Irmãos ao quadrado
Questão psicologicamente controversa e atabalhoadamente estúpida, as razões pelas quais nós, humanos, somos felizes ou infelizes são diversas e muito complexas. Tudo começa na gestação, dizem os especialista na matéria. Depois há a criação, a educação, a cultura, a sociedade e, para além de tudo isso e mais alguma coisa, nós próprios. E isso sim define em muito o percurso que temos, como o fazemos, como gerimos as coisas. Não podemos nunca considerar que, com um percurso semelhante, sejamos pessoas semelhantes.
No outro dia vi um programa na Sic acerca de irmãos gémeos, sobretudo verdadeiros (ou monozigóticos) que me impressionou. Nunca percebi como é que pessoas que andam juntas, comem juntas, vivem juntas, fazem as mesmas escolhas, opções e têm percursos semelhantes não têm problemas de identidade. Não é só a sociedade que discrimina os gémeos, são os gémeos que se auto-discriminam por não terem, cada qual, o seu percurso individual, como a maior parte das pessoas. Todavia, duas pessoas exactamente com o mesmo percurso de vida (ou tanto quanto possível), serão igualmente felizes ou infelizes?
Nesse programa fez-me confusão, em particular, as duas gémeas que se casaram com dois gémeos, e falavam de tudo, conviviam juntas. Onde haverá espaço para a individualidade? Muitas pessoas acham uma graça desgraçada a pessoas parecidas, quase «iguais», que fazem as mesmas coisas da mesma maneira. Mas se o eu é o outro, então quem sou eu senão o outro? Aos olhos dos outros, e às vezes dos próprios gémeos, a identidade dilui-se. Não sei como pessoas assim podem estabelecer relações ditas «normais» com o mundo. Evidentemente, como em tudo, há casos em que irmãos gémeos agem de forma parecida com os outros irmãos: concordam e discordam, dão-se bem e zangam-se, batem-se e fazem as pazes. Isto é o normal para nos apercebermos de que podemos discordar ou concordar com o outro sem sermos discriminados por isso, sem ficarmos de costas voltadas ou de lado, ou magoados, tragicamente, porque a vida nos pregou uma partida dura: afinal o irmão não é o nosso espelho tranquilo e visível da realidade, a realidade é o mundo circundante, com tudo o que isso acarreta. Aquelas duas irmãs gémeas não sabiam nada sobre o mundo circundante que a outra não soubesse. Naturalmente se os gémeos as escolheram daquele modo, foi porque, subjacente àquelas vidas comuns, houve livre-arbítrio: afinal A apaixonou-se por C e B por D e não ao contrário. A menos que fossem como naquele filme dos anos 70 «Bob, Ted, Carol and Anne», em que eles trocavam de mulheres e o filme acabava com os quatro na cama, ou como os ABBA, cujos irmãos mudaram de namoradas dentro do próprio grupo. Os quatro gémeos (dois a dois) tinham uma vivência comum que se teria de pautar pelo respeito, não só pela escolha do outro (e da outra), como por tudo o resto. Se a irmã gémea chega ao pé da outra e diz «sabes lá como foi hoje na cama!», lá vão as duas comparar os gémeos no seu desempenho sexual. Como é que alguém acha piada a isto?
Eu daria uma péssima mãe de gémeos. Há alguma probabilidade de isso acontecer, graças a casos familiares. Mas nunca penso muito em filhos, não imagino sequer, o que é um bocado triste, dada a minha idade, ou não. É simplesmente um facto assumido interiormente que filhos não me fariam nada bem e só davam azo a que as pessoas exigissem o dobro ou o triplo de mim, do género «Anda lá, agora tens filhos, tens de pensar no bem deles, por isso anda cá mais vezes, cede mais vezes, sê palerma mais vezes, sofre mais vezes, ouve mais vezes que estás gorda». Os filhos servem para todo o tipo de chantagens emocionais que as pessoas se lembrem de fazer. Aliás, a minha avó nem concebe casais sem filhos, diz sempre, da forma mais trágica e utilitarista que já ouvi: “ Sem filhos eu era uma triste sem ninguém “. Portanto os filhos são tipo objectos, territórios sem ideias, nem espaço próprio, nem emoções, nem noções de felicidade. Servem aos pais como os cachorrinhos servem às crianças, para se atrelarem a nós, brincarem connosco, darem umas voltinhas e não criarem chatices.
