Wednesday, January 23, 2008

A aliança do Paulo & do Zé

Depois de muito ler nos blogues dos meus amigos acerca das alianças do Paulo e do Zé (ou da aliança entre o Paulo e o Zé), queria também deixar as minhas palavras amigas sobre o facto, para mim consumadíssimo, de que ambos formam um casal maravilhoso.
Vamos lá. Que sei eu sobre a vida? Muito pouco. O Zé sabe mais, muito mais, e há coisas que sabe que não diz porque é reservado, mas que quando diz está certo e só diz se lhe pedirem com jeito. Noutras coisas é directo, incisivo e corta a direito. Comigo é muito doce. Não é incisivo ao ponto de berrar comigo ou dizer na cara o que pensa. Comigo fala pelo olhar e parece-me bem, sinceramente são poucas as pessoas que conseguem fazer isso.
Nunca aqui falei do Zé, sou uma monstra, já falei quinhentas vezes no Paulo Mongo, e gosto tanto do Zé que nem sei como lhe expressar a minha gratidão. Acho-me terrível porque nunca ter dito isto aqui, mas ainda me acho mais terrível porque nunca lhe ter dito isso a ele. Sinto-me grata ao Zé pelo Paulo, em primeiro lugar. Encontraram-se e o Paulo andava em baixo, em crise emocional, daquelas crises que eu compreendo mas nunca sei o que dizer, por isso fico ali, de olhos esbugalhados, à espera que ele grite comigo e diga que me adora e sou Monga. Se há alguém que tira o Paulo destas crises neuronais, emocionais, e não sei que mais, é o Zé. Eu diria que o salva devagar do entupimento emocional em que vive metido, do caos que por vezes o domina e o enerva tanto. O Mongo é nervoso. Como diria a Denise, o pé não pára, a pastilha elástica, o dar ordens constantes enquanto acende o cigarro, a respiração enfurecida. Uma pequena besta em delírio poético. Se não fosse domado, já me tinham saltado os óculos e as lentes ao mesmo tempo (ele vai-se zangar comigo por eu ter dito isto!).
O Zé dá-lhe a calma, a sabedoria do mais velho. Lamento dizer «do mais velho», não é depreciativo, mas a maturidade do Zé vem daí. Embora eu não sinta a distância etária vincadamente – nem ele – sabemos que isso conta muito na apreciação que fazemos do mundo e daquilo que sabemos dele, bem como da forma como participamos nele. O Zé faz do mundo do Paulo um mundo melhor, acho que mais livre, mais suave, menos carregado de dor e de estados de alma controversos.
Sempre me considerei uma pessoa bafejada pela sorte no que toca a amigos. Mas melhor do que isso, adoro os amigos dos amigos que se tornam meus amigos. Acho muito divertido e o mundo cresce com isso.
Com o Zé não tenho história parecida com a que tenho com o Paulo, todavia também temos o luto no nosso caminho, como quase toda a gente. A minha mãe morreu dois dias antes da irmã do Zé e eu um dia inadvertidamente perguntei se ele tinha irmãos, sendo logo de seguida repreendida pelo Mongo ao ponto de levar quase uma estalada, sem perceber porquê. Pronto, depois percebi a minha inconveniência e pedi desculpa. Mas naquele dia habilitei-me a uma lambada por causa da minha monguice.
Já algumas vezes desabafei com o Zé e partilho informações pessoais da minha vida com ele através do Paulo sem qualquer problema. O Zé raramente comenta ou critica, mantemos um diálogo mudo, feito de olhares de soslaio e muito tacto da parte dele, muito «não me meto, mas estou a perceber tudo». Acho que no último jantar ele percebeu tudo e sorriu-me. Apoiou-me. Entretanto andava o Mongo desvairado a fazer anos, com dezenas de amigos e amigas de diversos quadrantes, a mostrar a sua nova máquina fotográfica e a usá-la indiscriminadamente, a mandar-me comer. E não percebeu nada.
Agora eles têm umas alianças lindas que me comovem por tudo o que significam, e por tudo o que significam para eles os dois. Cada pessoa dá o valor à aliança que pretende: união, partilha, confiança mútua, amor, paixão. Aquela foi uma noite radiosa, o Paulo estava muito bonito, com um brilho nos olhos, muito nervoso com o facto de o jantar «ter de correr muito bem», e o Zé estava descontraído, muito calmo e seguro como sempre.
Gosto muito de casamentos felizes, desses que duram, que são bons, construtivos. Não precisa de haver paixão avassaladora (às vezes até perturba). Precisa de haver vontade de construir, de colocar os tijolos uns sobre os outros, de ter um tecto, uma casa, um alicerce seguro. Sabemos que a pessoa certa é certa porque vamos pesados para casa e nos encontramos com alguém que nos alivia esse peso. Sabemos que a pessoa certa nos dá as respostas certas, nos desarma e arma para um novo dia, uma nova fase, um recomeço. As alianças são isso mesmo: a construção de um caminho juntos.
Fico contente quando vejo o meu Mongo com o Zé (o Mongo-consorte…afinal conheci primeiro o Paulo), fica feliz, é mais delicado comigo (embora não se iniba de dizer o que quer), fica doce e ternurento. Nos dias em que estou com eles também eu me sinto cheia, completa, partilhando com eles a minha amizade e os meus segredos.

Tuesday, January 15, 2008

16 de Janeiro

Caros leitores deste blogue (escassos, bem sei, mas não interessa), hoje, dia 16 de Janeiro, faz anos o meu amigo Paulinho Mongo. Este é o nome que lhe dou e queria dizer (mais) algumas palavras sobre ele. Este será um texto muito simples.
Em primeiro lugar, o Paulo é das pessoas mais importantes da minha vida, e desculpem o exagero, mas é mesmo. Eu tenho pai, tive mãe, tenho avó, irmão, cunhada, sobrinho, madrasta, marido, amigos. Estou completa, estou cheia como um estacionamento subterrâneo de um centro comercial à Sexta-feira, ao final do dia. Mesmo assim, o Paulinho é das pessoas mais importantes da minha vida, pela pessoa que é mas sobretudo, acima de tudo, pelo contexto da pessoa que é. Eu explico. Nunca fomos colegas na Faculdade e até acho que eu e ele, sem a Diana, nunca nos teríamos conhecido. Portanto a Diana foi o veículo para nos conhecermos. Mas depois veio tudo o resto, que nem sei explicar bem, muitas cartas, muitos poemas, muita arte, que só o Paulo sabe fazer e que sai sempre bem porque é tudo feito com amor, desculpem se pareço a minha avó que, mesmo quando os meus bolos se queimam, teima em comê-los. Neste caso não é assim. O Paulo é mesmo artista, como tal é perfeccionista, nem sempre acha brilhante o que faz e constrói. Mas estão cá os amigos para apreciar, dar valor.
Mais tarde a minha identificação com o Paulo deu-se não só por razões artísticas, mas por razões muito pessoais que já me fartei de referir neste blogue: a morte do pai do Paulo e a morte da minha mãe. Nessa altura desmoronaram os nossos mundos com muita força e ficámos muito ligados, mas ele não gostou porque tem bom carácter, e ninguém gosta que um amigo nosso saiba «exactamente» o que é o sofrimento pelo qual passámos. E eu passei a saber, porque perdi a minha mãe em circunstâncias muito parecidas com aquelas em que ele perdeu o pai. Foi por isso que ele chorou mais do que eu. Porque gosta muito de mim, e para ele o sofrimento era ao quadrado. Ele acha – e eu concordo – que ainda temos coisas a aprender um com o outro, por isso permanecemos a percorrer o caminho da vida juntos.
Depois, o Paulo tem uma capacidade de se indignar, zangar, espernear que pouca gente tem. Ele costuma indignar-se com todas as injustiças, sobretudo as mais flagrantes, mas acima de tudo, irrita-se com aquilo que aleija os amigos. E sinceramente agradeço-lhe isso, porque de todas as pessoas com quem fui falando o ano passado, o Paulo foi a única que berrou porque os meus sogros me tratavam mal, que bateu o pé com tanta força que se o levasse lá a casa alguém apanhava pancada. É o homem dos abanões e só conheço uma pessoa que lhe dá a volta com pinta e elegância: o Zé. Mais ninguém.
O Paulo tem uma zanga visceral com o mundo porque, como diz a Diana, não cabe nele, é maior do que o mundo e todas as pessoas cuja existência é assim são artistas, participam no mundo desse modo: exilados. O Paulo vive no exílio do mundo muitas vezes e noutras consegue participar nele magistralmente. Capta a realidade como poucos, divulgando-a no seu blogue.
Com o meu amigo Mongo aprendi coisas preciosas, não fosse ele mesmo uma pedra preciosíssima. Aprendi a atravessar as ruas nos sítios certos o mais rápido possível (sabem lá o jeito que isso me deu em Roma), a gritar quando me chateiam muito, a não ter medo (ou tentar perdê-lo), a escrever melhor, a apreciar a arte, a amizade e o amor.
Eu gosto quando os meus amigos fazem anos (embora nem sempre eles apreciem o seu próprio aniversário) porque lhes posso oferecer coisas, mas também palavras. Eu e o Paulo adoramos palavras porque são belas e íntimas. Elas sabem tão bem!
Parabéns, Paulo!

