Thursday, February 22, 2007

As metáforas

Já devo ter dito algumas vezes, no outro blogue ou mesmo neste, o quanto gosto de figuras de estilo, ou figuras de pensamento ou recursos estilísticos. Não é bem a mesma coisa, mas digamos que aprecio tudo isso por diversas razões: uma delas é o facto de expressarem a capacidade linguística de um falante e a inesgotável fonte que é a língua. A outra é o facto inequívoco e indesmentível de que a humanidade é complexa, que os comportamentos humanos são por vezes enigmáticos e indescortináveis. A língua expressa mesmo isso: a susceptibilidade, a fragilidade do que é ser-se humano.
De todos os recursos, realmente adoro a metáfora. Era a grande eleita da minha professora da faculdade, Maria Lúcia Lepecki. A metáfora é uma senhora, como ela dizia, juntamente com a ironia. Também gosto da ironia, mas a mim parece-me que a metáfora abarca os significados todos do mundo.
Na Bíblia, quantas metáforas existem? Centenas de milhares. Umas expressam-se de um modo e outras de outro. Chegam à alegoria, à parábola, que são metáforas trabalhadas em conjunto e numa grande parceria que engrandece a vida. Caim mata Abel, o seu irmão, cheio de ódio e raiva desesperante. Job sofre humilhações sucessivas nas mãos de um Deus inclemente. Noé é o escolhido para salvar o que resta da humanidade e retomar de novo a humanidade. Sara ri-se quando Deus lhe diz que ela vai ser mãe depois de velha. Abraão propõe-se imolar o filho em troca do amor a Deus. E há ainda a história do homem das estátuas de sal, cujo nome não me lembro, mas que não pode olhar para trás. Há ainda a história mais mitificante de todas: Adão e Eva. Ele o bruto, o parvo, o tosco, o imperfeito. Ela a espertalhona que se faz de parva e tenta o companheiro. Tudo ensaios de Deus para um mundo melhor. Ou não. Andaria ele a brincar com o barro este tempo todo? As histórias bíblicas definem uma moral de partida: sofrer para agradar a Deus. Tudo o que saia fora das leis Dele, sai fora do que é aceitável.
A questão da moral e da ética foi trabalhada ao longo dos séculos, dos dois milénios mais sete anos que contámos até aqui. Contamos os anos e temos um calendário para nos organizarmos. Na altura de Deus não havia agendas. Ele lá mandou umas tabuinhas ao Moisés, mas as gerações vindouras não as souberam conservar. Eu adorava ver os mandamentos…seriam mesmo dez? Seriam mesmo aqueles? Quem disse? Foi das primeiras legislações que conhecemos. A lei a definir e a organizar o mundo dos vivos. E a mentira a tomar conta de nós: a Igreja disse - é porque é. Na Bíblia do Velho Testamento não há espaço para o livre arbítrio. Mas na do Novo Testamento aparece aquela figura fantástica, contada, definida, traçada pelos apóstolos: Jesus Cristo. Ele vem dar nova alma à Bíblia, porque ensina, com algum rigor, que a pessoa pode escolher não acreditar em nada, desde que saiba as consequências disso, essas sim miseráveis e tormentosas. Mas ao menos pode-se. Não se deve.
Tanto tempo passado, eu diria que muita desta moral sobreviveu. Ai, ai, lá estás tu a prevaricar: a cobiçar, a ser invejoso, a matar, a não amar os teus semelhantes. Deus não previu algumas excepções, mas elas felizmente já entraram na lei: matar em legítima defesa é um pecado à mesma, mas tem menos peso do que premeditar um assassinato. O que fazer às almas dos soldados que combatem nas guerras, tantas vezes obrigados a essa triste função com um fim fatídico? Suscita-se até o ódio ao próximo por razões absolutamente inexplicáveis. Veja-se em alguns filmes americanos o ódio ao vietnamita, ao chinês, ao russo, ao cubano, etc. O inimigo tem cara: uma cara diferente da nossa, uma história diferente da nossa, interesses diferentes. Como muitas vezes esse rosto parece desumanizado, encarnando, alegoricamente, o mal (que reside sempre na diferença), é preciso matá-lo, extirpá-lo, retirar-lhe razão e sentimento. O inimigo é sempre feio, porco e mau. Porque….?
