A Bela e o Mestre
O mundo foi, desde há muitos anos, atravessado por uma correnteza de ar. Abriu-se a caixa de Pandora, saiu tudo de mau lá de dentro. Quer dizer, já havia, toda a gente sabe que a maldade é humana, mas na verdade a maldade já teve graça, quando o Marquês de Sade entupia rameiras de rebuçados de licor envenenado, por exemplo. Poucos terão conhecido como ele as facetas mais perversas do ser humano, não só a nível sexual, preconizando o sexo anal, mas acima de tudo pela raiva, pelo ódio de vingança ao próximo, pelo ciúme e crueza de espírito.
Mas hoje em dia há pouco para ter graça. De que vamos rir, se, como diz Arno Gruen, estamos distraídos com milhares de estímulos externos? Que graça vamos achar aos outros, ao que nos acontece, ao que lhes acontece? Tenho um ponto no meu carácter que considero sobejamente útil: a sublimação pela graça. A Diana fala-me sempre disso e de como eu e o meu pai (perito na mesma área comportamental) achávamos graça ao facto de não encontrarmos nada em nossa própria casa depois da morte da minha mãe. Terá mesmo graça sermos assim tão parvos? Não. Mas nós achávamos graça à nossa figura tola a abrir e fechar gavetas, no meu caso ainda era para procurar objectos pouco usados, mas o meu pai até a gaveta das cuecas falhava. Numa situação destas, creio que dramatizar seria o pior. Por ter descoberto isso, aprendi cedo a achar piada às coisas mais incomuns e palermas, mas também a ficar chocada com aquelas que menos tocam as pessoas.
A TVI podia ter arranjado outra coisa. Não era preciso andar a vasculhar o pior do ser humano, como nos antigos e sucessivos Big Brother. Este parece outro, o programa a Bela e o Mestre, numa clara (?) alusão à Bela e o Monstro. O formato é, obviamente, estrangeiro, e não tem nada que se lhe diga. De um lado rapazes feios e inteligentes, do outro raparigas bonitas e burras. Querem melhor do que juntá-los aos pares? Acho que o público deliraria se eles ficassem todos juntos e elas todas juntas. Eles beberiam cerveja até rebentar, elas desgrenhavam-se umas às outras.
Aliás, vai sendo assim que mulheres se distinguem de homens, desculpem o prosaico e caricaturável da questão, mas mulher e homem que se tratem de igual para igual é muito raro, sobretudo se forem casados. Quantos não põem a mulher num pedestal ou, pelo contrário, a submetem a comentários jocosos e tristes? Pois tratar de igual para igual não é nem um nem outro: não é tratar a mulher como fina flor, qual jarro de porcelana da dinastia Ming, nem como uma megera torpe que está ali para cozinhar, lavar e limpar ranhocas aos filhos. Claro que a maior parte dos homens tem nuances entre um pólo e outro (e ainda bem!), mas nem falo disso: falo de terem os mesmos direitos e os mesmos deveres em casa, de se ajudarem mutuamente, sem a desculpa comodista do costume: «ela faz» ou «ele faz». Esse é uma das mais profundas convicções da minha vida: igualdade, tendo em conta as diferenças razoáveis que temos uns dos outros, físicas e psicológicas.
O programa da TVI vê o mundo a preto e branco e sem nuances de maior. Elas são bonitas, logo burras, eles são feios, logo inteligentes. Já agora, porque não mulheres feias e inteligentes e homens bonitos e burros? Vêem como o mundo é machista? Continuamos Evas a tentar o homem com a beleza, mas sem miolos que nos ponham em pé de igualdade. Durante uns dias, ali estive eu a apanhar bonés, a ver o programa sem entender nada, com eles a fazerem ginástica e elas a responderem a perguntas. Depois percebi: eles são os mestres delas, tipo professores, e as gajas têm de se safar nas perguntas, não sei com que periodicidade, mas talvez semanal, tipo gala, mais bem vestidas do que o comum. Vamos ver então aquilo que eu aprendi a ver o programa. Em primeiro lugar, aquelas raparigas são mesmo burras, não são só ignorantes, como são toscas, bimbas, chatas, fúteis. Como diria a Lisa, é gostar mais de merda do que de flores (a expressão é linda!).
Percebi também que a beleza é muito subjectiva. Eu pensava que tipas de cabelos compridos, mamas grandes e fio dental já tinham passado de moda, mas deve haver um botão qualquer na cabeça masculina que diz «baba-te quando vires um fio dental, mamas grandes e cus». De cara as meninas não são nem mais nem menos do que a vulgar estudante universitária, mas andam sempre produzidas, armadas ao pingarelho, como diria a minha mãe. Usam milhares de acessórios, maquilhagem aos montes, e, como dizia uma delas «Preciso que me dês tempo para as minhas tarefas: pentear o cabelo e pôr maquilhagem». O rapaz, estupefacto, continuava «mas temos de estudar, e quando é para estudar não podes estar a pentear o cabelo». Ao menos o programa dá lições pedagógicas, tipo «Se conduzir não beba».
