já não é do tempo em que o mundo deu uma volta de 180 graus. Estamos no pólo oposto, e ainda bem. Mas ainda descemos mais do que isso - e ainda mal. Começámos a fazer aos homens o que não gostámos que nos tivessem feito a nós, somos espertas ao ponto de nos fazermos de coitadinhas para o macho nos vir salvar das intempéries e com isso ganharmos espaço, embora percamos a dignidade daquilo que considero «feminino». Essa é a atitude do macho ferido, fazer-se de sensível para pedir desculpa e bater outra vez na mulher. Agora é a vez de elas fazerem o mesmo, mas com mais subtileza e determinação. Mas essa é outra história…

Numa altura em que se discute (ainda!) se se deve ou não abrir um museu dedicado a António de Oliveira Salazar, o Presidente da associação do combate contra o fascismo (nem sabia que havia esse tipo de organização) diz que a abertura de museus acerca do fascismo e do regime salazarista são da maior utilidade, mas que o museu está desenquadrado, visto que espera recuperar a antiga casa de Salazar com os utensílios dele, a escrivaninha, a sala, etc. Pergunto-me qual será o mal desse tipo de museu, ainda por cima situado no cu de Judas, numa terra chamada Santa Comba Dão, pequena, tipo aldeia das bonecas com uma única estátua: a do dr. Salazar. Quem lá irá para ver de propósito os utensílios que Salazar utilizava para cortar a barba? Já agora, Vasco da Gama deu nome a um centro comercial, até Colombo, cuja nacionalidade ainda se questiona; Fernando Pessoa teve direito à casa Fernando Pessoa e a centenas de teses de mestrado e de doutoramento, bem como estudos e publicações com o subtítulo «inéditas». Muitas pessoas perguntam, e correctamente, de que tamanho será o baú literário de Pessoa, para aparecerem inéditos caídos do céu a toda a hora. Camões vai pelo mesmo caminho, embora a questão da autoridade literária se coloque sempre (virá o dia em que atribuem tudo à índia que ele deixou morrer no mar). Aristides Sousa Mendes tem a sua fotografia na Faculdade de Direito, não fosse isso e ninguém o conheceria. Álvaro Cunhal deixou um legado teórico, arte, desenhos e a cela onde esteve preso ainda é visitada.

Afinal, o que é que Salazar não tem que os outros têm todos? Se o Mário Soares tem uma fundação, porque não fazer uma dedicada ao Salazar, enaltecendo as virtudes do regime? A questão é simples: não vende, ninguém liga nenhuma, ninguém compra e, acima de tudo, é tabu, ninguém quer falar disso. Durante anos, houve uma tentativa poderosa por parte da esquerda (mas também de muitas outras pessoas), e em parte bem sucedida, de apagar o rastro do regime, de não lembrar a sordidez de alguns aspectos menos bons. Mas estamos na época do fala-barato. Já devíamos ter vencido esse medo, essa fraqueza. Não é possível fazer um novo capítulo sem perceber o capítulo anterior (excepto nos livros do António Lobo Antunes), talvez esse seja o grande erro. E Salazar é o capítulo anterior.

As carreiras

Não, não falo de autocarros da Carris. Falo de vida profissional. É um campo no qual a batalha é dura para muitas, mas desliza como manteiga para outros. As razões são duas: uma é a sorte, a outra é o campo no qual nos profissionalizámos. Se estamos numa área empresarial, virada para as novas tecnologias, os telemóveis, computadores e toda a nova geração de empregos, então é provável que, pelo menos, tenhamos emprego. Não vou dizer ganhar «bem», que é algo muito relativo, mas evidentemente que, abaixo dos 500 euros é para gozar com a cara das pessoas. Infelizmente, conto pelos dedos os anos em que ganhei mais do que isso, porque o comum foi sempre ganhar muito menos.

Gosto muito do meu trabalho. Não posso dizer «emprego». Um emprego é outra coisa, e uma bolsa de investigação é tudo menos emprego. Não tem horários, nem grande segredos, nem descontos, nem licença de maternidade, não tem férias, nem 13º mês. Mas na verdade eu teria muita dificuldade em fazer em alguns empregos que têm tudo isto que acabei de citar. Acho que concluo sempre que, para pessoas de Letras e de outras áreas críticas, o problema vai ser sempre o mesmo: faço o que gosto e não tenho carreira ou tenho uma carreira estúpida a fazer o que os outros fazem? Felizmente, já vou conhecendo casos de pessoas que deram a volta à situação, e conseguem fazer o que gostam e pagar a renda de casa com essa actividade, seja ensino, formação, investigação, edição de texto. Estou certa que qualquer um dos meus colegas de curso prefere isso a atender telefones. Todavia, muitos atendem telefones. Não podem ficar à espera «da» oportunidade de ouro. Eu fiquei e sou franca que toda a minha situação profissional me preocupa. Por muito que adore o que faço, o que farei no futuro? Ninguém é eternamente bolseiro e em Portugal não há muitas estruturas ligadas à investigação, exceptuando as das áreas científicas, mesmo assim mal financiadas.

A profissão que se exerce tem dois lados: a auto-estima, que é o gosto pessoal pelo que se faz, e a empregabilidade. É muito complicado quando as duas estão em desvantagem. Por exemplo no ensino. Já ninguém tem paciência para ser professor de alunos que mereciam ser electrocutados, para além da carreira docente ser uma palhaçada. Há muito de social num emprego, também. Como é que é visto? Em geral, um investigador é um preguiçoso que estuda coisas inúteis, um professor é alguém que passará por humilhações e esgotamentos, que incluem ofensas verbais e corporais. Um polícia é um palerma que não serve para nada. Um advogado é um mentiroso. Um psicólogo é um manipulador. Ideias preconceituosas perseguem quase todas as profissões, sem nunca esquecermos que dentro das profissões, sejam elas quais forem, há profissionais muito bons, de se tirar o chapéu e fazer uma vénia. Estou, no entanto, muito cansada de ouvir a pergunta mais velha do mundo: “ Para que é que serve? “ ou a recomendação “ Arranja um emprego a sério “. Dantes eram os artistas que ouviam isto. Hoje, muita gente sabe que bailado, pintura, escrita, teatro, cinema, televisão são actividades sérias, tão sérias como quaisquer outras. Apesar disso, as pessoas parecem colocar numa prateleira tudo aquilo que diga respeito a artes, cultura, literatura, história, as ditas ciências humanas e sociais. Pelo menos as saídas profissionais são restritas, tão restritas quanto aquilo que a sociedade determina.

Cada vez mais a palavra «carreira» é subjectiva. Há pessoas que fizeram de tudo um pouco na vida e foram desembocar numa profissão qualquer quase por acaso. Há outras que tiveram objectivos definidos à partida, e ou estabilizaram, assentando arraiais num local de emprego, ou se movem, dinamicamente. E finalmente aquelas que falharam em todos os recantos profissionais e têm de se safar o melhor que podem. É evidente que me custa pensar em estar a vida inteira a fazer o que não gosto ou a trabalhar em condições miseráveis (que não é o caso, no presente momento da minha vida). Quando isso me aconteceu, eu só pensava em fugir dali e no tempo que estava a perder com o que não gostava. Infelizmente, muitas vezes muitos de nós temos de passar por isso para chegar a bom porto.

Thursday, March 22, 2007

22 de Março 2007

Hoje a minha mãe faria 60 anos, um número tão redondo quanto os anos que eu farei em Abril, 30. Portanto, com a minha idade, a minha mãe tornou-se mãe mais o determinante possessivo «minha». Quer dizer, mais ou menos. As pessoas nunca são nossas, nós é que pensamos que sim. Talvez por isso eu ache que a amizade é valiosa, porque a possessão fica de lado, pelo menos na maior parte das vezes. Desde há um ano que a Patrícia França é «minha» amiga, mas eu tão depressa estou com ela como não estou e ela nunca é menos minha amiga por isso – ainda bem!