Eu sou uma metafórica à antiga. Garanto-vos que dava para psiquiatra. Sou estupenda a encaixotar, emparelhar, comparar, analisar, prescrever. Um psiquiatra não é, obviamente, um metafórico. Não vai olhar para um doente como se este encarnasse o mal, vai olhar para a sua diferença e torná-la plausível, explicável, através de uma doença ou de uma acontecimento traumático. Nenhum doente deve ter escrito «violado na infância» na testa ou «neurose histérica» ou «psicose». Nenhum representa cada um destes casos. Mas eu, que gostaria muito de ser psiquiatra, mas que, como vivo rodeada de casos estranhos e paradigmáticos de doença mental excusei a profissão (não fosse gastar todas as minhas energias pessoais a categorizar noite e dia, dia e noite), sou bastante dada a ver nas pessoas uma encarnação de qualquer coisa de bom ou de mau.
Em criança não me parecia nada assim, não tinha muito a noção do preto e do branco. As coisas eram bem difusas. Nem tive nunca a sensação de os meus pais terem toda a razão do mundo, porque na maior parte das vezes eles pareciam mais confusos do que eu. Nunca gostei de adultos, nem mesmo quando cheguei à idade adulta. Mas pior do que um adulto, é um adulto armado em criança em coisas de adulto, porque também as há, lá estou eu a encaixotar. O amor, por exemplo, é universal. As crianças sentem, os adultos, os velhos. Atravessa a vida. Todavia, muitos de nós não temos a capacidade de perceber onde ficou a criança e onde está o adulto. Damos origem a uma disfuncionalidade que já considero típica dos adultos Peter Pan: se eu não lhe der tudo não sou ninguém. A identificação com o «outro» é por demasia patológica, mas típica de, vá lá, uns quinze anos mal feitinhos (isto sem livros à frente).
Quando eu era criança havia coisas que eu odiava nos meus pais. Uma delas era o facto de sorrirem a quem não gostavam. Aquilo parecia-me medonho e terrivelmente insatisfatório, de um ponto de vista emocional. Eu sou uma pessoa com muita dificuldade em sorrir a quem não gosto. Deve ser por isto. Outra coisa que me irritava era eu não me poder comportar como uma criança – coisa que só mais tarde vim a perceber, porque eu nunca soube como era uma criança até entrar na escola – e ter de estar sentada, absorta, sem perceber patavina das conversas em que não me podia meter. Quando entrei na escola tive o maior choque psicológico de que me lembro, acompanhado de chá preto nos intervalos, que a minha avó me levava «para eu não desmaiar porque não comia». As crianças corriam, batiam-se, caíam, aleijavam-se, eram porcas. Eu só fiz duas coisas durante os primeiros tempos de escola: encostar-me à parede ou pedir para não sair da sala de aula (a minha mãe chegou a fazer esse pedido especial, graças à minha insistência). Tudo, menos conviver no meio daquilo que eu própria via como uma violência sem igual. Em casa, a minha avó morria de medo que eu na escola morresse à fome, à sede, ou que partisse a cabeça, ou que me batessem. Também tentava fazer os meus exercícios da escola ou dizer-me como se escreviam as palavras num ditado. Além disso, a contínua estava comprada pela minha avó, e por isso vigiava o que eu comia.
Sempre fui uma mulher de livre-arbítrio. Devo ter nascido assim. Eu e o meu irmão ludibriávamos os sistemas de vigilância todos. Cheguei a oferecer o meu lanche às crianças que tinham fome, só para dizer a mim própria «eu posso, quero e mando, não mandam em mim». Hoje rio-me desta sabedoria aos seis anos…Todavia, essa luta, ao longo da vida, foi implacável e determinante no meu carácter. Acordava vezes sem par da minha sesta depois de almoço com peras e maçãs cortadas aos pedaços, «para não morrer à fome», normalmente porque «tinha comido mal ao almoço». De uma pêra (comida ou não comida) passava a outra, «mais bonita». Com tanta insistência e tantas vitaminas, cheguei à adolescência bem gordinha, o que me causava um desgosto danado. Então começou a luta ao contrário, porque passei a ouvir que estava gorda.
