Thursday, March 22, 2007

22 de Março 2007

Hoje a minha mãe faria 60 anos, um número tão redondo quanto os anos que eu farei em Abril, 30. Portanto, com a minha idade, a minha mãe tornou-se mãe mais o determinante possessivo «minha». Quer dizer, mais ou menos. As pessoas nunca são nossas, nós é que pensamos que sim. Talvez por isso eu ache que a amizade é valiosa, porque a possessão fica de lado, pelo menos na maior parte das vezes. Desde há um ano que a Patrícia França é «minha» amiga, mas eu tão depressa estou com ela como não estou e ela nunca é menos minha amiga por isso – ainda bem!

Desde há muitos mais anos que sou amiga da Tembwa, da Patrícia Torres, da Ângela, da Paula, da Diana, e apesar de serem minhas amigas, não possuo o poder de estar sempre com elas quando me apetece. Umas são casadas, outras vivem longe, outras estão ocupadas. Com as amigas e os amigos é assim. Mas com os pais não. Os pais existem e estão sempre ali, à mão de semear. É um compromisso eterno, para tudo o que é bom e para tudo o que é mau.

Eu e a minha mãe nunca tivemos feitios compatíveis, nem nunca nos demos perfeitamente, não tínhamos grande compatibilidade como pessoas. Eu achava-a queixosa de tudo, orgulhosa, má gestora de problemas. Aquela pessoa que desatina com tudo e não resolve nada com ninguém, não distribui tarefas, faz tudo sozinha. Dito assim, parece que me estou a descrever. Na verdade, eu e a minha mãe éramos parecidas, uma espécie de espelho enviesado, que nunca se olha de frente, mas só de lado, para não se assustar com tanta fraqueza e com tanta humanidade, disfarçadas noutras capas nas quais sou incapaz de me encobrir, como a dureza, a frieza, a distância. Só conheci melhor a minha mãe no dia em que ela entrou no meu quarto e me disse: “ Tenho algo difícil para te dizer “. Fiquei muito triste, muito magoada. Não tanto pela doença dela, infelizmente vulgar, mas pela capacidade que ela tinha tido de encobrir tudo a todos, de forma a proteger tudo e todos. Mas quando ela falou daquela maneira, ela era mesmo ela, pela primeira vez na vida: triste, desolada, frágil, esquecida. Dias antes tinha-me perguntado «Conseguias sobreviver sem mim? O que sabes fazer em casa?». Até aí era questão que nem se punha, porque eu não fazia nada, ela nem me deixava entrar na cozinha. Durante uns tempos depois da morte dela, a cozinha ficou intocável, tudo porque eu assimilara a mensagem «Não toques em nada, deixa tudo como estava». Mais tarde eu e o meu pai reformulámos a cozinha: ficou suja, caótica, mal decorada. Ficou à nossa maneira e não à maneira dela.

Depois ela disse-me «o mais difícil está feito: contar». Nem disse «contar que estou doente». Mas estava brutalmente doente e foi mais um ano de pura ilusão para todos, de que ela resistia bem, ia sair bem daquilo, viva e até de boa saúde. Não posso dizer que tive esperança até ao fim, seria mentira. Acho que fui forte, hoje sei-o bem, porque de repente passei a integrar a ideia mais difícil de todas na minha cabeça (e mais tarde na minha vida): eu sabia que ia perdê-la. Não como se perde um emprego, uma casa, uma roupa, uma bolsa de estudo. Ia perder tudo isso vezes cem. Enquanto ia engolindo o afastamento, despedi-me dela e disse «agora tudo vai ficar bem. As dores passam-te e isso é bom». Ela disse que sim, mas sabia que não. Ela sabia que ir para o hospital era sinónimo de morte. Eu também sabia. E portanto fiquei a ver, com esta simplicidade toda que vos digo, porque se há coisa nesta vida que é simples é isto: ela faria o mesmo por mim sem hesitar, certo? Então lá estava eu, e o Ricardo, e o meu pai e os meus avós, e sob toda essa estupefacção, um sofrimento atroz e irredutível, que cada um geriu à sua maneira. Por isso ficámos ligados nessa coisa triste que é falar no passado de uma pessoa que está a morrer, «ela era…», e ela ali, louca por viver e não perder a batalha, da qual se despediu com a frase que mais marcou até hoje: “ Trabalhei tanto e lutei tanto e agora vou morrer. É injusto. “