Desde há muitos mais anos que sou amiga da Tembwa, da Patrícia Torres, da Ângela, da Paula, da Diana, e apesar de serem minhas amigas, não possuo o poder de estar sempre com elas quando me apetece. Umas são casadas, outras vivem longe, outras estão ocupadas. Com as amigas e os amigos é assim. Mas com os pais não. Os pais existem e estão sempre ali, à mão de semear. É um compromisso eterno, para tudo o que é bom e para tudo o que é mau.

Eu e a minha mãe nunca tivemos feitios compatíveis, nem nunca nos demos perfeitamente, não tínhamos grande compatibilidade como pessoas. Eu achava-a queixosa de tudo, orgulhosa, má gestora de problemas. Aquela pessoa que desatina com tudo e não resolve nada com ninguém, não distribui tarefas, faz tudo sozinha. Dito assim, parece que me estou a descrever. Na verdade, eu e a minha mãe éramos parecidas, uma espécie de espelho enviesado, que nunca se olha de frente, mas só de lado, para não se assustar com tanta fraqueza e com tanta humanidade, disfarçadas noutras capas nas quais sou incapaz de me encobrir, como a dureza, a frieza, a distância. Só conheci melhor a minha mãe no dia em que ela entrou no meu quarto e me disse: “ Tenho algo difícil para te dizer “. Fiquei muito triste, muito magoada. Não tanto pela doença dela, infelizmente vulgar, mas pela capacidade que ela tinha tido de encobrir tudo a todos, de forma a proteger tudo e todos. Mas quando ela falou daquela maneira, ela era mesmo ela, pela primeira vez na vida: triste, desolada, frágil, esquecida. Dias antes tinha-me perguntado «Conseguias sobreviver sem mim? O que sabes fazer em casa?». Até aí era questão que nem se punha, porque eu não fazia nada, ela nem me deixava entrar na cozinha. Durante uns tempos depois da morte dela, a cozinha ficou intocável, tudo porque eu assimilara a mensagem «Não toques em nada, deixa tudo como estava». Mais tarde eu e o meu pai reformulámos a cozinha: ficou suja, caótica, mal decorada. Ficou à nossa maneira e não à maneira dela.

Depois ela disse-me «o mais difícil está feito: contar». Nem disse «contar que estou doente». Mas estava brutalmente doente e foi mais um ano de pura ilusão para todos, de que ela resistia bem, ia sair bem daquilo, viva e até de boa saúde. Não posso dizer que tive esperança até ao fim, seria mentira. Acho que fui forte, hoje sei-o bem, porque de repente passei a integrar a ideia mais difícil de todas na minha cabeça (e mais tarde na minha vida): eu sabia que ia perdê-la. Não como se perde um emprego, uma casa, uma roupa, uma bolsa de estudo. Ia perder tudo isso vezes cem. Enquanto ia engolindo o afastamento, despedi-me dela e disse «agora tudo vai ficar bem. As dores passam-te e isso é bom». Ela disse que sim, mas sabia que não. Ela sabia que ir para o hospital era sinónimo de morte. Eu também sabia. E portanto fiquei a ver, com esta simplicidade toda que vos digo, porque se há coisa nesta vida que é simples é isto: ela faria o mesmo por mim sem hesitar, certo? Então lá estava eu, e o Ricardo, e o meu pai e os meus avós, e sob toda essa estupefacção, um sofrimento atroz e irredutível, que cada um geriu à sua maneira. Por isso ficámos ligados nessa coisa triste que é falar no passado de uma pessoa que está a morrer, «ela era…», e ela ali, louca por viver e não perder a batalha, da qual se despediu com a frase que mais marcou até hoje: “ Trabalhei tanto e lutei tanto e agora vou morrer. É injusto. “

Toda a minha biografia, física, moral, psicológica, foi marcada por este acontecimento, que a mim me pareceu uma tragédia grega. Dela retirei também a frase do Paulinho, que um ano antes perdera o pai em circunstâncias tão semelhantes que ainda hoje estamos os dois tatuados pela morte de um modo absurdo e quase irmão: “ Não te despeças. Nunca se sabe se se voltarão a encontrar. “ Sei que me pareceu uma frase inteligente, e sobretudo, uma frase que não era dita para me consolar, porque isso ele, e só ele, podia saber que no momento era impossível. Não há consolo possível. Quando alguém morrer, não consolem familiares, deixem-nos só chorar e fiquem ao lado a ver e a aprender, mais tarde ou mais cedo calha a todos nós. Apesar de eu não defender a tese da vida para além da morte, até porque acho isso uma presunção sem par da parte do ser humano, acredito que o meu cérebro seleccionou uma parte qualquer da minha mãe e ficou com ela. Tem dias em que me custa, que é uma parte negativa, de depressão, de sofrimento puro, de queimadura integral do interior. Mas noutros dias, e é nesses que devo acreditar, em que a leveza, a doçura, a pureza tomam conta de mim e fazem com que eu pense na frase do Paulo e acredite que ele tem razão: muitas vezes ela está de mão dada comigo e eu sinto isso.

A minha mãe não gostava de fazer anos. Mas que diria a minha mãe hoje, se visse um neto, se soubesse que tem uma nora (amancebada com o meu irmão, mas é nora)? Acho que iria adorar. Eram coisas de que a minha mãe falava muito, são coisas em que gostamos de pensar: netos. Mas ela também dizia muito que não queria chegar a velha, e como diria a Patrícia, é preciso cuidado com o que se deseja…

Depois veio uma época negra da minha vida que me ensinou e continua a ensinar o que é a vida e o que são as pessoas. Porque até ela morrer, o mundo não era perfeito, mas eu não sonhava da missa metade. Não é fazer-me de coitadinha, é dizer mesmo que eu era ingénua. Em primeiro lugar, descobri que ter uma depressão é terrível. Sentimo-nos diferentes, porque vemos tantas pessoas a passarem pelo mesmo que não tomam comprimidos, somos impelidos a pensar que somos «fraquinhos», «parvos», «pouco corajosos» ou que «não damos luta». Essas palavras são como as sanguessugas, entram na nossa carne e sugam-nos o sangue. Vamos sendo impelidos a pensar que não estamos preparados para a vida, e muito menos para a morte. Muito menos para a morte de um Eu que deixa de existir do mesmo modo. Tenho lido tudo e mais alguma coisa sobre depressão, e descubro sempre o mesmo: temos medo de nós próprios, da cisão, como lhe chama Arno Gruen. A cisão é quando percebemos que, antes daquele pequeno ou grande desastre, nunca fomos nós próprios. Éramos o que o exterior impunha. E logo eu, que sempre achei que me opunha ao exterior. Mas ter uma depressão acaba por ser isso: vemos estampada a desilusão na cara das outras pessoas «então? Foste-te abaixo porquê? Tens de continuar em frente!». Nunca sabemos bem se queremos esbofetear ou cuspir na cara de quem nos diz isto. E não vale a pena dizer às pessoas «olha, se passasses por isto…», porque muita gente passa com razoável sucesso. A cisão só se dá perante alguns pressupostos: reflexão, baixa de defesas, assunção de que somos fracos, humanos, frágeis. Se não entrarmos em cisão, é porque já sabíamos que éramos assim. E eu sabia, mas não queria ser assim. Negava completamente, como hoje em dia ainda nego, que podia falhar. Mas falhei. A minha mãe adoeceu gravemente, eu vivia com ela e nem dei conta.

Ainda hoje não aceito nada bem os erros – que são sempre os mesmos – com as pessoas: dar confiança a mais, ter expectativas elevadas de compreensão. O mundo não se passa assim: a regra não é nada essa. Para sermos especiais para alguém, temos de escolher pessoas especiais, que para mim são as pessoas que assumem as suas fraquezas, e nunca o contrário. Alguém que me diga que não erra, que gosta de toda a gente (ou toda a gente gosta dele/dela), que faz tudo bem, que é honesto, trabalhador, determinado, perfeccionista, é alguém que está a mentir. Este tipo de ser humanos existe em dois lugares: no paraíso, com os anjinhos (nesse caso já deviam ter morrido, o paraíso para eles até tem Via Verde), ou no planeta dos chatos. Pessoas assim são parvas e chatas, mesmo que, bem lá no fundo, sofram como nós. Não assumir a humanidade é como contrariar a respiração. Eu sou míope, mas ainda sei ver quem são os mentirosos que por aí andam a dizer estas barbaridades.