Saturday, January 12, 2008

O álbum

Vou contar uma história. Vai fazer mais sentido para a Elisabete do que para as outras pessoas, porque a Elisabete adora memórias, pedras preciosas, tesouros ao fundo do arco-íris. Este é um deles.
Conto esta história agora porque nos últimos dias a presença da minha mãe fez-se sentir. Não pensem cá em coisas esotérias, forças estranhas, cadeiras que se mexem, sons, etc. Pensem em saudade. Pensem numa fada com uma varinha mágica, com um sorriso, a caminhar ao meu lado. Pensem numa presença. Pensem numa força que vos empurra para o lado certo da vida mesmo nos piores momentos. É dessa forma que tenho sentido a minha mãe.
Então lembrei-a. E lembrei-me. O álbum. No dia anterior ao diagnóstico do cancro da mama dela, que eu já sabia que tinha esse nome porque sim, sabia, a minha mãe pediu que eu fosse buscar álbuns de fotografias. E ainda hoje tenho para mim que isso devia ser para ela uma espécie de ritual de passagem, duro e necessário, mas ao mesmo doce e rico de significado. De tantos álbuns que folheámos, chegámos ao maior, de capa dura, todo branco e com fotografias a preto e branco: o álbum de casamento dela. E eu, que na altura não pensava em casamento sequer (estávamos em 2000), não percebi o porquê de tanta emoção com aquele álbum com fotografias gigantes, algumas que a favoreciam tão pouco, com penteados e vestidos dos anos 60 de fazer corar de vergonha qualquer pessoa. Mas ela via o álbum de uma maneira que me comoveu, porque a cada fotografia que passava saltava-lhe mais uma lágrima, e dizia muitas vezes «Fui tão feliz!». Evidentemente, este «fui» tinha um significado que me transcendia por inteiro: ela sabia que de mãos dadas com a vida andava a morte, e que era isso que a esperava, que já não iria ver filhos a casar nem netos a crescer. Aquilo era uma forma de se entregar ao seu destino, um ritual de passagem em que ela me entregava testemunho.
Acho que há muitas coisas na vida que sabemos, à partida, sem perguntar a ninguém. Sabemos porque está dentro de nós a resposta. E às vezes a resposta é dolorosa, não é nada – mas mesmo nada – do que queríamos ouvir. Acho que há muitas respostas que oiço que não gosto de ouvir, e como não sou de ignorar nenhuma, elas ficam e mais tarde lembro-me delas, enquadro-as, percebo-as.
Um casamento é difícil, sobretudo porque as relações humanas são difíceis quando são diárias, rotineiras. Talvez a minha mãe sorrisse daquela forma terna ao seu casamento não tanto por ser feliz, mas por ter sido eterno, por ter sido a vida dela, por ter sido a sua opção. Depois de um ano (e quatro meses!) de casamento, sinto que me tornei rija em muitas coisas, mas um coração muito mole noutras, nomeadamente na compreensão das relações humanas, da fragilidade das mesmas, da capacidade de mudarmos o que não gostamos e que não está bem, na forma como escolhemos o «outro» e nos tornamos nele sem deixar de sermos nós, sofrendo com ele e estimando os seus sentimentos. Aprendi que qualquer que seja a nossa opção ela exige muito de nós se formos exigentes connosco, se não formos qualquer opção serve. Aprendi algum pragmatismo – à custa de muito tropeção, de muita dor. Aprendi alguma calma e introspecção e a fatalidade daquilo que não posso mudar.
Podia ter aprendido isso tudo com a minha mãe antes de ela morrer, mas aprendi lentamente e muito depois. Aliás, foram precisos todos estes anos para me voltar a lembrar do álbum e da forma como nesse dia a minha mãe estava do meu lado exactamente como eu nunca a vira: humana, frágil, mortal. Com uma lágrima no olho e doente. Tristonha mas contente por ter contado o que tanto a atormentava. Então a minha mãe fechou o álbum e iniciou o pior ano da vida dela comigo ao lado. No final desse ano proferiu a frase mais importante que eu alguma vez já ouvira alguém dizer «gostei muito de estar com vocês e de vos conhecer».

Tuesday, January 08, 2008


Os solteiros

Já lá vai um ano – e uns meses – que entrei no grupo das mulheres casadas, e como a memória é curta, vou-me esquecendo como era ser solteira. Do que me lembro bem é que as conversas das mulheres casadas pouca ou nada me diziam. Sobretudo aquelas que contavam histórias perversas de sogros, porque sempre achei que aturar os nossos pais era dose forte, quanto mais os pais dos outros. Mas costuma-se dizer que pela boca morre o peixe. E eis-me defrontada com situações muito semelhantes, de impasse. O impasse ajuda-nos a estruturar a cabeça, as emoções, obriga-nos a repensar a vida. Mas custa.
De qualquer forma, quando passamos esta barreira, esta espécie de ritual iniciático para o qual todos achamos estar designados e preparados, o casamento, sentimos por vezes uma grande frustração. Diz-se que a frustração de expectativas é natural, normal e até preferencial, uma vez que estamos ancorados é na realidade. Mas às vezes é mesmo tudo tão diferente do que esperávamos, que sentimos estar a entrar noutro mundo, muito paralelo aos dos solteiros. Provavelmente as pessoas que são pais sentem o mesmo quando são pais. Estão noutra dimensão, a das fraldas, biberãos, choros, sonos trocados. Com todas estas duras tarefas que escolhemos, ou para que fomos desafiados pela vida, esquecemo-nos dos solteiros, esses nossos amigos sossegados, esses ombros amigos que por ocasião da vida ficaram sem par, e aqui incluo os meus amigos divorciados, viúvos ou solteiros sem ser por escolha própria. E friso «sem ser por escolha própria» porque há muitos solteiros que adoram a sua vida de solteiros – só que eu não os conheço, dizem que há, pronto.
Como era a minha vida se ainda fosse solteira, ou pior ainda, solteira outra vez, que não é bem assim que se chama, chama-se mesmo divorciada, porque depois de casados não voltamos mais a ser solteiros. Não sei. Vivia com o meu pai e avó? Namorava? Vivia sozinha? Ia mais ou menos vezes sair com amigos? Não sei. A vida é uma incógnita indecifrável e se me dissessem, há uns atrás, que eu iria casar, eu ria-me a bom rir. Há coisas inesperadas. E eu sou daquelas pessoas que sempre disseram «não me vou casar». Mentira…casei.
Não tenho pena dos meus amigos solteiros. Acho que há vantagens em ser-se solteiro. Mas tenho respeito pelos amigos que sendo solteiros preferiam não estar solteiros ou pelo menos ter com quem estar, ter com quem dormir, ter a quem se encostar. E não é que perdi esta noite a pensar nisto? Parece ser uma burrice, mas não conheço outro modo de estar na vida sem ser a preocupação. A Paula também é como eu, mas ela é por compaixão. No meu caso acho que é mais que isso. Gostava de ser como a Amélie Poulin, que arranja a vida dos outros e não toma conta da dela. Mas tomo conta da minha – bem ou mal – e não consigo ajudar os outros. Acho eu. Peço sempre milhares de ajudas. Tenho a mania das fadas, dos anjos, dos duendes, e portanto falo, peço opinião, não me calo mais enquanto não supero um problema. E quando as coisas se resolvem ou vão resolvendo aos poucos, eu deixo de falar nisso e falar nisso enerva-me porque deixa de ser um assunto. Por todos estes motivos, acho mesmo – mas mesmo – que tenho amigos muito bons, pacientes, respeitosos, alguns mais instigadores à pancada do que outros, mas todos com a sua função e missão. Às vezes – muitas vezes – irrito-me com as suas opiniões, outras vezes irrito-me que não me as dêem. Mas essa é a função deles: estarem ali, mostrarem-me caminhos. Os meus amigos são como o tarot divinatório (nada de ideias, Patrícia França, não te pago nada pelas tuas opiniões).
Mas voltando aos meus amigos solteiros e deixando o meu egocentismo de lado, estou muito preocupada com todos eles. Por diversas razões. Uma, o estereótipo social do «temos todos de casar». Não vão nisso…não sou contra o casamento, acho que cada um deve fazer o que mais lhe apraz e sobretudo, acima de tudo, como entende. Dois. A projecção fantasmagórica do «corre bem e mesmo que não corra suporta-se». Não corre sempre tudo bem e não se suporta tudo. Três. Mais do que a imagem social, o sentimento de falta de auto-estima, de que os amigos continuaram o caminho e eles ficaram para trás. Quatro. O egocentrismo dos casados, que acham que a partir daquele ponto, só há maridos, sogros e cunhados para falar (confesso a minha culpa), bem como pormenores da vida de casamento. Cinco. A falta de perspectiva, como dizerem «nunca mais me vou casar». Todos sabemos que isso constitui uma mentira flagrante. Dá vontade de dizer «ai casas, nem que seja para saberes como é, anda lá». Seis. A falta de apoio. Não é um mito, é complicado que uma só carreira suporte uma casa e despesas, mas conheço casos de sucesso. Para além do lado material, há o lado espiritual, que é muito mais importante, o «vou enfrentar a vida sozinho». Precisar de alguém é humano. Amar ainda mais. Sete. O relógio biológico. Argumento mais válido para mulheres, pois infelizmente temos um «prazo» biológico para termos filhos e com os estereótipos actuais, um prazo curto de juventude, beleza, interesse.
Todos estes argumentos deixam os amigos solteiros tristes e desanimados – pelo menos alguns. Não vale a pena dizer que podem ir ao cinema, à ópera, à discoteca, certamente eles responderão que não têm com quem ir, uma vez que a grande maioria dos amigos é casada e tem filhos. Não vale a pena palavras soltas ao vento, dizendo que vão encontrar o amor da sua vida ali na esquina. Eles já não acreditam em nós. Não vale a pena dizer-lhes que o casamento tem vicissitudes – eles sabem mas não querem saber, porque temos companheiros para partilhar a vida e eles não.
Queridos amigos solteiros (inclui todos os estatutos jurídicos): tenho muita dificuldade em vos dizer o que quer que seja, por isso estar calada talvez seja a melhor política em algumas situações – e eu não tenho seguido essa política. Agora, posso dizer que me solidarizo com todo e qualquer estatuto jurídico ou não jurídico, e que os meus amigos me preocupam independentemente do que consta no BI. Opá, eu sei que não resolve tudo. Mas é a única maneira de compensar quem sempre esteve do meu lado.