Toda a minha biografia, física, moral, psicológica, foi marcada por este acontecimento, que a mim me pareceu uma tragédia grega. Dela retirei também a frase do Paulinho, que um ano antes perdera o pai em circunstâncias tão semelhantes que ainda hoje estamos os dois tatuados pela morte de um modo absurdo e quase irmão: “ Não te despeças. Nunca se sabe se se voltarão a encontrar. “ Sei que me pareceu uma frase inteligente, e sobretudo, uma frase que não era dita para me consolar, porque isso ele, e só ele, podia saber que no momento era impossível. Não há consolo possível. Quando alguém morrer, não consolem familiares, deixem-nos só chorar e fiquem ao lado a ver e a aprender, mais tarde ou mais cedo calha a todos nós. Apesar de eu não defender a tese da vida para além da morte, até porque acho isso uma presunção sem par da parte do ser humano, acredito que o meu cérebro seleccionou uma parte qualquer da minha mãe e ficou com ela. Tem dias em que me custa, que é uma parte negativa, de depressão, de sofrimento puro, de queimadura integral do interior. Mas noutros dias, e é nesses que devo acreditar, em que a leveza, a doçura, a pureza tomam conta de mim e fazem com que eu pense na frase do Paulo e acredite que ele tem razão: muitas vezes ela está de mão dada comigo e eu sinto isso.

A minha mãe não gostava de fazer anos. Mas que diria a minha mãe hoje, se visse um neto, se soubesse que tem uma nora (amancebada com o meu irmão, mas é nora)? Acho que iria adorar. Eram coisas de que a minha mãe falava muito, são coisas em que gostamos de pensar: netos. Mas ela também dizia muito que não queria chegar a velha, e como diria a Patrícia, é preciso cuidado com o que se deseja…

Depois veio uma época negra da minha vida que me ensinou e continua a ensinar o que é a vida e o que são as pessoas. Porque até ela morrer, o mundo não era perfeito, mas eu não sonhava da missa metade. Não é fazer-me de coitadinha, é dizer mesmo que eu era ingénua. Em primeiro lugar, descobri que ter uma depressão é terrível. Sentimo-nos diferentes, porque vemos tantas pessoas a passarem pelo mesmo que não tomam comprimidos, somos impelidos a pensar que somos «fraquinhos», «parvos», «pouco corajosos» ou que «não damos luta». Essas palavras são como as sanguessugas, entram na nossa carne e sugam-nos o sangue. Vamos sendo impelidos a pensar que não estamos preparados para a vida, e muito menos para a morte. Muito menos para a morte de um Eu que deixa de existir do mesmo modo. Tenho lido tudo e mais alguma coisa sobre depressão, e descubro sempre o mesmo: temos medo de nós próprios, da cisão, como lhe chama Arno Gruen. A cisão é quando percebemos que, antes daquele pequeno ou grande desastre, nunca fomos nós próprios. Éramos o que o exterior impunha. E logo eu, que sempre achei que me opunha ao exterior. Mas ter uma depressão acaba por ser isso: vemos estampada a desilusão na cara das outras pessoas «então? Foste-te abaixo porquê? Tens de continuar em frente!». Nunca sabemos bem se queremos esbofetear ou cuspir na cara de quem nos diz isto. E não vale a pena dizer às pessoas «olha, se passasses por isto…», porque muita gente passa com razoável sucesso. A cisão só se dá perante alguns pressupostos: reflexão, baixa de defesas, assunção de que somos fracos, humanos, frágeis. Se não entrarmos em cisão, é porque já sabíamos que éramos assim. E eu sabia, mas não queria ser assim. Negava completamente, como hoje em dia ainda nego, que podia falhar. Mas falhei. A minha mãe adoeceu gravemente, eu vivia com ela e nem dei conta.