A maior parte das pessoas que se trata ou fica viciada nesse tratamento ou nunca mais quer ver terapeutas (não é agradável termos de aceitar o pior de nós próprios). Eu estou no meio disso. Tenho saudades da calma e da placidez da psicóloga que tive, e da loucura (que me parecia sã) do psiquiatra, que tanta graça achava aos escritores e ficava todo contente quando tratava um. A psicóloga podia ter estado sempre ali: era uma pessoa preciosa, mas a tempo percebi que o meu caminho era para ser trilhado sem ela, sem essa ajuda, ou como diz a Lisa, pobres não podem ter depressões. Não saí de consultórios a dizer «valho imenso como pessoa», «sei muito sobre os outros e sobre a forma de lidar com os outros». Aliás, acho que estou a escrever frases que nunca disse acerca de mim mesma, e talvez nunca tenha achado nem uma coisa nem outra. Sei pelo menos que procurei seguir um caminho saudável: sem negar as minhas fraquezas e assumindo um compromisso comigo mesma – o comprometimento de que vou melhorar enquanto ser humano.

É verdade que é graças a mim que acho isso, mas fui muito ajudada, preciosamente ajudada. De 2001 para 2007 conheci a Célia, fui a S. Tomé com ela e com o Ricardo (e mais alguém que não se bronzeava porque usava factor 45), conheci o Pedro, o Eduardo, a Lisa, a Maria, o Serginho, a Patrícia, a Helena, e com cimento dado por eles e todos os outros amigos, cá estou eu a comemorar os 60 anos da minha mãe, cuja mão ainda seguro quando quero muito uma coisa ou quando ando de avião (sim, porque a Célia ou o Pedro não podem ir sempre comigo).

De 2001 para 2007 também conheci pessoas que me ensinaram que o mundo não é um lugar seguro para se viver graças a elas, porque manipulam, distorcem, fazem cara de cu, aproveitam-se dos mais fracos, são más línguas, mal-educadas, arrogantes, maldosas, estúpidas ou simplesmente más. A todas essas, um agradecimento especial, principalmente por me ensinarem que eu não quero ser assim, aliás, que eu não vou ser assim e que, tal como a minha mãe, vou-me esforçar para que os meus filhos (e sobrinhos provenientes do casal pensalinho) não sejam assim, mas pessoas generosas, cooperativas, genuínas e com imenso amor para dar ao mundo. À minha mãe, muito muito obrigada!

Parabéns, mãe!! Vivam os teus 60 anos.

Wednesday, March 21, 2007

A Bela e o Mestre

O mundo foi, desde há muitos anos, atravessado por uma correnteza de ar. Abriu-se a caixa de Pandora, saiu tudo de mau lá de dentro. Quer dizer, já havia, toda a gente sabe que a maldade é humana, mas na verdade a maldade já teve graça, quando o Marquês de Sade entupia rameiras de rebuçados de licor envenenado, por exemplo. Poucos terão conhecido como ele as facetas mais perversas do ser humano, não só a nível sexual, preconizando o sexo anal, mas acima de tudo pela raiva, pelo ódio de vingança ao próximo, pelo ciúme e crueza de espírito.

Mas hoje em dia há pouco para ter graça. De que vamos rir, se, como diz Arno Gruen, estamos distraídos com milhares de estímulos externos? Que graça vamos achar aos outros, ao que nos acontece, ao que lhes acontece? Tenho um ponto no meu carácter que considero sobejamente útil: a sublimação pela graça. A Diana fala-me sempre disso e de como eu e o meu pai (perito na mesma área comportamental) achávamos graça ao facto de não encontrarmos nada em nossa própria casa depois da morte da minha mãe. Terá mesmo graça sermos assim tão parvos? Não. Mas nós achávamos graça à nossa figura tola a abrir e fechar gavetas, no meu caso ainda era para procurar objectos pouco usados, mas o meu pai até a gaveta das cuecas falhava. Numa situação destas, creio que dramatizar seria o pior. Por ter descoberto isso, aprendi cedo a achar piada às coisas mais incomuns e palermas, mas também a ficar chocada com aquelas que menos tocam as pessoas.

A TVI podia ter arranjado outra coisa. Não era preciso andar a vasculhar o pior do ser humano, como nos antigos e sucessivos Big Brother. Este parece outro, o programa a Bela e o Mestre, numa clara (?) alusão à Bela e o Monstro. O formato é, obviamente, estrangeiro, e não tem nada que se lhe diga. De um lado rapazes feios e inteligentes, do outro raparigas bonitas e burras. Querem melhor do que juntá-los aos pares? Acho que o público deliraria se eles ficassem todos juntos e elas todas juntas. Eles beberiam cerveja até rebentar, elas desgrenhavam-se umas às outras.

Aliás, vai sendo assim que mulheres se distinguem de homens, desculpem o prosaico e caricaturável da questão, mas mulher e homem que se tratem de igual para igual é muito raro, sobretudo se forem casados. Quantos não põem a mulher num pedestal ou, pelo contrário, a submetem a comentários jocosos e tristes? Pois tratar de igual para igual não é nem um nem outro: não é tratar a mulher como fina flor, qual jarro de porcelana da dinastia Ming, nem como uma megera torpe que está ali para cozinhar, lavar e limpar ranhocas aos filhos. Claro que a maior parte dos homens tem nuances entre um pólo e outro (e ainda bem!), mas nem falo disso: falo de terem os mesmos direitos e os mesmos deveres em casa, de se ajudarem mutuamente, sem a desculpa comodista do costume: «ela faz» ou «ele faz». Esse é uma das mais profundas convicções da minha vida: igualdade, tendo em conta as diferenças razoáveis que temos uns dos outros, físicas e psicológicas.

O programa da TVI vê o mundo a preto e branco e sem nuances de maior. Elas são bonitas, logo burras, eles são feios, logo inteligentes. Já agora, porque não mulheres feias e inteligentes e homens bonitos e burros? Vêem como o mundo é machista? Continuamos Evas a tentar o homem com a beleza, mas sem miolos que nos ponham em pé de igualdade. Durante uns dias, ali estive eu a apanhar bonés, a ver o programa sem entender nada, com eles a fazerem ginástica e elas a responderem a perguntas. Depois percebi: eles são os mestres delas, tipo professores, e as gajas têm de se safar nas perguntas, não sei com que periodicidade, mas talvez semanal, tipo gala, mais bem vestidas do que o comum. Vamos ver então aquilo que eu aprendi a ver o programa. Em primeiro lugar, aquelas raparigas são mesmo burras, não são só ignorantes, como são toscas, bimbas, chatas, fúteis. Como diria a Lisa, é gostar mais de merda do que de flores (a expressão é linda!).

Percebi também que a beleza é muito subjectiva. Eu pensava que tipas de cabelos compridos, mamas grandes e fio dental já tinham passado de moda, mas deve haver um botão qualquer na cabeça masculina que diz «baba-te quando vires um fio dental, mamas grandes e cus». De cara as meninas não são nem mais nem menos do que a vulgar estudante universitária, mas andam sempre produzidas, armadas ao pingarelho, como diria a minha mãe. Usam milhares de acessórios, maquilhagem aos montes, e, como dizia uma delas «Preciso que me dês tempo para as minhas tarefas: pentear o cabelo e pôr maquilhagem». O rapaz, estupefacto, continuava «mas temos de estudar, e quando é para estudar não podes estar a pentear o cabelo». Ao menos o programa dá lições pedagógicas, tipo «Se conduzir não beba».