Sunday, January 06, 2008


Falsos amigos & filhos Lda.

Hoje falava com uma amiga acerca da grosseria de certas pessoas nossas conhecidas (algumas até amigas) cujo único objectivo de vida é dizerem, seja de que forma for «Estou aqui». Depois, com algum desprimor e até desencanto, enviam mensagens de «Ah, também estás aí! Não tinha reparado…». Como dizia Shopenhaeur, precisamos dos outros até para chorar, o choro existe muito para os outros e há estudos acerca do efeito da lágrima feminina no cérebro masculino e vice-versa. Quando alguém morre, S. diz que mais do que lamentar a morte, lamentamos a falta que aquela pessoa nos vai fazer e sobretudo, perdemos a opinião que aquela pessoa tinha de nós (se for boa é uma pena, se não for, oscilamos mais em lamentar «aquela» morte). A morte do outro é também a nossa própria morte.
Na Visão desta semana vem um artigo excepcional que revela que tão depressa o ser humano é capaz de feitos sobrehumanos para proteger o próximo, como de maldades atrozes - o caso de Pol Pot, que tendo chacinado mais de metade da população, dizia «dormir de consciência limpa». Com uma afirmação destas, uma pessoa não sabe bem onde fica a consciência e a opinião acerca da pena de morte. Matar alguém que pensa isto parece pouco.
Voltamos a mim e à minha amiga e às nossas amigas e conhecidas. Digo isto porque o mundo das mulheres é mais profíquo nesta coisa de «sabes, aconteceu-me isto? Não é fixe? Ai estás na merda? Ai que pena…olha, quanto a mim…». Os homens também são assim, mas cortam pela raiz as coisas, não dão conversa, na prática dá na mesma, mas não falam tanto sobre isso. Entram e dizem «o meu carro é bom (variante: o meu carro é o melhor), os meus filhos andam nas melhores escolas», sem o intróito parvo de «sabes lá tu o que me aconteceu ontem».
O que tanto nos choca? Será a futilidade, o egoísmo, o desvio mental, que a minha cabeleireira explicava como «excesso de uso do telemóvel», e uma colega minha professora dizia ser «da alimentação, de comer carne», ou simplesmente há uma falência de valores morais que nos faz morar (e estagnar à deriva) num universo paralelo, que atravessamos sem questionar muito e transmitimos aos nossos filhos, ensinando-lhes «o telemóvel pode tocar na sala de aula, qual é o problema?».
Durante anos não ouvimos falar de amigas a cujos casamentos fomos (e oferecemos coisas caras que nos custaram a comprar porque elas – ou os pais delas – nos pagaram os lugares, refeições e bebedeiras de um Sábado ou Domingo de casamento), mas repentinamente, qual teste de fertilidade e mensagem tipo amiga Olga «Uau, estou aqui e sou fértil!» enviam-nos mensagens do tipo «Nasceu o Diogo, tem 3,450 Kg e é o bebé mais lindo do mundo! Os pais estão muito felizes e babados». Óbvio que ninguém iria enviar mensagem a dizer «Nasceu o Diogo, parece um rato, pesa o mesmo que um pacote de açúcar. Não gostámos nada da experiência, sobretudo a mãe, que está toda rota e cheia de hemorróidas, tornando a vida sexual impraticável num período de seis a dez meses, consoante haja ou não depressão pós-parto». Até nos poderia interessar ter nascido o dito Diogo, Manuel, André, Filipa, Andreia ou outro qualquer ser que não fosse hermafrodita e pudesse ter nome de um só sexo, se a mãe ou pai fossem nossos amigos de casa como eram antigamente, antes de avançarem para casamentos dispendiosos e fúteis que nos obrigaram a gastar gasolina, paciência e muito dinheiro.
No «Sexo e a Cidade» há um episódio magnânime em que Carrie, farta de enviar dinheiro e presentes aos filhos de uma amiga, lhe escreve uma carta, pedindo que aquela lhe pague os sapatos que lhe tinham roubado numa das festas lá por casa. Na carta especifica bem que sempre fora simpática e altruísta, comprando presentes para «sobrinhos» fictícios com quem nunca convivera.
A vida tem destas coisas. É certo que nem todos fazem «isto» por mal, mas como é que as pessoas não se sentem estúpidas enviando mensagens a quase-amigos ou quase-conhecidos sobre as coisas fantásticas que lhes acontecem sem perguntar «está tudo bem contigo?». Acho que é óbvio que isso não interessa. Temos tempo para falar e contar coisas boas, mas jamais para ouvir os outros ou lhes dizermos «queres vir falar comigo sobre isso?». A mudança dos tempos foi terrível. Deixámos de ter «a» noção das coisas. O telemóvel parece um vírus que espalha egoísmo e futilidade. Ainda há pessoas que se devem lamentar «tive um filho, contei a toda a gente, e ninguém me diz nada?».
Acho curioso como este anúncio gratuito de fertilidade constitui para as pessoas uma espécie de ritual de passagem sem efeito. Tiveram filhos…e? Quem não tem filhos é olhado pela sociedade como um monstro, principalmente se for mulher: ai que porca, meteu a carreira em primeiro lugar, ai não tem homem, só pode, ai, é infértil, se não é ela é o marido. As pessoas sem filhos são olhadas como bizarras, tristes, macambúzias e admiradoras do Diabo, só porque têm o jogo do Monopólio inteiro e podem jogar sem os filhos comerem as peças. É verdade que o contrário pode acontecer: pessoas sem filhos olharem as outras de lado, por exemplo, não as convidando para sua casa porque os filhos são barulhentos e sujam a casa (ver o episódio do «Sexo e a Cidade» em que a Charlotte pensa ter filhos e convida um casal com filhos a jantar em sua casa). A discriminação acontece de parte a parte. Exceptuando os tios, que como tios têm de ter a casa preparada para sobrinhos, a mistura entre casais com e sem filhos é por vezes complicada.
Depois há cenas de vida familiar dispensáveis, como vídeos caseiros natalícios mandados a amigos sem filhos de quem nunca queremos saber. Uma pessoa sem filhos não sabe o que é a vida familiar com filhos, e às vezes não quer saber, para quê massacrá-la com bebés gordos e feios ao colo dos pais? O «nós estamos bem», o «nós estamos bué felizes» o «nós somos família, anda cá que apanhas porque não sabes o que isso é» nem sempre cola ou é importante para os outros. Provavelmente se mandarmos o vídeo aos avós ou aos tios irá funcionar e cair bem. Mas a quase-amigos não. Não mandem, a sério.