Ainda hoje não aceito nada bem os erros – que são sempre os mesmos – com as pessoas: dar confiança a mais, ter expectativas elevadas de compreensão. O mundo não se passa assim: a regra não é nada essa. Para sermos especiais para alguém, temos de escolher pessoas especiais, que para mim são as pessoas que assumem as suas fraquezas, e nunca o contrário. Alguém que me diga que não erra, que gosta de toda a gente (ou toda a gente gosta dele/dela), que faz tudo bem, que é honesto, trabalhador, determinado, perfeccionista, é alguém que está a mentir. Este tipo de ser humanos existe em dois lugares: no paraíso, com os anjinhos (nesse caso já deviam ter morrido, o paraíso para eles até tem Via Verde), ou no planeta dos chatos. Pessoas assim são parvas e chatas, mesmo que, bem lá no fundo, sofram como nós. Não assumir a humanidade é como contrariar a respiração. Eu sou míope, mas ainda sei ver quem são os mentirosos que por aí andam a dizer estas barbaridades.

A maior parte das pessoas que se trata ou fica viciada nesse tratamento ou nunca mais quer ver terapeutas (não é agradável termos de aceitar o pior de nós próprios). Eu estou no meio disso. Tenho saudades da calma e da placidez da psicóloga que tive, e da loucura (que me parecia sã) do psiquiatra, que tanta graça achava aos escritores e ficava todo contente quando tratava um. A psicóloga podia ter estado sempre ali: era uma pessoa preciosa, mas a tempo percebi que o meu caminho era para ser trilhado sem ela, sem essa ajuda, ou como diz a Lisa, pobres não podem ter depressões. Não saí de consultórios a dizer «valho imenso como pessoa», «sei muito sobre os outros e sobre a forma de lidar com os outros». Aliás, acho que estou a escrever frases que nunca disse acerca de mim mesma, e talvez nunca tenha achado nem uma coisa nem outra. Sei pelo menos que procurei seguir um caminho saudável: sem negar as minhas fraquezas e assumindo um compromisso comigo mesma – o comprometimento de que vou melhorar enquanto ser humano.

É verdade que é graças a mim que acho isso, mas fui muito ajudada, preciosamente ajudada. De 2001 para 2007 conheci a Célia, fui a S. Tomé com ela e com o Ricardo (e mais alguém que não se bronzeava porque usava factor 45), conheci o Pedro, o Eduardo, a Lisa, a Maria, o Serginho, a Patrícia, a Helena, e com cimento dado por eles e todos os outros amigos, cá estou eu a comemorar os 60 anos da minha mãe, cuja mão ainda seguro quando quero muito uma coisa ou quando ando de avião (sim, porque a Célia ou o Pedro não podem ir sempre comigo).

De 2001 para 2007 também conheci pessoas que me ensinaram que o mundo não é um lugar seguro para se viver graças a elas, porque manipulam, distorcem, fazem cara de cu, aproveitam-se dos mais fracos, são más línguas, mal-educadas, arrogantes, maldosas, estúpidas ou simplesmente más. A todas essas, um agradecimento especial, principalmente por me ensinarem que eu não quero ser assim, aliás, que eu não vou ser assim e que, tal como a minha mãe, vou-me esforçar para que os meus filhos (e sobrinhos provenientes do casal pensalinho) não sejam assim, mas pessoas generosas, cooperativas, genuínas e com imenso amor para dar ao mundo. À minha mãe, muito muito obrigada!

Parabéns, mãe!! Vivam os teus 60 anos.

1 Comments:

At 2:52 AM, Blogger Brisa said...

É pena que muitas vezes só consigamos dar valor às pessoas quando deixamos de as ter à mão. No entanto, tudo vale a pena se a alma não é pequena - e a tua é tão grande que soube agora entender quem era a Luciana. Aprender é isso mesmo - é ser-se capaz de reflectir e sentir no coração a verdade das coisas.

 

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