Para além de eu ter aprendido que Azoto é uma cidade no Japão, fiquei a saber que Lisboa e Porto são regiões autónomas e, segundo um dos «mestres», uma recta «é como uma auto-estrada», portanto, a auto-estrada não tem princípio nem fim? A pergunta da rapariga não se fez esperar «e se a auto-estrada tiver uma saída? É recta na mesma?». Também gostei daquele rapaz despenteado que solicitava ao seu par a explicação de como se encontrava o peso de alguém, ao que ela respondeu «vais à farmácia e pesas-te numa balança». Eu acho que ela tem razão… Tudo aquilo dá-me sempre a sensação de que é melhor não forçar muito ou as meninas estoiram mesmo os miolos. Num dos episódios uma delas chorava na casa-de-banho perante o olhar estupefacto das outras «opá, não sei estudar, é muito para mim!».

Não há nada que me deixe mais descontente do que pessoas burras com pretensões a serem inteligentes. Naquilo que consigo perceber, na vida, procuro sempre não me convencer de que sei muito, até porque convivo diariamente com pessoas que sabem muito mais do que eu, pelo menos nas áreas em que trabalho e às quais me dedico. Mas gente pretensiosa, que se acha o centro do universo, é do pior que há. E aquelas raparigas parecem todas assim, embora a pretensão delas seja mais agradar ao exterior e manipular o seu par, do que serem conhecedoras de matemática e geografia.

De um ponto de vista sociológico, todos estes reality shows ajudam ao estudo sociológico da espécie humana e do seu comportamento em grupo. Afinal, o que queremos, ou não, aprender com os outros? A manipular, a ser manipulado, a gostar, a crescer, a estabelecer regras, queremos saber, conhecer, aprender mais? Todas as relações devem ter uma resposta, mesmo aquelas que nos são impostas, social e familiarmente. Há pessoas cujo carisma não entendemos e que prendem dezenas e centenas de outras ao seu redor, no entanto, num contexto maior, percebemos a sua fraqueza, a sua tibieza emocional, a sua falsa comoção com o próximo, e descobrimos simplesmente aquilo a que vulgarmente se chama vazio.

Arno Gruen diz também que mulheres vazias atraem os homens cuja masculinidade tem de ser, de algum modo, comprovada, porque eles vão à procura do amor que não existe, que é só o reflexo puro e duro da sua falta de afirmação como homens. Esses homens têm tendência a achar que as mulheres mais interessantes não se dão logo, têm o amor como um tesouro escondido e não o mostram a ninguém. Muito vulgarmente isso só quer dizer «olha, não gosto de ti, estou aqui por outras razões» e o homem lê «amo-te tanto que nem sou capaz de mostrar». Ridículo, não é? Por isso eu acho sempre que a paixão subjaz à vida de qualquer ser humano, mas o amor, esse, constrói-se numa maturidade e num registo muito diferentes, porque é um comprometimento com nós próprios: é o espelho do que somos, é a concepção que nós temos de nós mesmos. Essa é a razão pela qual pessoas submissas encontram parceiros dominadores e vice-versa: é a nossa falha tectónica, aquilo que abala mais, que é o fulcro do problema, o nosso terramoto interior.

Parêntesis intelectualóides à parte, vamos aos mestres. As belas estão definidas. Os mestres são os tais rapazes inteligentes, pouco populares, gagos, engonhados, paspalhões, mal vestidos, mas que têm de mudar tudo isso, tornando-se, nas garras afiadas das senhoras, gajos com estilo. Aqui vem a outra ideia preconceituosa. O que é um gajo com estilo? É o engatatão de serviço, o dançarino, o sacana, segundo um deles «o que sabe de coisas de gajas para poder falar com as gajas». Ora aí está. Segundo este concorrente, gago, feio, e bastante palerma (daqueles homens de que me afastaria em cinco segundos mal contados), para que um homem fale com uma mulher tem de saber coisas íntimas, como por exemplo, dizia ele na televisão em tom de desabafo ao espectador…a higiene da mulher, os períodos. É o novo engate da moda, se calhar, eu devo estar muito desactualizada, porque nunca tinha ouvido esta. Percebo que um homem, qualquer homem, aprenda a perceber o aparelho reprodutor feminino, acho que ajuda e é útil, para que não se assuste com as palavras contracepção, gravidez, maternidade ou até problemas de saúde, que evidentemente terão de ser partilhados com o companheiro. Mas daí até falar, como este gajo, de tampões, vai uma grande distância. Perguntava ele a outro tipo, que me pareceu mais inteligente e estava bastante enfastiado e enojado com a conversa: “ Sabes o que é que acontece a um tampão na água? “ e o outro “ Molha-se “, e ele “ Não “. E a conversa fica assim. Não só o espectador não é devidamente elucidado acerca dessa importante questão mundial «o que acontece a um tampão na água?», como ainda temos um tipo a achar que perceber de mulheres é saber da higiene delas que, já agora, se reduz ao período (e eu a pensar que as gajas gostavam do seu banhinho diário).

Depois eles têm de aprender a dançar, a vestir, a colocar às meninas maquilhagem, embora, dos seu ponto de vista masculino nunca seja preciso, porque elas são lindas de morrer. Será que os meninos sabiam que a maquilhagem é uma das estratégias femininas da conquista? Porquê ignorá-la? Grandes pacóvios…

A mim o programa parece-me simplesmente perda de tempo para o espectador, falta de investimento inteligente da TVI, e, muito pior do que isso, sustentar gente chula, que se fecha numa casa a comer à conta e a ganhar uns tostões. Alguns têm só dezanove anos, os interesses já podiam ser outros, mas como dizia o gago «lá fora nunca era eu próprio, aqui sou». Portanto, foi para ali falar de tampões e sair do armário, antes que fosse tarde, e ganhar algumas notas, que também dão jeito. Também há lá uma prova que fazem sempre no Big Brother, que é a dos tipos se auto-avaliarem e serem avaliados por outros, onde todos desatam a chorar de emoção, porque são especiais e únicos no mundo. Adorei um deles, quanto a mim o mais inteligente de todos os que lá estão, que foi terrivelmente achincalhado com adjectivos como «insensível, bruto, arrogante, pouco carinhoso com a sua companheira». A última das gajas a falar mostrou todos os seus neurónios de uma só vez, dizendo: “ Não vou comentar a tua atitude com as outras, comigo não tenho razão de queixa, e mais, se quiseres, sou a tua pombinha! “ (corou e riu-se muito). Isto só mostra uma coisa: há muitas mulheres cujos neurónios são um verdadeiro clube dos poetas mortos, ou na versão de um antigo colega meu, professor, há mulheres que não servem nem para esvaziar os colhões…

Irmãos ao quadrado

Questão psicologicamente controversa e atabalhoadamente estúpida, as razões pelas quais nós, humanos, somos felizes ou infelizes são diversas e muito complexas. Tudo começa na gestação, dizem os especialista na matéria. Depois há a criação, a educação, a cultura, a sociedade e, para além de tudo isso e mais alguma coisa, nós próprios. E isso sim define em muito o percurso que temos, como o fazemos, como gerimos as coisas. Não podemos nunca considerar que, com um percurso semelhante, sejamos pessoas semelhantes.

No outro dia vi um programa na Sic acerca de irmãos gémeos, sobretudo verdadeiros (ou monozigóticos) que me impressionou. Nunca percebi como é que pessoas que andam juntas, comem juntas, vivem juntas, fazem as mesmas escolhas, opções e têm percursos semelhantes não têm problemas de identidade. Não é só a sociedade que discrimina os gémeos, são os gémeos que se auto-discriminam por não terem, cada qual, o seu percurso individual, como a maior parte das pessoas. Todavia, duas pessoas exactamente com o mesmo percurso de vida (ou tanto quanto possível), serão igualmente felizes ou infelizes?