Os sonhos

Três sonhos surreais investiram nestas últimas noites na minha cabeça, surgindo do meu subconsciente como se fossem pipocas a estalar. Não têm graça, não pensem…Num desses sonhos eu tinha três filhos que a família do meu marido mandava mandar. Cada um dos meus filhos (já adultos e sentados em posição de Lótus) levava uma bala na cabeça, em cheio no meio da testa. Mais tarde, tive o sonho terrível de ter a cabeça coberta de piolhos e de colocar nos meus cabelos uma pasta (com o nome de Quitoso, referência que sei bem onde fui buscar) que me fazia o cabelo mudar de cor. E hoje, que tive uma noite de completo sobressalto acerca do tema «sou ou não sou uma esposa medíocre?» sonhei com mutilações e queimaduras, um dos piores sonhos que posso ter, visto que é coisa que me transtorna e arrepia. Segundo os dicionários de sonhos que circulam na net, o sonho dos piolhos é bom, significa bons investimentos – porque será? Queimaduras significam doenças familiares, e como sonhei com o meu pai, que eu não conseguia ver na unidade dos queimados (cá fora estava também o meu avô), fez sentido, pois hoje o meu pai está constipado, coisa que, segundo ele, é rara e nunca vista, pois desde o ano de 2000 não se constipa. Serei mediúnica ou o meu subconsciente fez contrato com o David Lynch? Nunca saberei ao certo.
O sonho que também me deixa abalada e entorpecida é o dos filhos assassinados, como no filme «A Maldição da Flor Dourada». Que significará? Provavelmente perdas, medo. Sim, medo. Sou medrosa. E confesso o medo de ter filhos. O investimento para toda a vida, a falta de controlo do que hipoteticamente pode acontecer com ele/ela. Descobri hoje que o meu receio de ser mãe é terrífico, porque me sinto talhada a ter problemas dos pesados, dos graves. Mas a vida é uma caixa de surpresas, não podemos prever. Olho para o meu sobrinho e não sinto esse medo do futuro. Acho lindo vê-lo a crescer, compreendo a trabalheira que dá aos pais, e acho natural que tente espatifar tudo, se entale, se babe e caia no chão com a minha avó a baixar a voz cheia de horror a dizer-me «É perigoso…pode cair», como se isso fosse o fim do mundo, como se não fizesse parte do crescimento cair vezes sem conta.
Há um limite nas nossas próprias forças que é terrível: não podemos controlar tudo de todas as formas. Há muitas coisas na vida incontroláveis. Mas isso vale para todos. Todos estão sujeitos à mudança de planos do universo. E se o universo muda de planos, temos de mudar de planos também. Não vale espernear, emudecer, escandalizarmo-nos de não ser tudo como queríamos. Há divórcios, rupturas, doenças, filhos malcriados mesmo quando achámos que fomos pais exímios, desemprego, pobreza…e haverá sempre uma Paris Hilton na carteira do lado, na sala ao lado, ou casada com um amigo nosso, a quem basta espreguiçar para cair tudo no colo e mesmo assim é presa bêbeda e tem má conduta. A uns basta uma palavra para serem punidos, outros podem prevaricar à vontade que a punição nunca vem e quando chega é tarde.
Temos de confiar no universo, sem dúvida. Acreditar que há excepções que realmente não nos ensinam muito, mas que a regra é os pais passarem mensagens correctas aos filhos, de amor, solidariedade e capacidade de sobrevivência sem eles, bem como os pais serem autónomos o máximo de tempo possível. Mas nisto que estou a dizer, quantas variantes não existem? Centenas, milhares, milhões. Tudo pode falhar e temos de contar com isso para nosso bem.
Agradeço ao universo o sonho dos piolhos: pode ser que entre dinheiro no meu bolso e os meus investimentos dêem fruto. Agradeço o sonho dos filhos, que me mostra que, mesmo na estagnação que a vida atinge e na imutabilidade do que pensamos e achamos ser, podemos levar um tiro e morrer. E o sonho das queimaduras…mostra-me que os medos são para ser enfrentados (no sonho há gente queimada e mutilada de quem eu fujo). De resto, posso sempre vender os meus sonhos a Hollywood ou ao David Lynch.

O ano

Não gosto muito de assinalar passagens de ano, acho sinceramente uma parvoíce, um pretexto para festa, só isso, e um pretexto para falarmos de tudo…e não falarmos de coisa nenhuma. Há pessoas que sentem isto nos aniversários. Sentem que passaram mais um ano de vida e não lutaram pela sua felicidade como deve ser. Eu gosto muito dos aniversários porque estou convencida que com os cabelos brancos vem alguma sabedoria, pelo menos para algumas pessoas. Eu sinto essa nostalgia parva no final do ano. Afinal, o que há para comemorar? Há sempre algo, na verdade, termos saúde, família, felicidade, um trabalho novo ou mantermos o velho. Mas isso podemos fazer todos os dias. Não temos de o fazer dia 31 de Dezembro.
Sinceramente, tive um mau 2007. Foi um ano de confusão total e absoluta, de descrédito, de falta de confiança em mim e nos outros, em que acho que deveria ter desistido rapidamente de umas coisas e partido para outras, em que acho que fiz tudo mal. Não estou nada satisfeita comigo própria, mas talvez isso me ajude a conseguir alcançar metas maiores, mais altas. Até ao tarot recorri este ano, e não me envergonho muito, diria que gostei bastante de recorrer a uma ajuda «exterior» tão diferente. É bom mudarmos de ponto de vista. É bom acreditarmos em qualquer coisa, nem que seja numa mentira que nos parece verdade, e que de tantas vezes repetida se torna mesmo verdade.
Quando as coisas nos correm mal, muito para além da conta que esperávamos ter é a mesma coisa que pagar uma dívida muito superior àquela que realmente esperaríamos receber em casa. E claro que nos parece injusto, mas é isso a vida na sua forma mais realista: é olharmo-nos no espelho e perceber que cometemos erros crassos que já não podemos emendar. Tornei-me neste ano que passou muito menos moralista do que era, porque não consigo aplicar nenhuma moral coerente à minha vida, nem percebo bem para onde vou. A falta de perspectiva enerva-me muito. E este ano pareceu-me um tremor de terra, estive sempre à beira do abismo, a puxar quem estava mais perto do abismo do que eu, mas sempre a ser sugada lá para o fundo. Além disso, cheguei à conclusão de que sou ilógica: quando devia estar melhor, desço mais baixo. Sou muito dada ao stress pós-traumático.
Sinceramente, não sou pessoa de expectativas muito altas. Sou realista e sonhadora q.b. Mas também nunca sei por onde anda o inimigo, e subestimando-o, perco muito. Afinal, quem é o inimigo…senão eu própria?
Nunca tive grandes expectativas acerca de casamentos. Vi o da minha mãe e da minha avó e chegou-me. Quando era miúda, não percebia bem para que é que servia um homem sem ser para fazer filhos, porque tanto a minha mãe como a minha avó faziam tudo em casa e eles não. Com a mudança dos tempos, nitidamente os homens assumiram tarefas caseiras e as mulheres começaram a apostar noutras que dantes não estavam nos seus currículos. Pelo menos é assim com alguns casais.
À mulher é dado um papel com um relevo desmesurado: é ela que…e agora podem começar a completar a frase como quiserem. Que cuida dos filhos, que luta para manter o emprego, que luta para manter o casamento, a boa forma física, a beleza e a juventude, é sempre dela que vêm as maiores decisões e responsabilidades. Acreditem que se uma mulher se descarta, por um minuto que seja, dessas responsabilidades todas, a casa fica encharcada em lixo, a criança fica babada, o casamento ruinoso, e ninguém toma decisões. Ao longo da vida fui acreditando que isso já tinha mudado, mas acho que isso também me cai em cima e a culpa é minha: porquê deixar? Outras vezes ou lutamos ou morremos no caos, e as mulheres quase sempre optam por lutar até ao limite. Somos também as primeiras a declarar derrota e a partir para o divórcio. Porquê? Porque somos exigentes. A mim parece-me que para um homem ficar sentado no sofá é suficiente para um casamento de sonho. Para nós não. Optamos pela norma, se sonhámos, então é possível. Se é possível, porque não conseguimos lá chegar?
Referi a regra, mas há as excepções, que normalmente são constituídas pelas pessoas que reclamam «se ele não te bate, está tudo bem» ou numa versão modificada «se ele tem dinheiro, não tens que te queixar». Por isso, para algumas mulheres (como a minha avó), se um homem tiver dinheiro e não bater, então é a melhor pessoa do mundo e só nos pode fazer felizes – é que nem há outra hipótese. Por esta ordem de ideias, eu devia ser a pessoa mais feliz do mundo.
Durante este ano, senti-me esmagada por um peso inominável. Senti «agora é que é, vou-me lixar totalmente». Lixei-me na mesma, mas não totalmente. Senti-me a noiva do Kill Bill, a apanhar pancada de todos os lados – como se essa não fosse já a história da minha vida. Manipuladores, chantagistas, cobardes que pensam que são corajosos, maldosos, traidores, sacanas, todos vieram ter comigo para me saudar honrosamente e dizer «estamos aqui, puta, e vamos-te à cara». Este foi um daqueles anos em que devia ter praticado boxe, alguém devia ter ficado com a cara esmurrada, mesmo que me esmurrasse o dobro. A única merda que fiz na vida foi casar-me e proteger quem estava do meu lado como sabia. E não vale a pena dizer que foi por amor, porque como fui dada como doida ninguém iria acreditar. A certa altura o casamento já era como subir a uma montanha muito alta: faltava oxigénio mas eu sabia que tinha de continuar. E que algures, pelo meio, ia ser o meu fim, e o fim do mundo como eu o conhecia até outrora.
Mas o caminho faz-se caminhando e a aprendizagem não pára nunca. A nossa vida não pode nunca depender da falência da vida dos outros. Nada flui em constância se esperarmos que o vizinho do lado sucumba à doença, à morte ou ao fracasso.
2007 não me deixa saudades nenhumas e foi bom comemorar o seu fim.