Para além de eu ter aprendido que Azoto é uma cidade no Japão, fiquei a saber que Lisboa e Porto são regiões autónomas e, segundo um dos «mestres», uma recta «é como uma auto-estrada», portanto, a auto-estrada não tem princípio nem fim? A pergunta da rapariga não se fez esperar «e se a auto-estrada tiver uma saída? É recta na mesma?». Também gostei daquele rapaz despenteado que solicitava ao seu par a explicação de como se encontrava o peso de alguém, ao que ela respondeu «vais à farmácia e pesas-te numa balança». Eu acho que ela tem razão… Tudo aquilo dá-me sempre a sensação de que é melhor não forçar muito ou as meninas estoiram mesmo os miolos. Num dos episódios uma delas chorava na casa-de-banho perante o olhar estupefacto das outras «opá, não sei estudar, é muito para mim!».
Não há nada que me deixe mais descontente do que pessoas burras com pretensões a serem inteligentes. Naquilo que consigo perceber, na vida, procuro sempre não me convencer de que sei muito, até porque convivo diariamente com pessoas que sabem muito mais do que eu, pelo menos nas áreas em que trabalho e às quais me dedico. Mas gente pretensiosa, que se acha o centro do universo, é do pior que há. E aquelas raparigas parecem todas assim, embora a pretensão delas seja mais agradar ao exterior e manipular o seu par, do que serem conhecedoras de matemática e geografia.
De um ponto de vista sociológico, todos estes reality shows ajudam ao estudo sociológico da espécie humana e do seu comportamento em grupo. Afinal, o que queremos, ou não, aprender com os outros? A manipular, a ser manipulado, a gostar, a crescer, a estabelecer regras, queremos saber, conhecer, aprender mais? Todas as relações devem ter uma resposta, mesmo aquelas que nos são impostas, social e familiarmente. Há pessoas cujo carisma não entendemos e que prendem dezenas e centenas de outras ao seu redor, no entanto, num contexto maior, percebemos a sua fraqueza, a sua tibieza emocional, a sua falsa comoção com o próximo, e descobrimos simplesmente aquilo a que vulgarmente se chama vazio.
Arno Gruen diz também que mulheres vazias atraem os homens cuja masculinidade tem de ser, de algum modo, comprovada, porque eles vão à procura do amor que não existe, que é só o reflexo puro e duro da sua falta de afirmação como homens. Esses homens têm tendência a achar que as mulheres mais interessantes não se dão logo, têm o amor como um tesouro escondido e não o mostram a ninguém. Muito vulgarmente isso só quer dizer «olha, não gosto de ti, estou aqui por outras razões» e o homem lê «amo-te tanto que nem sou capaz de mostrar». Ridículo, não é? Por isso eu acho sempre que a paixão subjaz à vida de qualquer ser humano, mas o amor, esse, constrói-se numa maturidade e num registo muito diferentes, porque é um comprometimento com nós próprios: é o espelho do que somos, é a concepção que nós temos de nós mesmos. Essa é a razão pela qual pessoas submissas encontram parceiros dominadores e vice-versa: é a nossa falha tectónica, aquilo que abala mais, que é o fulcro do problema, o nosso terramoto interior.
Parêntesis intelectualóides à parte, vamos aos mestres. As belas estão definidas. Os mestres são os tais rapazes inteligentes, pouco populares, gagos, engonhados, paspalhões, mal vestidos, mas que têm de mudar tudo isso, tornando-se, nas garras afiadas das senhoras, gajos com estilo. Aqui vem a outra ideia preconceituosa. O que é um gajo com estilo? É o engatatão de serviço, o dançarino, o sacana, segundo um deles «o que sabe de coisas de gajas para poder falar com as gajas». Ora aí está. Segundo este concorrente, gago, feio, e bastante palerma (daqueles homens de que me afastaria em cinco segundos mal contados), para que um homem fale com uma mulher tem de saber coisas íntimas, como por exemplo, dizia ele na televisão em tom de desabafo ao espectador…a higiene da mulher, os períodos. É o novo engate da moda, se calhar, eu devo estar muito desactualizada, porque nunca tinha ouvido esta. Percebo que um homem, qualquer homem, aprenda a perceber o aparelho reprodutor feminino, acho que ajuda e é útil, para que não se assuste com as palavras contracepção, gravidez, maternidade ou até problemas de saúde, que evidentemente terão de ser partilhados com o companheiro. Mas daí até falar, como este gajo, de tampões, vai uma grande distância. Perguntava ele a outro tipo, que me pareceu mais inteligente e estava bastante enfastiado e enojado com a conversa: “ Sabes o que é que acontece a um tampão na água? “ e o outro “ Molha-se “, e ele “ Não “. E a conversa fica assim. Não só o espectador não é devidamente elucidado acerca dessa importante questão mundial «o que acontece a um tampão na água?», como ainda temos um tipo a achar que perceber de mulheres é saber da higiene delas que, já agora, se reduz ao período (e eu a pensar que as gajas gostavam do seu banhinho diário).