Penso que eu, como mãe, seria o cúmulo da luta pela independência deles, de pôr os filhos a mexerem-se sozinhos e depressa, para fora do ninho. Um filho não me pode servir como uma sopa quente num dia frio, ou um cachorrinho para brincar. É um ser humano. Vai uma aposta que a maior parte dos pais não vê ser humano nenhum nos filhos? Se forem gémeos parece que a mão-de-obra aumenta. Muitas amigas minhas diziam «gostava de ter gémeos para ficar logo despachada», ou seja, dois filhos numa só gravidez. Nunca ouvi nada tão estúpido. Para além de ser, fisica e psicologicamente, muito mais difícil e esgotante, dá o dobro do trabalho e incita-nos a uma pedagogia muito mais afirmativa desde o início. Queremos que eles sejam amigos, irmãos, ou «os gémeos»? Ou não queremos nada e deixamo-los escolher? Essa seria a minha dificuldade em educar dois, em vez de um. Porque um, eu sei que incitaria logo a desenrascar-se sozinho, mas dois, têm-se sempre um ao outro para se desenrascarem, eu nem sei que mãe ou pai poderá impedir isso. Eu sou daquelas hipotéticas mães que poria filhos gémeos em classes diferentes, sem todavia ser cerceadora das suas opções individuais, que muitas vezes passam por quererem estar juntos.
Depois vem a intimidade, os namorados ou namoradas. Vêm as perguntas toscas das pessoas: «vocês trocam de namorada?», ou a célebre «fazem os exames um do outro?». São clássicos que os gémeos têm de ouvir (sobretudo se se vestirem de igual, com risco ao lado no cabelo). Nas comédias americanas há sempre um par de gémeas bimbas, louras de mamas grandes, que falam ao mesmo tempo enquanto bebem refrescos por uma palhinha. Os gémeos são constantemente ridicularizados: fazem-se filmes estúpidos com eles, servem para anúncios tolos, tão tolos que metem dó. Será que eu, individualista que sempre apanhei pancada de um irmão quando o copiava, conseguiria aguentar uma irmã gémea? Não. Faria o contrário dela em tudo, tanto quanto possível. Aliás, as minhas vizinhas de baixo eram gémeas, simpaticamente baptizadas pelo meu irmão de «trombudas» (lá vem o adjectivo no plural…), e andavam sempre à pancada: eram invejosas uma com a outra. Comigo seria assim: outra mulher como eu era demais na minha bolha existencial. Aliás, mulher e mulher dá sempre molho, tem de haver uma distância de segurança.
Ao contrário do que as pessoas possam, eventualmente, pensar, ter gémeos ou ter um irmão gémeo, talvez não tenha assim tanta piada, socialmente falando. Está bem que nunca se está sozinho, luta-se em conjunto (no caso de se darem bem e não serem como as «trombudas»), mas será que as pessoas têm a noção da individualidade de cada um? Será que os próprios ou próprias também não terão esse problema na sua relação com o mundo, com as pessoas? E se as escolhas dos gémeos não forem as mesmas, a partir de certa altura? Como todas as pessoas, correm o risco da cisão interna: se ele, afinal, não era como eu, então quem sou eu?