Wednesday, January 02, 2008

À Prova de Morte

Gostei muito deste novo filme de Tarantino, chamado «À Prova de Morte». Não fui grande apreciadora dos «Cães Danados», mas o «Pulp Fiction» ficou-me marcado pela originalidade, a violência da linguagem e das cenas, a forma crua como é tratada a morte, as cenas «cosidas» umas às outras com inteligência e sabedoria, e as interpretações fantásticas de John Travolta e Samuel L. Jackson. Vi há muitos anos e algumas pessoas saíram do cinema logo nos primeiros minutos – parecia um filme desconexo, chato, absurdo até. Mas é brilhante na forma como cruza tantas vidas nos mesmos espaços, no mesmo tempo, como uma dança predestinada a resultar.
Depois apareceu a parceria com Robert Rodriguez, que ainda refinou mais Tarantino, como em «Aberto até de Madrugada». Mais uma vez ninguém suspeitava que fosse uma história de vampiros, uma história azeda cujo único encanto está na figura do ladrão «politicamente correcto» interpretado por George Clooney. Aparece Tarantino, irmão de Clooney, que além de maluco é torpe e patético, perseguido por vozes e uma vontade insaciável de violar e matar. Maravilhosa a cena em que Clooney manda o irmão colocar o aparelho nos dentes depois de raptar uma família para passar a fronteira para o México. De resto, e como sempre, vale tudo: incendiar pessoas, matar de todas as formas mais cruéis e deixar que os inocentes se tornem agressores da pior espécie, provando, como sempre, que a natureza humana é imprevisível.
Depois apareceu os filmes do Kill Bill e aí caí mesmo de amores pelo Tarantino. Porque no cinema as mulheres têm sempre aqueles papéis tipo, de bonitas e burras, ou inteligentes mas vítimas, de desgraçadas, e isso só começou a mudar com o filme «Thelma e Louise», que une as mulheres numa parceria anti-abuso contra aquilo que são, contra a sua natureza fenomenal de lutadoras. Tarantino recuperou isso magistralmente, tirando as mulheres da margem e colocando-as não só em primeiro plano, como em dilemas que normalmente cabem aos homens. Kill Bill é uma história de vingança, de uma mulher contra um homem, mas também contra todos os agressores que rodeiam esse homem, sejam eles homens ou mulheres. Por isso as melhores cenas são as de lutas entre mulheres, pela supremacia que representam, pela conquista. Tarantino não deixa, no entanto, de descer às profundezas da mulher-menina, quando coloca a Black Mamba (interpretada por Uma Thurman) no papel de mãe, o que domina completamente toda a sua vida. Porque há uma mudança em Black Mamba que não esqueço, que é quando ela vê o teste de gravidez e diz ao inimigo (outra mulher, que excepcionalmente se compadece dela) «agora não estou sozinha, a responsabilidade é outra». A maternidade faz dela uma mulher com alma, amaciando a ferocidade das suas conquistas; em vez de uma exterminoadora de vidas, é uma criadora de vida, e isso dá-lhe perspectiva. O final em Kill Bill II prova que a vida não é só vingança, mas uma busca eterna da felicidade, que afinal estava ali, bem viva.
Finalmente o «À prova de Morte», e certamente que neste post estarei a reduzir a filmografia de Tarantino aos mínimos do que conheço. Aí a mulher também toma o lugar de vítima, mas reclama o de agressora só para si, numa conquista fundamental do «girls power». O filme tem praticamente duas partes, e a segunda vem a preto e branco, ou pelo menos uma fatia. O agressor-homem, desmesurado na sua brutalidade, na invasão das mulheres e do seu mundo, fotógrafo do alheio: homem porco, paradigma do pior que o masculino pode ter em mentira, falsidade e vontade de aniquilar a fêmea num exercício cru de poder sobre o outro, o mais fraco, o diferente é a personagem masculina principal, muito bem interpretada por Kurt Russel, uma escolha feliz para o papel (quem diria que na vida real ele se mostra sempre simpático e bem disposto, foi vê-lo chorar baba e ranho no programa da Oprah no dia do pai, quando os filhos lhe fizeram justa homenagem). Personagem solta e sem contexto específico, um mau só-porque-sim. História clássica do atacante que vigia a sua presa ao milímetro para a destruir sem dó nem piedade, com um carro potente, um carro que ele mesmo classifica ser à prova de morte. O carro que é o motor das agressões é também o fim da personagem. Lembremos também que o carro é o instrumento masculino de eleição, a grande metáfora do poder do homem é a velocidade, o grande elemento da conquista masculina é um automóvel potente.
Dois grupos de raparigas. O primeiro fica desfeito e o segundo inteiro, e nisto Tarantino é mestre em dar lições, tal como o segundo grupo de raparigas, Tarantino não se fica e dá na cabeça do agressor até ele ficar desfeito (tal como em Kill Bill). Não há a rapariga misericordiosa, boazinha, pacóvia. Quando as duas raparigas mais atrevidas querem fazer o jogo do mastro no carro, a terceira reclama o seu lugar, mas a resposta é «tu és mãe, não vais querer arriscar». A tipa não se fica «há sempre uma boa desculpa para eu não participar nos vossos jogos, deixem-me entrar». Boa onda a tipa, assim é que é. Eu cá não ia gostar da brincadeira do mastro, sou muito responsável, mas gostei delas todas. Estiveram bem em querer perseguir o assassino até ao limite das suas próprias forças, dando cabo da força dele, retirando-lhe poder, desmitificando que as mulheres são fracas ou medrosas, ou num estereóptipo maior, esvaziando o masculino com um poder tradicionalmente atribuído ao masculino. Vivam as gajas!
O que mais contribui para eu me ter tornado uma fã incondicional de Tarantino é ainda as suas técnicas cinematográficas, aliadas a boas ideias postas em prática. Parece ter uma daquelas cabeças que acumulam tudo e depois organizam em etapas, ficando uma mescla curiosa, no mínimo. Kill Bill já tinha sido feito com mestria inigualável, cruzando uma boa banda sonora com efeitos especiais. Mas os filmes de Tarantino têm uma surpresa que me deixa sempe boquiaberta: a intertextualidade. Uma personagem comum, um actor comum no mesmo episódio (que só se dá conta quando se vê a maquilhagem nos extras) ou em episódios diferentes, ou simplesmente uma música (o toque de telemóvel de uma das raparigas em À Prova de Morte é igual a uma das músicas de Kill Bill), Tarantino brinca com ele próprio, registando um lugar único na filmografia americana. Depois vai buscar centenas de referências da cabeça dele, dos anos 60 e 70, fotografias velhas, BDs, imagens, corta cenas e suja-as de propósito, como se de velhos documentários se tratassem. As histórias acabam por ser intemporais. Aparentam uma actualidade impressionante nos efeitos especiais mas contam histórias antigas, mitos intemporais e até clássicos do cinema de acção. São filmes e histórias à prova de morte, graças a Tarantino.

