Thursday, March 08, 2007

A batata crua

Tenho de confessar que levo uma vida muito interessante, quando poderia levar a vida mais banal do mundo. Como a grande maioria das pessoas, trabalho, levanto-me cedo, ando de transportes públicos, faço a lida da casa. Não há nada de especial nisto. Os meus vizinhos fazem barulho, vejo filmes no DVD, como pipocas aos fim-de-semana enquanto vejo filmes de terror com o meu marido, o meu irmão, a minha cunhada, vejo o meu sobrinho crescer e chorar quando lhe doem os dentes, oiço a minha avó a queixar-se que eu não dou assistência ao meu marido, vejo o meu pai encaixotar-me as coisas que faltam trazer para minha casa. Todavia, toda a minha vida é uma anormalidade e um absurdo completo, e mesmo até ter chegado a esta ponto classificado como «normal», muita tinta correu, muito desastre aconteceu. Não considero ter atingido níveis de normalidade aceitáveis, mas acho que lá chegarei, com a presunção que o Saramago tinha de que «eu sou feliz, o mundo é que está mal». Lamentavelmente, só assim sobrevivemos à falta de chá das outras pessoas.

Como diria a Patrícia, a coisa mais simples que consigo ter é um almoço com ela, e mesmo assim sou obrigada a escolher se quero empadas de carne, de frango ou de atum. Mas tanto eu como ela já tivemos a percepção exacta do quão erradas estávamos ao pensar na normalidade de um almoço entre duas gajas que gostam de estar à palheta. Nunca a Patrícia deve ter percebido que eu tenho dela uma visão dúbia: vejo-a como a mocita mais nova, que fala daquilo que eu já passei, mas também fala com a clareza e a inteligência emocional de quem está longe dos freaks de que lhe falo, podendo avaliar situações com a sabedoria que muitos mais velhos não têm. Na idade dela, eu perdi a minha mãe. Com isso, perdi grande parte da ingenuidade, descobrindo que a força que me animava a vida era a certeza de que a minha mãe me protegia dos males do mundo. Agora acho que a Lisa tem mais razão do que nunca: sou eu que tenho de me saber defender e aos poucos vou aprendendo (sei que às vezes não parece…), com muitos tombos pelo caminho. Hoje fui ao tarot on-line, com o qual gosto de brincar, logo pela manhã, quando estou mais agastada, ensonada e enraivecida (depois de almoço passa). E a interpretação das cartas dizia algo do género: «a força está dentro de ti, não esperes que ninguém te reconheça. Os grandes ocultistas escondem-se no silêncio, sem serem vistos.» Eu sei que são cartas e nem lhes toquei, não estava ali a energia das minhas mãos, como seria suposto numa leitura «normal» de tarot. Mas a frase era fantástica.

Eu já não sei o que é uma vida banal. Se tivesse uma não a reconheceria como tal. Deve ser o que acontece à grande maioria das pessoas. Acha-se especial. Ninguém aguenta o tédio durante muito tempo. Há, no entanto, pessoas entediantes – que também se acham especiais. Eu acho sempre uma tristeza não ter nada a dar ao mundo em novidade. Sempre quis ler, escrever cada vez mais. Informar-me. Acho-me sempre mal informada e inculta em tudo. Outras vezes queria muito ser banal, só para sentir a liberdade de não ter de me preocupar com questões moralistas, de bem e de mal, só para ser simples, fluir um bocado, não me chatear tanto com a imoralidade dos outros. De repente a minha vida era simples. Era bom era…

Mas tenho de confessar que há coisas muito engraçadas que estou certa que acontecem todos os dias, mas que só eu – e pouco mais pessoas – estão atentas ao ponto de as ver.

Íamos nós, eu e a Patrícia, almoçar no jardim ao pé do metro de Picoas e lá estava um daqueles cromos inesquecíveis. O raio do homem parecia estrangeiro, mas tirou-nos logo a vontade de comer. A Patrícia fugiu a rir e eu apalermada, míope como o raio, a pensar «lá está um homem das obras a comer um gelado!». O gelado não era um gelado. Era uma batata, bem grande, crua e descascada, espetada numa faca, e o homem lambia-a como se fosse um gelado, provavelmente pensando que era (caramba, ninguém lambe um batata daquela maneira, excepto se souber a magnum amêndoa!). Fiquei a pensar que raio diria o homem à sua amada: «querida, vem comigo ao jardim comer uma batata crua!».

Depois fomos para o Saldanha residence. Lá arranjámos uma mesa. Azar dos azares, a mesa estava perto de um sem-abrigo. Com todo o respeito. Mas era um sem-abrigo. Não gosto muito daquela história «ai que nojo que me mete!», mas metia, tenham paciência, mas pés cheios de crostas não combina com comida. Tivemos de ficar ali, e lá andava ele a pedir encarecidamente a alguém que lhe abrisse as latas gigantes de grão e o pacote de leite. Comeu por duas ou três pessoas. O nosso tupperware de comida parecia um menu de crianças perante aquele espectáculo da pilha de atum com grão e um litro de leite.

Quando voltei de autocarro, vinha cheio e lá comecei eu a tentar perceber as energias que fluíam à minha volta. Ia lendo devagar e sem pressas, porque a pressa é inimiga da perfeição, e normalmente eu capto exactamente o que não quero. Entram duas velhas e acaba-se o sossego. A conversa oscilou entre o «está frio» e o «não está frio», o «vim muito agasalhada», e o «falta-me um casaquinho mais forte para logo à noite». As velhas têm este dom, de irromperem pelo meio das energias que flúem e deixar-nos suspensos em conversas toscas que não levam a nada. Vão lá dizer-lhes que a vida é curta, que elas passarão o resto dos minutos e segundos do dia a discutir se está frio ou se está calor, se trouxeram o casaco adequado ou não. As velhas interagem muito, o que me mete confusão, a mim que fujo dos vizinhos todos para não lhes falar. Metem-se com as pessoas de qualquer maneira, como quem não tem nada a perder. Talvez não tenham mesmo nada a perder.

Moral da história: a vida é crua como uma batata, mas às vezes (muitas vezes e ainda bem!) dá vontade de rir…

1 Comments:

At 3:35 AM, Blogger Brisa said...

Rir é mesmo o melhor remédio! Principalmente se o conseguirmos fazer de nós próprios! Quando no outro dia tive de ir tratar da bendita unha do pé, valeu-me bem o humor! Se não fosse a risota acho que me teria custado a dobrar! Rir relaxa e atenua qualquer dor!

 

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