Nesse programa fez-me confusão, em particular, as duas gémeas que se casaram com dois gémeos, e falavam de tudo, conviviam juntas. Onde haverá espaço para a individualidade? Muitas pessoas acham uma graça desgraçada a pessoas parecidas, quase «iguais», que fazem as mesmas coisas da mesma maneira. Mas se o eu é o outro, então quem sou eu senão o outro? Aos olhos dos outros, e às vezes dos próprios gémeos, a identidade dilui-se. Não sei como pessoas assim podem estabelecer relações ditas «normais» com o mundo. Evidentemente, como em tudo, há casos em que irmãos gémeos agem de forma parecida com os outros irmãos: concordam e discordam, dão-se bem e zangam-se, batem-se e fazem as pazes. Isto é o normal para nos apercebermos de que podemos discordar ou concordar com o outro sem sermos discriminados por isso, sem ficarmos de costas voltadas ou de lado, ou magoados, tragicamente, porque a vida nos pregou uma partida dura: afinal o irmão não é o nosso espelho tranquilo e visível da realidade, a realidade é o mundo circundante, com tudo o que isso acarreta. Aquelas duas irmãs gémeas não sabiam nada sobre o mundo circundante que a outra não soubesse. Naturalmente se os gémeos as escolheram daquele modo, foi porque, subjacente àquelas vidas comuns, houve livre-arbítrio: afinal A apaixonou-se por C e B por D e não ao contrário. A menos que fossem como naquele filme dos anos 70 «Bob, Ted, Carol and Anne», em que eles trocavam de mulheres e o filme acabava com os quatro na cama, ou como os ABBA, cujos irmãos mudaram de namoradas dentro do próprio grupo. Os quatro gémeos (dois a dois) tinham uma vivência comum que se teria de pautar pelo respeito, não só pela escolha do outro (e da outra), como por tudo o resto. Se a irmã gémea chega ao pé da outra e diz «sabes lá como foi hoje na cama!», lá vão as duas comparar os gémeos no seu desempenho sexual. Como é que alguém acha piada a isto?

Eu daria uma péssima mãe de gémeos. Há alguma probabilidade de isso acontecer, graças a casos familiares. Mas nunca penso muito em filhos, não imagino sequer, o que é um bocado triste, dada a minha idade, ou não. É simplesmente um facto assumido interiormente que filhos não me fariam nada bem e só davam azo a que as pessoas exigissem o dobro ou o triplo de mim, do género «Anda lá, agora tens filhos, tens de pensar no bem deles, por isso anda cá mais vezes, cede mais vezes, sê palerma mais vezes, sofre mais vezes, ouve mais vezes que estás gorda». Os filhos servem para todo o tipo de chantagens emocionais que as pessoas se lembrem de fazer. Aliás, a minha avó nem concebe casais sem filhos, diz sempre, da forma mais trágica e utilitarista que já ouvi: “ Sem filhos eu era uma triste sem ninguém “. Portanto os filhos são tipo objectos, territórios sem ideias, nem espaço próprio, nem emoções, nem noções de felicidade. Servem aos pais como os cachorrinhos servem às crianças, para se atrelarem a nós, brincarem connosco, darem umas voltinhas e não criarem chatices.

Penso que eu, como mãe, seria o cúmulo da luta pela independência deles, de pôr os filhos a mexerem-se sozinhos e depressa, para fora do ninho. Um filho não me pode servir como uma sopa quente num dia frio, ou um cachorrinho para brincar. É um ser humano. Vai uma aposta que a maior parte dos pais não vê ser humano nenhum nos filhos? Se forem gémeos parece que a mão-de-obra aumenta. Muitas amigas minhas diziam «gostava de ter gémeos para ficar logo despachada», ou seja, dois filhos numa só gravidez. Nunca ouvi nada tão estúpido. Para além de ser, fisica e psicologicamente, muito mais difícil e esgotante, dá o dobro do trabalho e incita-nos a uma pedagogia muito mais afirmativa desde o início. Queremos que eles sejam amigos, irmãos, ou «os gémeos»? Ou não queremos nada e deixamo-los escolher? Essa seria a minha dificuldade em educar dois, em vez de um. Porque um, eu sei que incitaria logo a desenrascar-se sozinho, mas dois, têm-se sempre um ao outro para se desenrascarem, eu nem sei que mãe ou pai poderá impedir isso. Eu sou daquelas hipotéticas mães que poria filhos gémeos em classes diferentes, sem todavia ser cerceadora das suas opções individuais, que muitas vezes passam por quererem estar juntos.

Depois vem a intimidade, os namorados ou namoradas. Vêm as perguntas toscas das pessoas: «vocês trocam de namorada?», ou a célebre «fazem os exames um do outro?». São clássicos que os gémeos têm de ouvir (sobretudo se se vestirem de igual, com risco ao lado no cabelo). Nas comédias americanas há sempre um par de gémeas bimbas, louras de mamas grandes, que falam ao mesmo tempo enquanto bebem refrescos por uma palhinha. Os gémeos são constantemente ridicularizados: fazem-se filmes estúpidos com eles, servem para anúncios tolos, tão tolos que metem dó. Será que eu, individualista que sempre apanhei pancada de um irmão quando o copiava, conseguiria aguentar uma irmã gémea? Não. Faria o contrário dela em tudo, tanto quanto possível. Aliás, as minhas vizinhas de baixo eram gémeas, simpaticamente baptizadas pelo meu irmão de «trombudas» (lá vem o adjectivo no plural…), e andavam sempre à pancada: eram invejosas uma com a outra. Comigo seria assim: outra mulher como eu era demais na minha bolha existencial. Aliás, mulher e mulher dá sempre molho, tem de haver uma distância de segurança.

Ao contrário do que as pessoas possam, eventualmente, pensar, ter gémeos ou ter um irmão gémeo, talvez não tenha assim tanta piada, socialmente falando. Está bem que nunca se está sozinho, luta-se em conjunto (no caso de se darem bem e não serem como as «trombudas»), mas será que as pessoas têm a noção da individualidade de cada um? Será que os próprios ou próprias também não terão esse problema na sua relação com o mundo, com as pessoas? E se as escolhas dos gémeos não forem as mesmas, a partir de certa altura? Como todas as pessoas, correm o risco da cisão interna: se ele, afinal, não era como eu, então quem sou eu?

Muitos dos gémeos não têm uma relação «normal» de irmãos. Era dito nesse programa que por vezes tinham linguagens próprias que nem os pais descortinavam, que adivinhavam os pensamentos um do outro, que podiam sonhar o mesmo, que escolhiam pessoas do agrado um do outro. Há irmãos não gémeos que são também assim, mas é mais raro. O comum das situações é haver pancada desde cedo, discussão por brinquedos, invejas, mesquinhez, estratégias sujas para lixar o outro, conluios para matar a avó do coração, e muito boneco partido. Dessa relação faz parte o roubo, a chantagem, a torpeza de carácter, a rasteira, a mentira, a «coitadinhez» (eu era especialista em falso choro para o meu irmão levar pancada). No fundo, o microcosmos dos irmãos é a representação fiel do mundo, mas numa pequena e inocente escala, de sucessivos dilemas, traumas, mas também de alianças indestrutíveis. Se não tivermos essa estrutura, somos capazes de andar anos enganados com o mundo, com as pessoas, com a vida. É bom aprendermos que nada é fácil sem uma bengala, sem um irmão por perto, mas também é bom saber que o irmão está por perto, nem que seja emocionalmente. A mim parece-me que isto é que é saudável. Irmãos que nunca se dão bem ou que se dão sempre bem são como tudo na vida: extremos a evitar.

Thursday, March 08, 2007

8 de Março - dia da Mulher

Minhas queridas, minhas jóias, minhas flores desse jardim que é a vida, minhas gerberas (ou geribérias, consoante a florista onde forem): hoje é o vosso dia. O dia da gaja que se arranja, o dia da gaja que não se arranja e anda de quispo sujo (também tenho direito, tá?), o dia da gaja que luta, que vive sozinha, mas também da gaja que vive acompanhada, junta, casada, amantizada, o que quiserem.