As Fadas

No outro dia vi um filme, comprado aqui em Roma, de que gostei muito, «O Labirinto do Fauno». Não esperava gostar tanto, parecia-me uma novidade em tudo o que eu tinha visto. Era um filme espanhol e eu costumo gostar do cinema espanhol, pela brutalidade e crueza da linguagem cinematográfica. Mas este filme era mesmo muito especial, misturava a linguagem dura da guerra civil espanhola com o mundo fantástico e encantado das fadas. Por isso tinha várias histórias, que se cruzavam de uma forma maravilhosa e conexa, com um sentido particular: acreditar é que dá sentido à vida, mesmo que seja a nossa morte. Isso foi o que eu li nas entrelinhas do filme, claro. Outros espectadores poderão ler outras coisas com mais ou menos sentido, consoante a experiência de cada um, e por isso um filme é como um livro, cabe lá a nossa vida toda, a que temos e a que nunca tivemos.
Ofélia, a menina do filme, acredita em fadas e em tudo o que lê. Mas é isso que a faz suportar o sofrimento, a ruína do seu mundo precoce que a obriga a ser adulta num mundo de adultos pouco dados a brincadeiras. O cenário principal do filme é a guerra civil espanhola, na época de Franco, que obriga a racionamentos, e o cenário paralelo, a história que é contada e que aparenta pouca ou nenhuma relação, é a do mundo mágico da cabeça de Ofélia, o mundo proporcionado pelos livros, que a faz vibrar com coisas pequenas, como insectos que batem as asas de forma especial e se transformam em fadas, como labirintos com faunos e pedras mágicas. Todavia, ficamos sem saber se esse mundo existe ou é só ficcional. As cenas finais deixam dúvidas se aconteceu mesmo ou se Ofélia sonhou e morreu feliz com a perspectiva daquilo em que acreditou. Na ressurreição da mãe, de um pai que era rei, de ela própria ser filha da lua e ter essa curiosa marca no ombro esquerdo.
A cena em que a mãe a confronta com a vida real é magistral, porque Ofélia colocara uma mandrágora sob a cama da mãe para que esta ficasse bem de saúde. A mãe descobre e queima a mandrágora, gritando a Ofélia que a vida é dura, cruel e que ela terá de aprender isso da pior forma possível; pouco depois a mãe passa mal e morre. Ofélia acredita nos poderes da mandrágora que lhe dera o Fauno para que ela cumprisse atempadamente as tarefas que lhe eram destinadas, todavia a mãe não. Nem Mercedes, a criada. E muito menos o Capitão, que acha que a menina lê demais. A confrontação de Ofélia com o mundo real coloca-a em negação com o mundo das fadas, porque não consegue superar as provas. Mas é o mundo real, do qual ela está tão apartada, que ela vence pela morte, sacrificando a sua vida. No final, ganha a vida eterna assim, embora eu ache que não é uma mensagem cristã, é apenas uma mensagem com valor humano. Mesmo no pior, acreditar vale a pena. Nem que seja acreditar no que ninguém acredita.

Depois de 40 dias em Roma…

Roma é estupenda em dias de sol e nevoeiro, apesar dos turistas.

Os dias de chuva são fantásticos porque os turistas fogem, todavia não dá para ir a lado nenhum com a chuva a cair sobre nós.

Roma é um desatino das cinco e meia às seis e meia, hora em que o trânsito é infernal (a praça de Espanha em Lisboa vezes dez ao cubo) e os pássaros cagam toda a gente sem excepção.

Os dias são repetitivos nos trajectos por muito que os tente diversificar, só são diferentes quando me perco e mesmo assim nem sempre (a culpa é minha, não é de Roma).

Há bons capuccinos, gelados e pizzas, sobretudo porque depois de 40 dias e à 3ª viagem já sei onde beber e comer sem gastar muito.

Os dias são terríveis em solidão, embora goste da solidão, sou chata comigo mesma e estou sempre a chamar-me nomes. Estou farta da minha própria voz.

Algumas frases e palavras vão entrando no ouvido, mas ainda não sei dizer bem casa-de-banho em italiano.

Os mapas vão fazendo sentido, perco-me, mas é por outras razões, e dou com os sítios que quero quando menos espero.

Ir à compras já não é divertido, chega de nunca saber se o que está dentro dos pacotes tem bom sabor ou é uma bosta.

Não tem graça subir e descer um terceiro andar com andaimes aos dias de semana, ouvir missas aos fins-de-semana e saber que se é vigiado das janelas.

Já não tenho imaginação para comer só com um microondas disponível para cozinhar (?) e um frigorífico que não não congela nada.

O trabalho começa a parecer tão repetitivo só de olhar para a caixa que até os empregados estão fartos e põem a caixa na mesa quase sem olhar para mim, o recepcionista deixa-me o cartão em cima da mesa quando me vê e despede-se da porta enquanto fuma.

Sei quem são as pessoas que chegam antes de mim ao arquivo e as que chegam depois, mas não falo com nenhuma.

Sei de cor os trajectos com menos gente e já ninguém me tenta vender coisas porque até os vendedores sabem que passo ali todos os dias.

Continuo a enganar-me nas mesmas coisas, até a telefonar das cabines com cartões com centenas de números…míope é assim.

Se eu não abrir a boca ninguém sabe que não sou italiana.

Já não me engano a apanhar autocarros, conheço-os bem melhor do que os de Lisboa. Até sei os que cheiram mais mal, tipicamente os que fazem os trajectos para o Termini.

Já vi manifestações, acidentes de automóveis e de motas.

As pessoas dos cafés sabem o que tomo e tentam-me vender a lotaria.

Os senhores árabes da Internet sabem o meu número de cliente de cor- já agora, se eles conseguem falar italiano, porque é que eu não consigo?

Já ouvi mais canções e músicas árabes em cybercafés daqui do que em toda a minha vida.

Ainda não percebi o que vêm cá fazer tantos orientais feios – desculpem o racismo.

Já não me surpreendo com o comportamento mundano do clero.

Não consigo gostar de turistas…aqui é demais. Toda a gente anda de mapas na mão.

Detesto transportar pesos mais do que nunca. A sensação de ter caimbras nas coxas e nos gémeos vai-se tornando familiar.

As gaivotas acordam-me e não me deixam dormir.

Tenho tantas viroses na pen que até relincha quando coloco no computador.

Quando vejo tugas, eles comportam-se como anormais. Hoje mesmo assisti a uma discussão no autocarro entre marido e mulher do género «senta-te aqui, não me apetece sentar aí».

Como é que aqui têm a lata de ter rampas para deficientes nos museus e igrejas, todavia os carros estacionam por cima do passeio?

Tenho cada vez mais pena de não falar italiano…é comigo que as velhas metem conversa no autocarro.

Já me fartei de pizza, mas a lasanha continua a escorregar que nem ginja.

Estou farta de motas e bicicletas – no mínimo, são perigosas.

Ainda não percebi como é que pessoas com bebés escolhem Roma para férias.

Porque é que os japoneses gostam de tirar as mesmas fotografias nos mesmos sítios a comer gelados, e sobretudo, porque é que eu fico sempre nessas fotografias?

