Sunday, March 04, 2007

Manhãs

Se há coisa na vida que sempre me custou – tanto quanto me lembre – é acordar cedo. Na verdade, tem o seu encanto, quer a manhã seja de chuva, de frio, de vento ou de sol. Chegamos a uma hora em que parece que o mundo começa – ou recomeça – e nunca mais parece ter fim. Há dias intermináveis, impossíveis, quer seja pelo trabalho, quer seja pela companhia, quer seja pela ansiedade, quer seja por alguma dor que sintamos. E há outros dias rápidos, tão rápidos que metem medo, num instante estamos na cama com os cobertores por cima.
Os extremos devem ser maus para mim. Detesto levantar-me e detesto as horas em que não consigo adormecer, mesmo que esteja cansada, porque penso em tudo, em todos – nos vivos e nos mortos – porque sonho e acordo, porque acho que não vou ser feliz (uma e outra vez batalho para perceber as minhas próprias projecções do futuro), porque não quero ter filhos, porque não queria que a minha vida tivesse sido o que foi, porque detesto estar sempre em risco de perder o emprego por dá cá aquela palha ou porque alguém acordou mal disposto com o mundo, porque detesto pensar em voltar a dar aulas ou explicações, lembrando-me de quantos alunos passaram por mim (mais os respectivos encarregados de educação), porque detesto sempre a minha vida, de uma maneira ou de outra, e no meio das reflexões nocturnas, lá me canso, lá me doem as costas, os braços, as pernas e os joanetes, e penso «que ando eu a fazer neste mundo filho-da-puta?». Como Atlas, carrego o mundo às costas, mesmo sem razão.
Adoro conversar. Mas desde há um ano e alguns meses que tenho o meu emprego de sonho: sem horários nem pessoas à volta. Rapidamente chega o tédio quando penso «porra, não tenho com quem conversar!». Vou ao messenger satisfazer essa necessidade, mas tem de ser por pouco tempo. Vou ao vizinho do lado, que é advogado, lá trocamos umas larachas sobre a tese de doutoramento dele e a vida dele como pai de quatro filhos. De vez em quando também vem o Eduardo e fartamo-nos de rir com as coisas mais parvas de que me lembro nesse dia. Mesmo assim, é o meu trabalho de sonho. Não por ser complexo, interessante, fantástico, mas porque me deixa sozinha e posso escrever. Sempre foi o meu sonho, sobretudo quando dava aulas e já não sabia mais o que fazer para entreter crianças mal amadas e educadas. Além disso, as manhãs são melhores e mais calmas do que em qualquer época da minha vida.
É sempre muito estúpido pensarmos que algumas pessoas não têm de sofrer assim tanto pela vida. É verdade que nunca serão umas iluminadas, mas também nem todas as pessoas querem sê-lo, nem todas as pessoas precisam de alimento espiritual. Para algumas pessoas, o alimento espiritual é material, daí que perca o sentido falarmos em teatro, cinema, viagens, desporto. As pessoas fazem para dizer que fazem ou porque se querem divertir. Como diria a minha amiga Estela, nem todos pensamos nos significados ocultos das coisas. Nem todos reflectimos. Nem todos temos sistemas de impacto interno, sem ser pelas funções básicas do corpo. A sensibilidade e a inteligência são, de facto, discutíveis. Em algumas pessoas não encontro isso de forma alguma. E dói-me um bocado (no fundo, nem tem de doer, não tenho de me dar com pessoas assim). Gosto muito de inteligência. Gosto de pessoas inteligentes. Mas ainda acho que continuo a preferir a inteligência emocional. Se calhar por isso me custa tanto estar sozinha o dia todo, e fale sozinha e gesticule ao ponto de as pessoas olharem para mim. Como sou tendenciosa, quanto mais sozinha, menos me apetece fazer esforço para sair daqui. Pareço colada a esta cadeira e às dores funestas nas minhas costas. O Pilates é mesmo aqui ao lado e não vou…querem maior preguiça do que esta?
É uma chatice pensarmos o quanto batalhamos para ter uma situação imperfeita (que no fundo o é quase sempre), periclitante, que nos exige mantermo-nos na corda bamba tanto tempo quanto possível, mas vermos ao lado aquelas situações de «encosto» que tanto custam aceitar. Tem havido da minha parte uma certa relutância em aceitar «isto», porque não entendo, não sei explicar. Sei que aquilo que na vida se baseia no factor comparação é o que tem de ser anulado. Nunca gostei de comparações. Há sempre alguém melhor em tudo aquilo que fazemos – qual é o drama? Não vincamos o nosso lugar no mundo só por sermos excepcionais em alguma coisa, essencialmente somos recordados pelos que nos amaram e que nós amámos também.
Diariamente, quando me levanto de manhã, recordo algumas manhãs bem más, em que me custava existir, e para as quais não tinha explicação nem conclusão alguma a tirar. Sabia apenas que tinham de existir, que estavam lá, e que se pudesse dormir, literalmente, em todas essas manhãs, sem sequer questionar porquê, a coisa corria melhor durante o dia. Por acaso nunca corria…acho que o meu negativismo em relação à vida começou muito nesse instante e acompanha-me até hoje, sem dúvida. Talvez hoje em dia não apagasse as manhãs com uma borracha, mesmo que pudesse, gosto mais das manhãs, mas ficou-me o amargo na boca de tantas bichas na Marginal, tantas viagens de comboio para ir fazer o que não gostava nem me sustentava, preocupada e ansiosa com um futuro que não vinha. Acho que dei um salto grande, porque já consigo ler nos transportes, dar uma volta a pé e depois ir trabalhar, sem grandes dramas. Já faço o que a grande maioria das pessoas faz e que durante anos para mim foi um tormento doloroso. Não sei a que ponto da vida cheguei, mas talvez a alguma maturidade e, essencialmente, à coerência.

3 Comments:

At 3:27 AM, Blogger XaninhA said...

Se há coisa que sempre me deu imenso prazer - desde que me lembro - essa coisa é acordar cedo. Adoro as manhãs e são quase sempre a parte mais produtiva do meu dia (em casa ou no trabalho). Até costumava dizer que devia acordar sempre em casa da minha avó, para lá passar as manhãs, porque me cheiravam à minha infância. Nessa altura, também me diziam para não me sujar e para ter cuidado onde punha os pés, mas a verdade é que dia sim, dia não andava com os joelhos esfolados lol. Lembro-me de, nas manhãs da minha infância, ir à praça com a minha avó ou, aos sábados, ficar na cama a ver desenhos animados. Também recordo as manhãs em que ia para a escola primária e bebia o leite com chocolate no recreio. Foi no conjunto dessas manhãs que eu cresci. E talvez seja por isso que ainda hoje gosto das manhãs*

 
At 3:28 AM, Blogger XaninhA said...

Agora que reli, isto parece-me uma composição da primária lol :p

 
At 3:26 PM, Blogger fercris77 said...

As manhãs a mim só me davam vontade de ficar na cama. Só recentemente descobri o prazer de passear de manhã, nem que seja 5 minutos, depois de toda a gente entrar nos seus empregos. Já entraste num centro comercial quando abre? É um silêncio sepulcral. E a fnac? Dezenas de freaks à porta à espera que aquilo abra, os primeiros leitores e ouvintes de dvd da manhã.

 

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