Muitos dos gémeos não têm uma relação «normal» de irmãos. Era dito nesse programa que por vezes tinham linguagens próprias que nem os pais descortinavam, que adivinhavam os pensamentos um do outro, que podiam sonhar o mesmo, que escolhiam pessoas do agrado um do outro. Há irmãos não gémeos que são também assim, mas é mais raro. O comum das situações é haver pancada desde cedo, discussão por brinquedos, invejas, mesquinhez, estratégias sujas para lixar o outro, conluios para matar a avó do coração, e muito boneco partido. Dessa relação faz parte o roubo, a chantagem, a torpeza de carácter, a rasteira, a mentira, a «coitadinhez» (eu era especialista em falso choro para o meu irmão levar pancada). No fundo, o microcosmos dos irmãos é a representação fiel do mundo, mas numa pequena e inocente escala, de sucessivos dilemas, traumas, mas também de alianças indestrutíveis. Se não tivermos essa estrutura, somos capazes de andar anos enganados com o mundo, com as pessoas, com a vida. É bom aprendermos que nada é fácil sem uma bengala, sem um irmão por perto, mas também é bom saber que o irmão está por perto, nem que seja emocionalmente. A mim parece-me que isto é que é saudável. Irmãos que nunca se dão bem ou que se dão sempre bem são como tudo na vida: extremos a evitar.
4 Comments:
Bem, eu posso vir a ter filhos gémeos. Nunca se sabe, dado o historial genético. Mas sinceramente não gostava nada que fosse logo à primeira vez :/
Ninguém me ensinou a ser mãe e, como tu mesma já disseste, não me venham dizer que todas as mulheres nascem a sabê-lo. Isso é uma redonda mentira! Há que ter vocação e aprender e querer e cuidar e proteger e nunca mais parar!
A minha mãe e a minha tia são gémeas "falsas". Não podiam ser mais diferentes em tudo: uma loura a outra morena; uma alta a outra mais baixa; uma roliça a outra mais magra; uma simples a outra vaidosa; até no percurso de vida, uma casada e a outra solteira. Contudo, há uma coisa singular, a amizade que existe entre elas. Nunca as vi discutir. Já me falaram muitas vezes de como se zangavam quando a minha avó as vestia de igual, mas nunca discutiram uma com a outra.
Já eu, que tenho uma irmã 6 anos mais nova, é raro o dia em que não discuto com ela. Não sei se a relação dos gémeos é mais chegada porque crescem juntos a cada instante, ou se é algo que vai para além disso, como se vê nas novelas :p
Na realidade, eu não entendo nada de gémeos, e espero que o destino não me abone com eles logo à primeira :/ Porque depois, onde é que vou estacionar os carrinhos? :p
O que contas acerca da tua mãe e tia é um bom exemplo (acho): identidade e diversidade de mãos dadas. Discutirem uma com a outra é que já deve depender das circunstâncias e das voltas que a vida dá...
Eu não me importava de ter gémeos. E se isso sucedesse faria exactamente como tu: nada de roupas iguais e por aí fora! Daria, sim, o dobro do trabalho, mas, Xaninha, quando uma pessoa quer aprender desenrasca-se na mesma. Quando se é mãe não nos nasce um manual de instruções na cabeça. É tudo observação, leitura, muita leitura (antes do nascimento, claro, porque depois não há disposição ou tempo!!) e paciência a arrodos!
No entanto, é preferível ter um filho de cada nação (como aconteceu com os meus pais), haver guerras e tratados de paz, porque é isso que dá sentido à família. Testamo-nos, sentimo-nos amados apesar de tudo, crescemos, aprendemos.
O caso dos gémeos não depende só da educação que tiveram em casa, mas, e acima de tudo, da personalidade de cada um e dos dois. Se há casos - como vários que conheço - em que nãp houve espaço para se descobrirem sozinhos, perceberem quem são e como são, é difícil falarmos em identidade. Depois há a questão que tantos problemas dá a alguns gémeos (e a Lisa sabe que é verdade pura!): e quando não concordam um com o outro?
O ideal é mantermos a identidade na alteridade, sabermos gerir a discordância. Mas se com irmãos de cada nação é difícil, imagino com gémeos...
Tininha
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