Monday, December 03, 2007

A História Interminável

Hoje o meu post tem o nome de um filme fantástico. Um filme de 1984. E tem história, provavelmente interminável também. Eu vou contá-la. Em 1984 eu fiz sete anos. Animada pela promessa dos meus pais de que quando aprendesse a ler ia ao cinema, fui pela primeira vez com a minha mãe em 1984. Não me lembro porque fui só com ela. Talvez o meu irmão não quisesse ver o filme, talvez o meu pai não pudesse ter ido naquele dia – não me lembro. Talvez tenha sido um projecto entre mim e a minha mãe, tal e qual como quando íamos juntas à Baixa.
Eu tinha aprendido a ler há bem pouco tempo, portanto não seguia as legendas todas, a minha mãe teve de me explicar algumas partes do filme – além disso, eu já via muito mal. Mas sei que o filme me marcou para toda a vida, e nesta vinda a Roma percebi porquê. Vi o filme à venda e namorei-o dias e dias, mas reparei que não tinha legendas em português, para o ver e perceber teria de me esforçar no inglês ou seguir legendas em italiano – acabei por optar pelas duas. Todavia, ainda havia uma outra hipótese, bem remota: lembrar-me do filme quando o vi em 1984. Foi também o que me aconteceu. E foi tão bom ouvir a música do Limalh outra vez «Neverending Story». Foi tão bom vibrar com o filme e com o herói do mesmo. E finalmente perceber tudo sobre o filme: porque sempre gostei dele, porque ainda gosto dele, porque me marcou e quem sou eu no filme.
Obviamente sou o Bastian. Não tão má aluna como ele a matemática, mas igualmente boa leitora e participante das minhas leituras. Mas quem eu gostava de ser era o Atreyu ou a Imperatriz-Menina. E a história tem essa graça: os heróis são meninos e meninas, não homens, não guerreiros, mas meninos-guerreiros. E a partir dos sete anos, com pesados óculos na cara, eu desejei muito entrar na História Interminável, como entra o Bastian, e deixar de pé Fantasia, o universo onde reina a Imperatriz-Menina.
A Paula disse-me no outro dia que lhe disseram que Novembro é um mês terrível para quem perdeu alguém. Há saudades que não acabam mais. Há tristeza. É do tempo, da aproximação do Natal (que custa tanto), não se sabe bem. Mas é realmente um mês de transição. Para mim é sempre. Desde sempre. Não sei se não detesto mais Dezembro, por causa do Natal. Aos sete anos o Natal tinha tanta graça e era tão rico e hoje para mim vale zero. Mesmo zero. Não me lembro de nada tão mau, tão cruel e tão duro como o primeiro Natal sem a minha mãe. E quem me conhece sabe que não sou de choraminguices destas. Por isso cheguei a este Novembro, mais um passado em Roma, com a sensação de que a minha mãe partiu, realmente, mas está aqui comigo, quando eu atravesso a ponte Sant’Angelo ela está lá e fala comigo, e é tão fácil, tão simples…e tão estúpido, tão patético.
Descobri há bem pouco tempo que o segredo da vida se reduz a uma coisa muito importante: a espera. Queremos tudo demasiado rápido. Queremos comida rápida (excepto a Patrícia Torres), queremos que a constipação passe rápido (a gripe nem se fala), queremos que a gravidez passe rápido para vermos a cara do nosso filho, queremos ter um parto rápido para não doer, queremos sair rápido de casa (algumas pessoas, pelo menos), ter emprego rápido, ter estabilidade rápida, queremos resolver rápido o que não nos satisfaz. Eu pelo menos sou assim. Muito impaciente, inclemente, e por isso sofro da doença da rapidez. Quero perceber tudo rápido. Mas levei mais de dez anos a perceber a História Interminável, isso vos garanto, e toda a sua beleza, encanto e doçura, sobretudo na mensagem que transmite.
Do que me lembro com sete anos? Da minha mãe ao meu lado no cinema, sem dúvida. E da cena tenebrosa em que morre Artax, o cavalo do herói Atreyu, na lama movediça. Levei o resto do filme a perguntar à minha mãe «Morreu mesmo?», e ela dizia «Sim», e eu fiquei muito triste. Lembrava-me que o cavalo era branco. Só hoje, com trinta anos de vida, percebi essa cena: o cavalo não morre por acaso, morre para Atreyu aprender a continuar sozinho o seu percurso. O cavalo decide morrer. E quando na cena final volta a aparecer, fica claro que é fantasia, porque o cavalo tinha morrido. E eu para a minha mãe «O cavalo ressuscitou?», e ela «Sim». Atreyu sou eu e o cavalo a minha mãe. E ainda hoje, a ver o filme, me desespero completamente com o sofrimento de Atreyu, porque é o meu sofrimento, quando ele grita «Não me faças isso, Artax, não desistas! Preciso de ti!». Uma cena tão simples e com tanto significado. Sozinho e desamparado, Atreyu depara-se com falta de ajuda, cansaço, solidão, tristeza e doença, da qual só recupera quando é, no último suspiro, raptado pelo dragão da sorte (do qual eu me lembrava perfeitamente, excepto nos dentes e nas escamas, que agora achei horrorosos e mal feitos). O dragão ensina-lhe que ele não está sozinho, dá-lhe a mão nos piores momentos, procura por ele quando não o vê, preocupa-se genuinamente em lutar contra o fim de Fantasia, tomada pelo Nada. O Nada é o caos, a desordem, a escuridão, as trevas. Atreyu acha que falhou, Fantasia é destruída, e diz-lhe o dragão «Pelo menos tentaste». O dragão da sorte são os meus amigos.
Quando Atreyu se defronta com o lobo que representa o Nada diz-lhe que prefere morrer a combater, porque toda a vida combateu. Pergunta ao lobo quem é ele, e a resposta parece-me exemplar «Alguém vendido ao poder do Nada. Dantes os homens sonhavam, tinham coração, mas agora desistiram dos seus sonhos e venderam-se ao poder e à ambição. Represento a traição aos sentimentos». Atreyu mata-o, todavia antes de aí chegar tinha passado já por duras provas, uma das quais passar por entre duas esfinges que dizimavam quem mentia a si próprio. As esfinges liam o coração. E lêem o medo de Atreyu, por isso disparam, ao ponto de ele correr para não morrer. As esfinges são os meus inimigos: lêem-me o coração e tentam aniquilar-me.
Chegado à Imperatriz-Menina, que eu não me lembrava que era também uma criança, Atreyu chora e diz que falhou, mas a Imperatriz diz que não. Diz que com a sua bravura convocou outros a serem bravos, os leitores das suas histórias. E então convoca Bastian, o terrestre que Atreyu chamou e que tem de lhe dar a ela um novo nome. A Imperatriz diz-lhe «Tu sabes que nome me dar, mas não tens tido coragem de o dizer». Bastian abre a janela e grita o nome da mãe, que morrera (e não se chega a saber qual é esse nome, mas para que a Imperatriz não morresse era preciso dar-lhe um novo nome, segundo o Oráculo). Não me lembrava que Bastian era órfão de mãe, lembrava-me só que era um garoto triste e desolado, que os outros gozavam na escola. Mas pelos vistos Bastian e eu temos muito em comum.
A Imperatriz diz-lhe então que só sobrou um grão de todo o seu Império, mas que chega para construir um novo, basta querer. E para isso Bastian só tem de…sonhar, inventar, criar. E Bastian começa a inventar, a criar (daí a ressurreição do cavalo, ele também não deve saber lidar com a morte dos que amamos, como eu).
Tão bonito o filme! À distância de mais de vinte anos, acho o filme magnífico. No final, o narrador diz «Bastian inventou e criou, mas um dia teve de voltar à vida real…só que isso é outra história». Lembra-me quando eu sonho e gosto muito do sonho, acordo e volto à vida real.
Em 1984 ninguém fazia merchandising destes filmes: não havia cadernos, cadernetas, lápis, canetas, camisolas dos filmes, como hoje há do Homem-Aranha. Com muito menos do que há hoje, acho que éramos crianças muito mais felizes: tínhamos calquitos, cromos, barbies, sandálias transparentes para ir à praia, ténis e calças de treino para os fins-de-semana e víamos o Corpo Humano e a Abelha Maia. Se víamos um filme, fixávamos a história, não líamos resumos e sabíamos a priori de que tratava. Íamos à sorte e adivinhávamos o conteúdo dos filmes e dos livros. A vida era uma aventura muito divertida. E sobretudo íamos ao cinema com os nossos pais e por muito cansados que eles estivessem viam os filmes connosco, ainda fazíamos os trabalhos de casa com eles, no tempo em que fazer trabalhos de casa era uma coisa normal e regular, diária mesmo. Mas desse tempo o que mais recordo é que a minha mãe não aparecia nos meus sonhos, porque era viva e fazia parte da minha vida diária. Estava ali, à mão de semear. Hoje tenho de ir à procura dela na ponte de Sant’Angelo, numa igreja, num sonho, na minha memória, que nem sempre é feliz na forma como a recupera. A minha também é uma história interminável, que só resiste pela luta, pela bravura, e sobretudo pela minha imaginação, pela verdade do que o meu coração é e sabe. Com tanta força talvez as esfinges não me dizimem. E quem sabe o mundo seja como o Walt Disney o definiu «se podes pensar, então consegues fazer».





As férias

Eu queria faezr uma declaração estonteante, de levar ao desmaio 99% das pessoas: não gosto de férias. Nada mesmo. Está bem, sou workoolic, isso confesso, mas o que gosto mesmo é de ter tempo entre as frestas do trabalho, em vez de andar a correr. Melhor isso do que férias, do que dias e dias sem fazer nada e com pressa para ver tudo, andar em todo o lado, tirar fotografias. Aqui em Roma deve ser uma infelicidade fazer férias, porque eu já vim cá várias vezes (em trabalho) e nunca vi tudo nem tenho essa pretensão, porque há tanto tanto para ver que nem dá para acreditar. E é aqui como no resto do mundo. Está sempre tudo em falta e pensa-se logo «vim aqui, gastei uma batelada de dinheiro e não vi nada do que queria».
Depois férias para mim, durante muitos anos, significaram discussões valentes entre os meus pais, os meus pais e irmão, eu e o meu irmão, os meus pais e eu. Houvesse um cão e também odiava férias. A praia fartava-me. O campo fartava-me. A cidade fartava-me. Gostava era de ler. Desculpem a cromice. Dois dias sem telefonar e a minha avó achava que tínhamos morrido na estrada. Com o Pedro férias passaram a ser sinónimo de passeios mais calmos (aqui em Roma cansativos, mas aqui é tudo cansativo), mas telemóvel sempre a tocar. Portanto não gosto de férias, muito menos as de Natal. O Natal eu odeio mesmo, mas mesmo. Só gosto dos doces gordurosos (alguns), dos chocolates, nem às prendas acho piada. O que eu gostava de ter um corrector e passar por cima do Natal…e do Ano Novo nem se fala.
Quando me falam em férias eu lembro-me sempre da casa da avó Nazaré (até em Roma e com o frio que está me lembro disso), quente, húmida, suja, podre e a cair aos bocados, tétrica. Lembro-me do cheiro da pasta peganhenta contra as melgas (que só não picavam a minha mãe), da cama de molas onde eu dormia, que caía três vezes por noite, dos ataques de falta de ar do Ricardo, dos meus avós não acharem piada a nada e acharem sempre que os roubávamos, de comer peixe frito e de eu e o meu irmão roubarmos as uvas antes do jantar porque a minha avó via mal e lavava as unhas sujas na água. Lembro-me de a avó Nazaré tossir/escarrar toda a noite e dizer que queria ir para o hospital, mesmo sabendo pelas vizinhas que estava sempre bem até chegarmos. E lembro-me de horríveis prisões de ventre (que nunca mais tive) que faziam a minha mãe cozinhar sopa de feijão e nada…e que obrigavam a medidas de força como clisteres que me deixavam agoniada e horas na casa-de-banho – com o meu irmão a tentar impedir a passagem para a sanita ou a minha avó a ter vontade à mesma hora que eu. Lembro-me de o meu irmão criar armadilhas naquela casa assustadoras, com fios invisíveis, formigas dentro de frascos e pastilhas elásticas nas janelas, ou simplesmente mudar cadeiras de sítio, que ali gerava o caos e quedas tenebrosas, bem como gritarias. Era uma casa anti-crianças, anti-felicidade e pró-angústia (na linha da de outras casas que já conheci, mas menos cheia e mais podre). Tal como as férias, nas quais a minha mãe acabava sempre por tomar calmantes ou comprimidos para dormir por não aguentar a pressão. Eu devo ter herdado essa propensão: saio das férias sempre mais esgotada do que entrei. Prefiro ir tendo folgas. Férias não.