É o dia da gaja de fibra, que é que a luta por um emprego todos os dias, anda de transportes sem esperar que o namorado/marido tenha pena dela e a carregue para todo o lado, é o dia da gaja que tem filhos, que sai mais cedo para ir buscá-los, corre para casa a fazer o jantar, arrumar a casa, deitar os putos e mesmo assim tem tempo para ver televisão, consolar o marido, que se senta no sofá, qual Garfield preguiçoso, a engordar, e ainda tem tempo/vontade para sexo. É o dia da mulher mecânica, que trabalha nas fábricas a ganhar tendinite e um ordenado miserável, para depois ir apanhar do marido. É o dia das senhoras da limpeza simpáticas (como esta aqui da universidade), que se esforçam por ser tolerantes com quem as maltrata. É o dia das mulheres verdadeiramente apaixonadas, como a Patrícia, que merecem gerberas (ou geribérias, já disse que depende da florista) todos os dias e são como a rosa do jardim de qualquer homem (ou lésbica). É o dia das mulheres que sabem sorrir e rir às gargalhadas (verdadeiras hárpias). É o dia das amigas que falam dos homens de forma ordinária e baixa para se divertirem, que apalpam o cu umas às outras, que vêem no ginásio o que não gostariam de vir a ter a mais na barriga e nas pernas, mas que elogiam de forma sincera os brincos e os vestidos das amigas (e até lhos oferecem!).

Hoje é um dia que devia ser celebrado todos os dias, só assim éramos sinceros e coerentes. As mulheres fazer falta para o mundo andar, para construir o mundo (mesmo que a força física seja a dos gajos!), para reproduzirem o mundo, dominarem o mundo, fazerem parte desse cosmos absurdo que é o mundo reduzido e caótico dos gajos. Os gajos não sabem nem sonham o que é uma mulher, e nós deixamos esse segredo sempre para depois. Uma mulher é… Servimos para categorizar e ordenar, tão bem como servimos para descaracterizar, desordenar, entorpecer, abalar. Somos tão depressa médiuns da fraqueza do mundo, como vamos beber da sua força ancestral e compomos tudo novamente, como no eterno-retorno heraclitiano. Uma mulher verdadeira é socrática, sabe que nada sabe, mas ao mesmo tempo sabe tudo: como crescer, como fazer, como conseguir, como contornar. Quando uma mulher não sabe, ela aprende rapidamente e anda para a frente. É assim que uma mulher deve ser.

Se hoje é o dia da mulher, então é um dia de luta; é um dia de verdade e de coerência, de amor, de sabedoria, de maternidade, de capacidades visíveis e de outras intangíveis. Parabéns a (quase*) todas as mulheres!

* excepção para: xoxas velhas, putas dissimuladas, cabras que roubam namorados ou o emprego às outras, chibas, bimbas, coscuvilheiras, atrasadas mentais fúteis e malcriadas com quem não devemos perder tempo, arrogantes que pensam que podem manipular o mundo; chatas, mentirosas e histéricas também estão incluídas. Ora toma!

As princesas dos contos infantis

Quando era menina, gostava imenso de histórias encantadas, coloridas. Adorava a Branca de Neve, a Cinderella, o Capuchinho Vermelho, a Rapunzel. Todas reflectiam o mundo feminino, visto por adultos, naturalmente, com veemência e esplendor. Ou talvez não. O Capuchinho Vermelho devia ser a Capuchinha Vermelha…era uma menina, certo? Não era um travesti tanto quanto eu saiba (é melhor perguntar ao Lobo Mau), a menos que fosse numa versão hardcore do Almodôvar. Reflecte a filha perfeita que, num dia de desobediência, deita quase tudo a perder porque não ouviu a mãe como deve ser. Nas histórias todas, as mulheres tiveram sempre um grave problema de audição (a Eva, por exemplo, Deus falou com o homem e ela deve ter ouvido à socapa e não ligou nenhuma, mania esta de Deus falar de coisas importantes como o Paraíso só com os gajos…). Com o seu problema de audição, aliado à hybris (excesso de orgulho, segundo os gregos), lá vai o Capuchinho (Capuchinha) pelas vias mais perigosas da floresta, dando de caras com o lobo. O tipo disfarça-se de avó (o Capuchinho também era míope, não? Batata crua, gelado…não vos lembra ninguém?) para apanhá-la, mas é o Caçador que o mata, protegendo as damas desavindas: menina, avó e mãe. Três mulheres: uma dedica-se à cozinha a fazer bolos à velha (que deve ser mãe, porque se fosse sogra metia veneno nos bolos), a filha vai levar os bolos à avó e a avó, pobre coitada (deficiente entrevadinha) ali está jazente, com as fraldas Lindor, decerto, ou nem o Lobo aguentava o cheirinho a mijo.

A Branca de Neve. Outro clássico. Como é mostrada a heroína? Frágil, sensível, branquinha, a Floribella à moda antiga, sem mãe (ai pobre!), muito ingénua e despreparada para o mundo. Embora haja versões porno desta história, questiono-me sempre: como terá sido a primeira noite da Branca de Neve sem os anões a ajudarem? É que a gaja encostou-se a eles durante muito tempo, a ver se era útil, se tinha jeito para alguma coisa. Não se sabe se a paparam ou não, mas deviam, porque viver tanto tempo à conta sem sexo envolvido não é bom para nenhuma das partes. Também existe a antítese da menina, que popularizou de forma negativa as madrastas: a invejosa madrasta manda-a matar, um, porque a Branca era mais jovem e bonita e o espelho quase se partia quando a gaja (a madrasta) abria a boca (não lavava a boca com Colgate, com toda a certeza), dois, porque a Branca era a herdeira de um balelas rico. Diga-se de passagem que é desta forma que eu conheço a história, mas não sei até que ponto é fiável. Da Branca de Neve todos têm pena: os pássaros, a árvore, o homem que a quer matar, até o espelho. Questiono-me se a Branca de Neve sabia fazer alguma coisa sem ser existir e respirar. De facto, precisava de um príncipe, ou isso ou se tornava prostituta (nada aliciante começar com sete anões!!).

E a Cinderella, vulgo Gata Borralheira. Esta história opõe a menina à madrasta, mas também, pasme-se, a pobreza à riqueza, qual tópico deslavado (realmente, com todas estas histórias, de onde terá vindo a ideia da Floribella?). Sim, porque madrasta e filhas querem casar com um príncipe rico para subirem na vida, só que lhes falta algo fantástico que a Cinderella tem e elas não: o pé pequeno. Portanto, a Cinderella, só porque calça o 35 ganha vantagem sobre a maralha das feiosas que calçam o 40? É uma grande razão…É o carácter que vence ou o tamanho do sapato? Também gosto de ideia de a menina ter uma fada madrinha velha, de óculos postos e varinha mágica, com regras definidas à partida: meia-noite em ponto a gaja está em casa ou vai de abóbora, vestido velho e sapatos rotos para casa, a pé ou de autocarro cheio de bêbados. Se todos os pais fossem assim é que era bom…nenhuma gaja pisava o risco.

Vamos a votos. Quem acha que as gajas hoje em dia ainda são assim? Há os Capuchinhos Vermelhos, que são as raparigas orgulhosas, teimosas, desobedientes e acabam por ser enganadas pelos lobos em pele de cordeiro. Há as Brancas de Neve: sonsinhas, falsas, fingidas, que vivem à pala do encostanço, do «ajuda-me que sou uma triste que aqui anda!». E finalmente as Cinderellas que, dissimuladas no meio do ódio das raparigas ditas fúteis, se casam com o Príncipe perfeito por uma magnífica razão: têm o pé pequeno. Continuo a achar os contos infantis muito actuais.