Não sei bem do que é que a minha vida será metáfora. Com uma biografia destas, eu podia ter sido uma atrasada mental, convencida e arrogante, afinal, sempre tentaram respirar por mim. Só que, por carácter ou por escolha, desde pequena que faço o percurso contrário. Da minha vida também podia ter saído uma suicidária, estou certa disso. Aos treze anos eu tive a sensação nítida de que não aguentava mais e que queria morrer. Lembro-me de ter fixado prazos para morrer em função da minha escrita. Dizia a mim mesma «depois deste livro estou completa e mato-te». Mas como era uma perfeccionista, não me matava e fazia outro livro melhor. Farto-me de romantizar a minha vida… Ficou-me sempre um certo amargo na boca deste tempo, porque voltei a uma situação de angústia vezes sem conta, e ainda hoje escolho a angústia como uma companheira nocturna incomodativa. Ficou-me a ansiedade, que é pérfida. O stress incomum com coisas incomuns. Ficou-me o som e a batida da régua nas minhas mãos quando fazia erros no ditado. E a certeza de não conseguir, nesse tempo e nesse espaço, ser eu própria como sou neste blogue.
Há pessoas que são metáforas. Como na Bíblia Caim encarna a maldade e Eva o pecado. Há pessoas que encarnam tudo aquilo contra o qual lutamos. Estou-me agora a lembrar de um dado muito curioso: só os meus amigos não são metáforas más, daquelas «contra as quais eu luto». Há muitas pessoas nas quais não consigo enxergar uma réstia de humanidade (não tenho mesmo jeito para budista…). E desde pequena que vejo bem isso: a ausência de um sentimento bom, profundo, sensível, conectado com o interior das pessoas. Porque será que as pessoas acham sempre que se podem disfarçar em cinismos, falsas simpatias, hipocrisias, conquistas, contornos falsos? Porque será que as pessoas acham que podem mentir acerca de si mesmas sobre coisas que lhes estão cravadas na epiderme, às vezes tatuadas na testa, outras vezes diluídas num falso brilho nos olhos? Há um dia em que deixamos de ser rebaixados por este tipo de mentira, quer ela seja consciente ou não. Há um dia em que nos tornamos pragmáticos (ou metáfora do pragmatismo) e olhamos para estas pessoas de soslaio, dizendo-lhes com um só olhar «porque mentes, trolha?». Os outros inconscientes que sejam enganados, na sua desconexão e imaturidade interior. Fui eu obrigada a comer maçãs e peros na infância, chegar à adolescência gorda com tendências suicidas para agora me dar uma de fragilidade e inconstância em relação a seres medonhos com mau fundo?…
Quer queiramos quer não há uma moral em todas as histórias. Eu ainda não descobri a minha (mas os leitores podem aventar hipóteses, até mesmo categóricas), talvez seja mesmo o pragmatismo, mas sem exageros, porque um bocadinho de subjectividade nunca fez mal a ninguém. Agora, moral tem de haver sempre. Não me lixem o juízo com as merdas do mais ou menos, das zonas cinzentas, do aceitar as diferenças todas. Não, não. Há perversões morais que custam anos de vida. Como não acredito na moral católica, também não acho que haja castigo propriamente dito, Deus está sempre distraído para o que não deve, anda sempre a fazer terramotos e cheias nas zonas mais pobres do mundo. Também não acredito na reencarnação kármica, senão haveria muitas pessoas a reencarnar num cagalhão ou numa pedra. Só há uma alternativa: acreditar no percurso de per si. Não esperar grandes conquistas nem um pote de ouro ao fundo do arco-íris, mas acreditar que um percurso limpo, uma consciência limpa, uma vida limpa deixa de lado o que não interessa. Custa e é moroso, mas não vejo em que mais poderei acreditar.
Não espero que por causa de mim deixe de haver corrupção, maldade, manipulação. Não espero que corruptos, manipuladores e gente mal intencionada perca o jogo – já deixei de estar à espera disso, tal como uma mulher fértil quando está farta de tentar engravidar e não consegue (quando ela sossega o espírito, então engravida). Do mesmo modo, se eu não esperar «castigo», talvez ele exista. Não do modo exemplar e telenovelesco que sempre estamos à espera: de vermos as pessoas corroídas pela vida, derrotadas, postas de lado. Há sempre alguém que dá a mão a um mentiroso, há sempre alguém mais frágil lá à frente para enganarem. Duvido que um manipulador durma sozinho. Dorme, isso sim, mal acompanhado, sem um frémito de paixão, de amor, de compaixão pela humanidade do outro. Que maior derrota pode haver do que esta? Mais tarde ou mais cedo um parasita morre, mesmo que não seja por falta de hospedeiro. Morre por dentro, morre por fora, morre para os outros de quem não se alimenta. Não é a morte uma certeza da humanidade?

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