Na escuridão
Na vida fazemos opções de que profundamente nos arrependemos. Em relação a algumas, apetecia-nos muito voltar atrás e dizer «vou fazer melhor, de outra maneira» ou «porque é que ali estagnei e não andei para a frente?». As opções que fazemos, todas elas, têm um custo. Pode ser um custo básico ou extraordinariamente caro, tendo em conta as situações e o peso que elas têm para nós. Exemplo. Há uns anos estava tão «entalada» que não sabia o que fazer: vivia em casa do meu pai, detestava, tinha um trabalho que não me dava gosto nenhum, mas no qual investia tempo e paciência e, pior que isso, que não garantia a minha subsistência. Naquela altura vários caminhos eram possíveis: arranjar um emprego qualquer a ganhar mais dinheiro e sair de casa, continuar como estava ou viver em casa mais uns tempos e ir à procura da saída profissional que eu queria. Eu escolhi esta última, por achar terrível gastarmos oito horas do nosso precioso dia com uma actividade cuja utilidade não vemos ou que simplesmente detestamos, ou, eventualmente, num local pouco aprazível com colegas ainda menos aprazíveis. Olhando para trás, consigo perceber que tomei a opção certa para mim, na altura, e que hoje tem consequências positivas. Mas tenho de ser franca, se voltasse atrás daria o grito do ipiranga mais cedo. Faltou-me coragem suficiente para ter seguido outros caminhos que me dariam uma outra vida, acerca da qual só posso especular como seria. É verdade que tenho um emprego com muito mais liberdade do que a grande maioria das pessoas. Ninguém vai contabilizar se eu cheguei mais tarde e porquê. Mas como em tudo, é uma liberdade extremamente relativa. Tenho prazos, posso ser despedida e os benefícios desta profissão, a nível da lei, são nulos. Zero ponto zero. É como se eu não existisse. No entanto, esta profissão tem totalmente a ver comigo: é a alienação mais profunda do ser humano ficar sozinho a ver números e palavras todo o dia, mecanicamente.
Ao escolher este caminho, eu provavelmente segui aquilo a que se chama instinto: era o que eu sentia que queria e que gostava. Tem um preço, claro. Um preço duro como a maior parte das vezes as coisas têm para uma pessoa conscienciosa. Para quem não tem consciência, eu não sei bem qual é o preço a pagar. Talvez seja a alienação pura e dura das coisas profundas da vida, dos sentimentos genuínos, do amor generoso e sem barreiras que só se dá na maior comunhão da vida, que é a de fazer as pazes connosco e saber que estamos no caminho certo, de uma forma afirmativa, combativa, mas não arrogante. A arrogância serve aos mais fracos como uma luva: disfarçando-se nela, protegem-se do mundo e das falhas do mundo. Como dizer a um arrogante que ele (ou ela) é um alienado(a)? Não dizendo. Não temos necessariamente de frustrar as ingénuas expectativas dos outros. Normalmente com a arrogância conseguimos afastar as pessoas que queremos de nós (talvez por isso eu gostasse muito de conseguir ser arrogante), ou melhor, as que menos queremos ao pé de nós, porque, por alguma razão, nos incomodam com o que são, com o que sentem, com o que sabem, com o patamar que atingiram (e não falo de bem materiais, evidentemente). No fundo, não temos de iluminar os outros. Os outros que se amanhem. A melhor arma costuma mesmo ser o desprezo, a pouca convivência ou uma arrogância talhada para a situação (para quem consiga essa proeza…).
A maior parte de nós vive na escuridão mais completa e determinante. Não vê, não quer ver. Quanto menos participamos no mundo, mais fossilizamos na estupidez e na ignorância (nem todos se afastam para pensar, como os filósofos). Podemos achar que fazemos as coisas mais sábias e sensatas do mundo, mas convém olharmos em redor: fazemos mesmo as escolhas mais acertadas? Eu sou muito reflectida. Em primeiro lugar, porque a minha vida é um exemplo vivo em como tudo de bom e de mau me volta às mãos como um boomerang (não sei se esta lógica se aplica de forma coerente à vida das outras pessoas, falo só da minha). Descubro também que mais vale não andar aos pulinhos a dizer «acontece, vá! Acontece!». Há coisas que só nos voltam às mãos anos depois. Depois, para chegar a esta conclusão, eu tenho mesmo de ser uma pessoa reflectida e olhar em volta, porque nitidamente há pessoas para quem tudo é «acaso do destino», e eu continuo a não achar isso. Se formos ver bem, as pessoas juntam-se por um razão e apaixonam-se por uma razão: aprender umas com as outras uma lição qualquer. De uma forma ou de outra todos chegamos lá.
Se nos vendemos a uma relação sem sabor, não podemos esperar que com o tempo fique melhor, é mais provável até que nos apareça outra pessoa, interessante, que venha a fazer parte de outra vida paralela, a tal que gostaríamos de ter. Se estamos numa relação por amor (já não posso usar o termo vender, que tem uma polissemia desgraçada), então devemos esperar ainda mais dificuldades, porque por muito que o amor flua, nem sempre a vida se compadece. A relação tem de ser trabalhada e as pessoas têm de se esculpir a ela com arte e mestria. Numa relação de amor tudo custa, ao contrário do que as pessoas pensam: custa falar porque temos medo de magoar, custa estar em silêncio, porque não estamos a dizer a verdade toda todos os dias, como prometemos, custa ter problemas porque o outro vai sofrê-los também, custa estar doente porque o outro vai perceber. Há um veio transmissor que não se perde. Se não houver amor, parece um bocado indiferente, desde que lucremos, a vida anda para a frente.
Só devemos estragar uma vez as ilusões que os outros têm da vida; do mesmo modo que não vale a pena explicar à Patrícia que não existe Pai Natal, ela irá sempre acreditar, porque ela acredita no que quer. De igual modo, não temos de batalhar para as pessoas jogarem limpo quando as pessoas não sabem o que isso é e nem estão a ver com quantos paus se faz uma canoa. Há ilusões que não vale a pena destruir. Umas, esboroam-se com o tempo, outras simplesmente se instalam e tomam conta da vida das pessoas. E passamos o resto da vida fechados em casa a pensar que fizemos muito bem e a não saber nada de nada acerca daqueles que nos rodeiam. Na escuridão.
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