Thursday, February 15, 2007



A normalidade

Há uns tempos atrás, quando existia o GNT, dava uma sitcom com o nome de «Os Normais». Era a história de um casal totalmente disfuncional e anormal, cujas relações com os outros se pautavam pela imbecilidade. Começo a achar, com muita franqueza, que a imbecilidade é mesmo o normal, o aceitável, o frequente, tão frequente que se tornou dejà vu. As obras do psicanalista Arno Gruen são estudos eficazes de como o «errado» se tornou completamente inevitável e aceitável aos olhos de quase todos nós.
No outro dia, no programa da Ana Sousa Dias (na RTP2), o actor brasileiro Pedro Cardoso falava das implicações de ser assaltado por meninos de dez anos no Brasil, dizendo que todos nós, enquanto sociedade, somos literalmente culpados disso. Que poder de decisão tem um menino de dez anos com uma família desestruturada? Por isso, este estado de coisas a que chegámos, em que ser malcriado está na moda e assenta bem, em que o disfarce ganha pontos em relação à verdade, deixa-me, ainda, estarrecida, provavelmente porque, tal como me diz a Patrícia, eu digo que não acredito na humanidade das pessoas, mas acredito e tenho expectativas demasiado altas. Só uma pessoa com expectativas altas pode ficar desiludida com os outros. Está na cara que somos todos tão diferentes como os queijos franceses (comparação mal cheirosa, mas pronto). Porque andarmos em stress com a atrasadice mental de energúmenos malcriados? Eu explico.
Em primeiro lugar porque não vivemos sozinhos, portanto a vida exige um convívio mínimo. Desse convívio tanto podemos extirpar as coisas más, como não. E por vezes fica-nos esse amargo na boca de que realmente fomos injustiçados pelos outros, quer seja pelo seu trato agressivo quer seja pelas considerações que fizeram de nós. Deveríamos, num estado de espírito calmo, não nos interessar pela opinião dos outros. Mas será que na nossa interacção diária isso é mesmo possível e exequível? Até certo ponto sim. Não é por nos chamarem incompetentes que o somos, não é por nos chamarem más pessoas que o somos, não é por dizerem que somos fracos que o somos. Então porque ficamos (ou porque fico eu) tão abalados com isso?
Na realidade, «isso» também são relações humanas. Infelizmente. Devemos ajuizar bem o que queremos. Se queremos uma conversa ou se preferimos discutir a sério ou jogar à defesa. Cada pessoa se presta a uma coisa diferente. O normal oscila muito consoante as situações e as pessoas, isso eu sei. Mas também há muitas coisas que me parecem estanques e, tanto quanto possível, deveriam ser mantidas assim, sem andarem de um lado para o outro. Parece-me universal considerarmos a verdade um bem supremo, o respeito por nós e pelos outros também. Parece-me bastante razoável não passarmos tempo com quem não gostamos. Acho até um desperdício, tendo em conta o tempo que passamos com quem gostamos mesmo, que é sempre pouco. Porque é que no pacote da vida têm de ser vir estes presentes envenenados?
O Miguel Esteves Cardoso tinha um texto maravilhoso (agora já não me lembro do nome) que falava do absurdo de perdermos tempo a discutir com o homem do autocarro em vez de estarmos com quem realmente gostamos. Depois chegamos perto de quem gostamos absolutamente frustrados porque discutimos com o homem do autocarro. E isso é que é a vida. Lembro-me bem de, quando a minha mãe morreu, o meu pai ter dito que a vida era extremamente estúpida: afinal, tínhamos passado horas em bichas até Lisboa a discutirmos uns com os outros quando tudo se resumia àquilo que é mais óbvio: nascemos para morrer e ponto final. Devemos considerar isso não uma ameaça, mas uma evidência coerente. Quem vê pessoas a morrer todos os dias sabe isso muito melhor do que as outras pessoas, embora possa passar à indiferença com alguma facilidade.
Será que damos como normal as características humanas, todas elas, ou só seleccionamos as que nos interessam mais? No fundo, é tão normal gostar como odiar, mas reprimimos a segunda e repreendemo-nos amargamente por sentirmos a miséria humana dentro de nós a florescer. Reprimo-me muitas vezes por não conseguir ser uma pessoa positiva. Mas não me reprimo por ser justa, recta, sensitiva e intuitiva, e talvez por isso experienciar muito antes da alegria o horror à miséria humana. Talvez porque veja muito primeiro aquilo que é mau e não tenha dó nem piedade a julgá-lo.
Parece-me, como Arno Gruen diz, que aquilo que apelidamos como «normal» não passa de um disfarce mixuruca que temos, daquilo pelo qual queremos fazer-nos passar. Conquistamos muitas pessoas deste modo sem sequer nos apercebermos (ou sim, apercebemo-nos bem) de que estamos a ser desonestos até com nós próprios. Como será o despertar deste longo sono? Haverá esse despertar? Para alguns de nós sim, há redenção, mas lamentavelmente para outros não. Deus que se encarregue disso, se houver Deus. Se não houver, como eu acho, estamos um bocado perdidos.
Muitos aspectos originam a nossa noção de «normalidade»: educação, experiência de vida, profissão e, acima de tudo, carácter. Sou daqueles sonhadores que acha que, para alguém de carácter, tudo pode ser adquirido pela experiência de vida e de convívio com os outros, de preferência pessoas diferentes de nós, para percebermos como balizar o mundo. Muitas vezes acho que toda a gente percebe o que é a diferença. Mas não é verdade. Estou a ser preconceituosa quando julgo o mundo assim. A diferença tem muito que se lhe diga. Há muitas gente aparentemente «normal» que não é, e vice-versa. Ninguém pode ser julgado pela aparência de normalidade…nem tudo o que brilha é ouro.

2 Comments:

At 3:20 AM, Blogger fercris77 said...

Teste

 
At 1:18 AM, Blogger XaninhA said...

LOL Portanto, eu não venho aqui durante uma semana e tu pensas logo que isto já não funciona! lololol Oh mulher, tu não és NORMAL! (E ainda bem!) :p

 

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