Na escuridão

Na vida fazemos opções de que profundamente nos arrependemos. Em relação a algumas, apetecia-nos muito voltar atrás e dizer «vou fazer melhor, de outra maneira» ou «porque é que ali estagnei e não andei para a frente?». As opções que fazemos, todas elas, têm um custo. Pode ser um custo básico ou extraordinariamente caro, tendo em conta as situações e o peso que elas têm para nós. Exemplo. Há uns anos estava tão «entalada» que não sabia o que fazer: vivia em casa do meu pai, detestava, tinha um trabalho que não me dava gosto nenhum, mas no qual investia tempo e paciência e, pior que isso, que não garantia a minha subsistência. Naquela altura vários caminhos eram possíveis: arranjar um emprego qualquer a ganhar mais dinheiro e sair de casa, continuar como estava ou viver em casa mais uns tempos e ir à procura da saída profissional que eu queria. Eu escolhi esta última, por achar terrível gastarmos oito horas do nosso precioso dia com uma actividade cuja utilidade não vemos ou que simplesmente detestamos, ou, eventualmente, num local pouco aprazível com colegas ainda menos aprazíveis. Olhando para trás, consigo perceber que tomei a opção certa para mim, na altura, e que hoje tem consequências positivas. Mas tenho de ser franca, se voltasse atrás daria o grito do ipiranga mais cedo. Faltou-me coragem suficiente para ter seguido outros caminhos que me dariam uma outra vida, acerca da qual só posso especular como seria. É verdade que tenho um emprego com muito mais liberdade do que a grande maioria das pessoas. Ninguém vai contabilizar se eu cheguei mais tarde e porquê. Mas como em tudo, é uma liberdade extremamente relativa. Tenho prazos, posso ser despedida e os benefícios desta profissão, a nível da lei, são nulos. Zero ponto zero. É como se eu não existisse. No entanto, esta profissão tem totalmente a ver comigo: é a alienação mais profunda do ser humano ficar sozinho a ver números e palavras todo o dia, mecanicamente.

Ao escolher este caminho, eu provavelmente segui aquilo a que se chama instinto: era o que eu sentia que queria e que gostava. Tem um preço, claro. Um preço duro como a maior parte das vezes as coisas têm para uma pessoa conscienciosa. Para quem não tem consciência, eu não sei bem qual é o preço a pagar. Talvez seja a alienação pura e dura das coisas profundas da vida, dos sentimentos genuínos, do amor generoso e sem barreiras que só se dá na maior comunhão da vida, que é a de fazer as pazes connosco e saber que estamos no caminho certo, de uma forma afirmativa, combativa, mas não arrogante. A arrogância serve aos mais fracos como uma luva: disfarçando-se nela, protegem-se do mundo e das falhas do mundo. Como dizer a um arrogante que ele (ou ela) é um alienado(a)? Não dizendo. Não temos necessariamente de frustrar as ingénuas expectativas dos outros. Normalmente com a arrogância conseguimos afastar as pessoas que queremos de nós (talvez por isso eu gostasse muito de conseguir ser arrogante), ou melhor, as que menos queremos ao pé de nós, porque, por alguma razão, nos incomodam com o que são, com o que sentem, com o que sabem, com o patamar que atingiram (e não falo de bem materiais, evidentemente). No fundo, não temos de iluminar os outros. Os outros que se amanhem. A melhor arma costuma mesmo ser o desprezo, a pouca convivência ou uma arrogância talhada para a situação (para quem consiga essa proeza…).

A maior parte de nós vive na escuridão mais completa e determinante. Não vê, não quer ver. Quanto menos participamos no mundo, mais fossilizamos na estupidez e na ignorância (nem todos se afastam para pensar, como os filósofos). Podemos achar que fazemos as coisas mais sábias e sensatas do mundo, mas convém olharmos em redor: fazemos mesmo as escolhas mais acertadas? Eu sou muito reflectida. Em primeiro lugar, porque a minha vida é um exemplo vivo em como tudo de bom e de mau me volta às mãos como um boomerang (não sei se esta lógica se aplica de forma coerente à vida das outras pessoas, falo só da minha). Descubro também que mais vale não andar aos pulinhos a dizer «acontece, vá! Acontece!». Há coisas que só nos voltam às mãos anos depois. Depois, para chegar a esta conclusão, eu tenho mesmo de ser uma pessoa reflectida e olhar em volta, porque nitidamente há pessoas para quem tudo é «acaso do destino», e eu continuo a não achar isso. Se formos ver bem, as pessoas juntam-se por um razão e apaixonam-se por uma razão: aprender umas com as outras uma lição qualquer. De uma forma ou de outra todos chegamos lá.

Se nos vendemos a uma relação sem sabor, não podemos esperar que com o tempo fique melhor, é mais provável até que nos apareça outra pessoa, interessante, que venha a fazer parte de outra vida paralela, a tal que gostaríamos de ter. Se estamos numa relação por amor (já não posso usar o termo vender, que tem uma polissemia desgraçada), então devemos esperar ainda mais dificuldades, porque por muito que o amor flua, nem sempre a vida se compadece. A relação tem de ser trabalhada e as pessoas têm de se esculpir a ela com arte e mestria. Numa relação de amor tudo custa, ao contrário do que as pessoas pensam: custa falar porque temos medo de magoar, custa estar em silêncio, porque não estamos a dizer a verdade toda todos os dias, como prometemos, custa ter problemas porque o outro vai sofrê-los também, custa estar doente porque o outro vai perceber. Há um veio transmissor que não se perde. Se não houver amor, parece um bocado indiferente, desde que lucremos, a vida anda para a frente.

Só devemos estragar uma vez as ilusões que os outros têm da vida; do mesmo modo que não vale a pena explicar à Patrícia que não existe Pai Natal, ela irá sempre acreditar, porque ela acredita no que quer. De igual modo, não temos de batalhar para as pessoas jogarem limpo quando as pessoas não sabem o que isso é e nem estão a ver com quantos paus se faz uma canoa. Há ilusões que não vale a pena destruir. Umas, esboroam-se com o tempo, outras simplesmente se instalam e tomam conta da vida das pessoas. E passamos o resto da vida fechados em casa a pensar que fizemos muito bem e a não saber nada de nada acerca daqueles que nos rodeiam. Na escuridão.

A batata crua

Tenho de confessar que levo uma vida muito interessante, quando poderia levar a vida mais banal do mundo. Como a grande maioria das pessoas, trabalho, levanto-me cedo, ando de transportes públicos, faço a lida da casa. Não há nada de especial nisto. Os meus vizinhos fazem barulho, vejo filmes no DVD, como pipocas aos fim-de-semana enquanto vejo filmes de terror com o meu marido, o meu irmão, a minha cunhada, vejo o meu sobrinho crescer e chorar quando lhe doem os dentes, oiço a minha avó a queixar-se que eu não dou assistência ao meu marido, vejo o meu pai encaixotar-me as coisas que faltam trazer para minha casa. Todavia, toda a minha vida é uma anormalidade e um absurdo completo, e mesmo até ter chegado a esta ponto classificado como «normal», muita tinta correu, muito desastre aconteceu. Não considero ter atingido níveis de normalidade aceitáveis, mas acho que lá chegarei, com a presunção que o Saramago tinha de que «eu sou feliz, o mundo é que está mal». Lamentavelmente, só assim sobrevivemos à falta de chá das outras pessoas.

Como diria a Patrícia, a coisa mais simples que consigo ter é um almoço com ela, e mesmo assim sou obrigada a escolher se quero empadas de carne, de frango ou de atum. Mas tanto eu como ela já tivemos a percepção exacta do quão erradas estávamos ao pensar na normalidade de um almoço entre duas gajas que gostam de estar à palheta. Nunca a Patrícia deve ter percebido que eu tenho dela uma visão dúbia: vejo-a como a mocita mais nova, que fala daquilo que eu já passei, mas também fala com a clareza e a inteligência emocional de quem está longe dos freaks de que lhe falo, podendo avaliar situações com a sabedoria que muitos mais velhos não têm. Na idade dela, eu perdi a minha mãe. Com isso, perdi grande parte da ingenuidade, descobrindo que a força que me animava a vida era a certeza de que a minha mãe me protegia dos males do mundo. Agora acho que a Lisa tem mais razão do que nunca: sou eu que tenho de me saber defender e aos poucos vou aprendendo (sei que às vezes não parece…), com muitos tombos pelo caminho. Hoje fui ao tarot on-line, com o qual gosto de brincar, logo pela manhã, quando estou mais agastada, ensonada e enraivecida (depois de almoço passa). E a interpretação das cartas dizia algo do género: «a força está dentro de ti, não esperes que ninguém te reconheça. Os grandes ocultistas escondem-se no silêncio, sem serem vistos.» Eu sei que são cartas e nem lhes toquei, não estava ali a energia das minhas mãos, como seria suposto numa leitura «normal» de tarot. Mas a frase era fantástica.