Depois eles têm de aprender a dançar, a vestir, a colocar às meninas maquilhagem, embora, dos seu ponto de vista masculino nunca seja preciso, porque elas são lindas de morrer. Será que os meninos sabiam que a maquilhagem é uma das estratégias femininas da conquista? Porquê ignorá-la? Grandes pacóvios…
A mim o programa parece-me simplesmente perda de tempo para o espectador, falta de investimento inteligente da TVI, e, muito pior do que isso, sustentar gente chula, que se fecha numa casa a comer à conta e a ganhar uns tostões. Alguns têm só dezanove anos, os interesses já podiam ser outros, mas como dizia o gago «lá fora nunca era eu próprio, aqui sou». Portanto, foi para ali falar de tampões e sair do armário, antes que fosse tarde, e ganhar algumas notas, que também dão jeito. Também há lá uma prova que fazem sempre no Big Brother, que é a dos tipos se auto-avaliarem e serem avaliados por outros, onde todos desatam a chorar de emoção, porque são especiais e únicos no mundo. Adorei um deles, quanto a mim o mais inteligente de todos os que lá estão, que foi terrivelmente achincalhado com adjectivos como «insensível, bruto, arrogante, pouco carinhoso com a sua companheira». A última das gajas a falar mostrou todos os seus neurónios de uma só vez, dizendo: “ Não vou comentar a tua atitude com as outras, comigo não tenho razão de queixa, e mais, se quiseres, sou a tua pombinha! “ (corou e riu-se muito). Isto só mostra uma coisa: há muitas mulheres cujos neurónios são um verdadeiro clube dos poetas mortos, ou na versão de um antigo colega meu, professor, há mulheres que não servem nem para esvaziar os colhões…
4 Comments:
Olha Fernanda "reflecte a cabeça!" LOL
Não sabes que as mulheres se querem boas e burras e os os homens feios e mal-cheirosos??? Aposto que o Adão cheirava a estrume! E a Eva à flor de lótus, de tão pura e virginal...
Realmente não sei porque a humanidade continua a insistir em dividir-nos entre burras e feios, mas está bem, eu pouco me importo com a estupidez do mundo...
Sempre achei que era feia, e por isso tinha de ser inteligente. E depois, quando me sinto mais bonita, sinto-me também mais burra. Não sei se é do mundo ou de mim. Mas é a verdade. E depois, claro, também me sinto estúpida por ser tão preto e branco e esquecer as bonitas e inteligentes e os feios e burros! Eles também merecem! :p
Já agora, expliquem-me lá porque é que alguém inteligente se queria estupidificar daquela maneira como eles fazem no programa? Havia lá um que não queria dançar, dizia que não sabia e que não se sentia à vontade de o fazer, porque se estava a expor demasiado. Hello???!!! Ele foi para a tv fazer o quê? Número?? (como diz a minha mãe!)
Concluo que aquele anúncio que existe agora é muito verdadeiro quando fala eurónios... Sim, lamento anunciar mas o neurónios estão em extinção!...
Ó Patrícia, desde quando és um exemplo como aqueles espécimes dentro da casa? Tu és bonita e inteligente. Podes perguntar ao L. Flip, e, em casa de dúvida, ao padre Isidro ou ao homem das obras que te perguntou se podia ser a tira da tua sandália...
Perdoem-me a falta de concordância com ambas: as pessoas têm o direito de ser burras! O que importa é cada um assumir aquilo que realmente é. A honestidade vale mais que a inteligência. Ao menos não defraudam ninguém. Só me lixa é quando burras e mestres não querem acatar as regras do jogo e alegam princípios e valores e ficam indignados por serem criticados. Falo, por exemplo, de quando as moças tinham de fazer uma massagem ao seu par. Duas delas ficaram escandalizadas. Qual é o mal, se até dormem no mesmo quarto que eles?? Bom, se calhar eu sou liberal demais...
Nem todas elas assumem que são burras, Lisa..há ali muita gente a achar que sabe tudo, quer no meio delas, quer no meio deles. Mas sim, o direito à burrice devia ser universal, a pretensão também me parece coisa muito mais difícil de suportar!
Post a Comment
<< Home