A osmose

Hoje tornei-me, oficialmente, uma múmia. Não se assustem, ainda tomo banho e mudo de roupa – pelo menos enquanto tiver roupa para mudar e a lavandaria for barata. Só que trouxe comigo um bocadinho de um documento…numa lente de contacto. Ali estava uma linha pequena e quase invisível (mas muito incomodativa) de um documento do século XVIII ou XIX – não posso precisar – na minha lente de contacto esquerda.
Novembro é o mês decisivo na mumificação do arquivo: ali estão os mesmos padres, frades, freiras, estudiosos novos, velhos e mais ou menos do costume. Agora há umas variantes engraçadas, como a rapariga que põe auscultadores com microfone na cabeça e tem um pé torto (coitada…mas aquilo dá-lhe estilo de múmia), o alemão gordo que se veste todo de preto e tem ar de ir exterminar judeus (basta alguém se sentar na fila dele e lhe empurrar a cadeira), a chinesa que se veste sempre de cor-de-rosa (pronto, é sempre a mesma roupa, só muda as meias), o senhor que quando espirra quase rebenta com as paredes, e há sempre o «monsenhor», que até aqui eu percebia sempre «monsieur», mas depois de muitos textos em italiano lá entendi o que lhe chamavam. Tem sempre uma nova música na abertura dos programas do PC e nunca ninguém o ensinou a baixar o volume. Há também um inglês muito estranho (eles são todos mas este supera o mau gosto) careca e com um bigode farfalhudo e de anéis com brasão.
Tenho saudades de algumas múmias do ano passado, como o velho de Oxford que sabia sempre o que queria mas nunca estava disponível, ia e voltava constantemente.
O bom da investigação é a osmose. As pessoas ali tornam-se parte dos textos e os textos parte delas (daí trazer bocados deles nas lentes de contacto). Os investigadores dividem-se em grupos, alguns muito estranhos. Geralmente as pessoas agrupam-se pelo critério da nacionalidade, ou do interesse e há os solitários, como eu, que de vez em quando lá encontro um português ou uma portuguesa por aqui. As pessoas também se dividem pela hora de chegada. Há os pontuais, que parecem dormir à porta do arquivo, e com os quais me confundo por vezes, quando sou a 5ª ou 6ª pessoa a entrar (uma marca excelente para quem mora a 25 minutos dali e tem de passar por quinhentos turistas logo pela manhã) – saliento que as assinaturas são feitas pela hora de chegada, num caderno e a hora de entrada e saída marcadas, de manhã e de tarde. Há o grupo seguinte, que é vasto e entra entre as oito e meia e as nove da manhã. Há os que chegam sempre depois das dez, ainda confusos com o que vão pedir. E os que chegam em cima das onze ou até do meio-dia, descabelados e sem saber para onde se virar, mas querem pedir tudo de uma vez.
Os horários também têm a graça de às vezes as pessoas competirem para ver quem chega primeiro. Geralmente é o clero, por uma razão simples, vive ali, naquele território sossegado para além da porta Sant’Anna. Mas muitas vezes são outras pessoas, para quem o trabalho que aqui fazem deve ser a maior graça divina. Eu já fui duas vezes o número um a entrar – não é para todos. Mas também já cheguei cedíssimo e reparo que antes de mim já ali estão caídas múmias de todo o género, novas, velhas e assim-assim.
Há as faixas etárias, de que aqui já falei. E há também os que se vestem normalmente, os que se vestem muito bem, de preferência de fato, os clérigos, que trabalham incansavelmente, e os que nunca tomam banho, parecem trambolhos, mas se estão a borrifar, porque certamente os textos são mais importantes do que o olfacto das outras pessoas ou o «parecer mal».
A tarde é mais curiosa e sossegada para trabalhar. Geralmente os poucos que aqui estão são supreendidos por meia dúzia de pessoas que vêm das catacumbas, penso que de aulas, que olham para nós como se fosse o jardim zoológico, espreitam os nossos textos e desaparecem do mesmo modo que aparecem, tipo visita de estudo. Nunca percebi quem são. E há os homens das obras, que por aqui passeiam de tarde e não ligam nenhuma ao contexto, querem é usar o berbequim e mudar as tomadas.
Para a maior parte das pessoas que aqui investiga os textos são uma fonte de informação muito rica e intensa e ganha-se uma certa afeição por eles. Quando me despeço de uma caixa difícil, daquelas com imensos textos para ler complicados e extensos, sinto alívio, mas também pena de ver partir a caixa das minhas mãos para outras mãos. Gostaria sempre de ter feito melhor – sinto sempre que poderia ter feito melhor, mas o pouco tempo que aqui estou impera uma certa velocidade que não se compadece com a exactidão científica.
O arquivo tem estudiosos excelentes, isso eu sei. Não sei se são pessoas excelentes, mas geralmente avalio pela forma como falam com as outras pessoas, empregados inclusive, como são enquanto pessoas. E também pelas respostas que têm. Por exemplo há uma alemã – daquelas que tem tanto cara de alemã, que não passa por mais nada – que é muito simpática. Parece ter uma familiaridade extraordinária com todos os empregados e fala um italiano perfeito. Trabalha imenso, é disciplinada, o ano passado nem a via levantar-se. Há outra rapariga, que penso que seja italiana, que faz um bom dia estrondoso e troca larachas com os empregados. Temos os mais discretos – como eu, que sou basicamente muda (mas há mais mudos por ali). Temos as tias, que querem fotocópias de tudo para não sujar as mãos e estragar as unhas.
O comum de todos os estudos, tratados, teses é o mesmo: igreja, clero e alguma podridão na maior parte dos documentos. Os documentos reflectem o país. Portugal vem sempre em caixas sujas, todas sebentas, rotas, com documentos rasgados e húmidos. As caixas da Alemanha (Germânia) vêm sempre limpas, bem fechadas e os textos batidos à máquina (depende dos fundos, claro, e quanto mais actuais mais bem tratados estão).
Há quem trate os textos por «tu», sem medo nem temores. Mas há outros, como eu, que criaram ligações aos textos de aprendizagem tal que é como se os textos falassem e me dissessem «boa! Aprendeste a ler isto!». Agora os textos estão do meu lado, os bispos, os núncios, os arcebispos e todos os missionários. Tenho sempre receio dos textos italianos com letras complicadas, mas a pouco e pouco vou-me afeiçoando a eles. Há outros que criam ligação ao seu próprio trabalho e vêm os textos como mensageiros do que pretendem.
O Arquivo é especial. É um sítio onde as pessoas não convivem senão com lixo, a interacção é só entre os empregados (e pouco com eles), a solidão é uma constante e vê-se na cara das pessoas quando estão sozinhas a fazer um trabalho. As pessoas que arrumam os documentos circulam no café com botas e fatos especiais como se tivessem vindo num ovni – tudo com um ar de normalidade que espanta; os estudiosos (como eles chamam) mexem nos documentos podres como se fossem livros de BD, com familiaridade e determinação. Ali estamos a fazer um trabalho «muito original», que tantos almejam, mas poucos entendem «para que é que serve» e «o que é que dá no futuro». Aliás, o ponto comum entre os historiadores todos é o mesmo: olham para o passado. Aquele é um trabalho para dar futuro ao passado.
Todas as pessoas deviam entrar no Arquivo pelo menos uma vez na vida. Não acho assim tão importante visitar Roma ou vir ao Vaticano, mas entrar na porta Sant’Anna, mostrar três vezes a autorização para entrar (a «tessera»), ver os guardas suíços vestidos à patetas (e ver os homens jovens e sorridentes dentro dos fatos), entrar no arquivo e ver aquelas pessoas todas a dar uma de «O Nome da Rosa» é experiência única…aconselho a levar Brise com insecticida e cheirinho bom.