Eu já não sei o que é uma vida banal. Se tivesse uma não a reconheceria como tal. Deve ser o que acontece à grande maioria das pessoas. Acha-se especial. Ninguém aguenta o tédio durante muito tempo. Há, no entanto, pessoas entediantes – que também se acham especiais. Eu acho sempre uma tristeza não ter nada a dar ao mundo em novidade. Sempre quis ler, escrever cada vez mais. Informar-me. Acho-me sempre mal informada e inculta em tudo. Outras vezes queria muito ser banal, só para sentir a liberdade de não ter de me preocupar com questões moralistas, de bem e de mal, só para ser simples, fluir um bocado, não me chatear tanto com a imoralidade dos outros. De repente a minha vida era simples. Era bom era…

Mas tenho de confessar que há coisas muito engraçadas que estou certa que acontecem todos os dias, mas que só eu – e pouco mais pessoas – estão atentas ao ponto de as ver.

Íamos nós, eu e a Patrícia, almoçar no jardim ao pé do metro de Picoas e lá estava um daqueles cromos inesquecíveis. O raio do homem parecia estrangeiro, mas tirou-nos logo a vontade de comer. A Patrícia fugiu a rir e eu apalermada, míope como o raio, a pensar «lá está um homem das obras a comer um gelado!». O gelado não era um gelado. Era uma batata, bem grande, crua e descascada, espetada numa faca, e o homem lambia-a como se fosse um gelado, provavelmente pensando que era (caramba, ninguém lambe um batata daquela maneira, excepto se souber a magnum amêndoa!). Fiquei a pensar que raio diria o homem à sua amada: «querida, vem comigo ao jardim comer uma batata crua!».

Depois fomos para o Saldanha residence. Lá arranjámos uma mesa. Azar dos azares, a mesa estava perto de um sem-abrigo. Com todo o respeito. Mas era um sem-abrigo. Não gosto muito daquela história «ai que nojo que me mete!», mas metia, tenham paciência, mas pés cheios de crostas não combina com comida. Tivemos de ficar ali, e lá andava ele a pedir encarecidamente a alguém que lhe abrisse as latas gigantes de grão e o pacote de leite. Comeu por duas ou três pessoas. O nosso tupperware de comida parecia um menu de crianças perante aquele espectáculo da pilha de atum com grão e um litro de leite.

Quando voltei de autocarro, vinha cheio e lá comecei eu a tentar perceber as energias que fluíam à minha volta. Ia lendo devagar e sem pressas, porque a pressa é inimiga da perfeição, e normalmente eu capto exactamente o que não quero. Entram duas velhas e acaba-se o sossego. A conversa oscilou entre o «está frio» e o «não está frio», o «vim muito agasalhada», e o «falta-me um casaquinho mais forte para logo à noite». As velhas têm este dom, de irromperem pelo meio das energias que flúem e deixar-nos suspensos em conversas toscas que não levam a nada. Vão lá dizer-lhes que a vida é curta, que elas passarão o resto dos minutos e segundos do dia a discutir se está frio ou se está calor, se trouxeram o casaco adequado ou não. As velhas interagem muito, o que me mete confusão, a mim que fujo dos vizinhos todos para não lhes falar. Metem-se com as pessoas de qualquer maneira, como quem não tem nada a perder. Talvez não tenham mesmo nada a perder.

Moral da história: a vida é crua como uma batata, mas às vezes (muitas vezes e ainda bem!) dá vontade de rir…

No mundo da ilusão

Nunca gostei de ilusionistas, eles que me desculpem a franqueza. Gosto das varinhas mágicas onde elas sempre devem estar: nas mãos das fadas ou na cozinha, para fazer sopa e bater a mousse. Gosto de fadas porque não existem, mas são muito bonitas, dóceis, ternas e boas. Se a minha vida me tivesse corrido bem, era assim que eu era. Nem anjo nem diabo: uma fada bem bonita, de cabelos longos e ondulados, de asas transparentes. Uma fada é uma bruxa que se dedica a magia branca (deve ser, nunca conheci nenhuma fada e bruxas só aquelas mais comuns e vulgares).

A vida puxou-me para o realismo, ou eu deixei-me puxar para esse lado mais negro. Olho de frente ou de lado, de soslaio, e simplesmente vejo. Não me perguntem porquê. Mas vejo caras deslavadas, gente «mal pronta» (expressão da minha avó, que vinha sempre lado a lado com o «parece mal andar assim»), tristeza, emoções diversas, auras, más energias. Andar de transportes torna-se a minha actividade favorita, olhando, vendo, percebendo, estudando, analisando as coisas e as pessoas mais diversas. Acho que tive sempre esta capacidade, mas na verdade nunca explorei e nunca a bloqueei (nem sei fazê-lo). Há energias que me perturbam ao ponto de me tirarem o sono e me fazerem adoecer, são extremamente negativas e dominadoras. Algumas não são nada concretas. Muitas vezes, no autocarro, consigo perceber que as pessoas são estúpidas mesmo antes de elas abrirem a boca. Outras vezes consigo perceber que são infelizes, mesmo muito. Outras vezes consigo perceber que não gostam do que fazem. Outras vezes que aparentam o que não são e mascaram-se de outra coisa. Se me perguntarem se eu gosto desta capacidade, não sei responder. Nunca me imaginei sem ela, porque em miúda sabia quais eram os amigos dos meus pais que não eram amigos deles e estavam a ser hipócritas – não é comum descobrir isto quando se é criança e nos dão doces.

O meu pai tinha um amigo cuja energia era completamente diferente do que alguma vez vi numa pessoa. Mais tarde o meu pai disse-me que o amigo tinha estudado para padre, mas desistido, e que se dedicava às artes ocultas. Aquilo assustou-me: aquela pessoa calma e harmoniosa tinha um íman grande, um poder atractivo e uma confluência de energias enorme. Era uma espécie de médium. Talvez eu possa nem sequer acreditar em bruxaria, mas em energia sou obrigada a acreditar, visto que experiencio todos os dias uma partilha energética com algumas pessoas que se cruzam comigo. Algumas afectam-me e ficam comigo todo o dia. No outro dia um homem no autocarro assustou-me com um simples olhar. Virou-se para trás e olhou para mim. Bastou uma vez para eu perceber que ele tinha algo de errado. A mim parecia-me que ele tinha roubado alguém. Não era boa pessoa. Como é que eu sei isto? Boa pergunta.

Quando, casualmente, dou de caras com este tipo de energia e a pessoa fica perto de mim ou da minha vida, isso incomoda-me muito. Há pessoas com auras frias, tipo metálicas, como se tivéssemos chocado com um objecto de ferro. Não parecem sofrer, têm o sofrimento bloqueado, mas são agressivas, competitivas, manipuladores. Sei hoje, depois de algumas leituras, que faço parte dos 10% que se apercebem, em cinco minutos, de que alguém é manipulador. Regra geral essas pessoas são simpáticas, mas algumas delas nem se chegam a mim nem me toleram, como se eu as repelisse. A todos nós já aconteceu isto, certamente, embora não demos importância de maior ao caso. É mais grave quando isso nos afecta ao ponto de já não conseguirmos falar, sorrir ou conviver com essa pessoa. Há, no entanto, pessoas que não me afectam minimamente, nem para o bem nem para o mal. As pessoas que nos afectam têm algum controlo sobre nós, de algum modo conseguem incomodar-nos, seja com uma atitude antitética aos nossos valores, seja como uma atitude manipuladora do nosso carácter. Existe a chamada contra-manipulação, que eu nunca consigo fazer mas que é bastante inteligente, que consiste em fazer o «inimigo» pensar que concordamos com ele e até simpatizamos, mas gozando com a sua cara desalmadamente. Nem todas as pessoas são «gozáveis», mas a grande maioria dos manipuladores são suficientemente narcisistas para pensar «epá, tenho qualidades para dar e vender!». Deste modo, todos estamos em sintonia no tal mundo da ilusão, em que nos fazemos passar pelo que não somos aceitando o que os outros não são, mas fingem que são. Vivemos contentes e felizes na mentira que criámos. Parabéns a todos os ilusionistas que subiram na vida à custa dos outros. Dá trabalho, mas compensa.