Saturday, January 12, 2008

O álbum

Vou contar uma história. Vai fazer mais sentido para a Elisabete do que para as outras pessoas, porque a Elisabete adora memórias, pedras preciosas, tesouros ao fundo do arco-íris. Este é um deles.
Conto esta história agora porque nos últimos dias a presença da minha mãe fez-se sentir. Não pensem cá em coisas esotérias, forças estranhas, cadeiras que se mexem, sons, etc. Pensem em saudade. Pensem numa fada com uma varinha mágica, com um sorriso, a caminhar ao meu lado. Pensem numa presença. Pensem numa força que vos empurra para o lado certo da vida mesmo nos piores momentos. É dessa forma que tenho sentido a minha mãe.
Então lembrei-a. E lembrei-me. O álbum. No dia anterior ao diagnóstico do cancro da mama dela, que eu já sabia que tinha esse nome porque sim, sabia, a minha mãe pediu que eu fosse buscar álbuns de fotografias. E ainda hoje tenho para mim que isso devia ser para ela uma espécie de ritual de passagem, duro e necessário, mas ao mesmo doce e rico de significado. De tantos álbuns que folheámos, chegámos ao maior, de capa dura, todo branco e com fotografias a preto e branco: o álbum de casamento dela. E eu, que na altura não pensava em casamento sequer (estávamos em 2000), não percebi o porquê de tanta emoção com aquele álbum com fotografias gigantes, algumas que a favoreciam tão pouco, com penteados e vestidos dos anos 60 de fazer corar de vergonha qualquer pessoa. Mas ela via o álbum de uma maneira que me comoveu, porque a cada fotografia que passava saltava-lhe mais uma lágrima, e dizia muitas vezes «Fui tão feliz!». Evidentemente, este «fui» tinha um significado que me transcendia por inteiro: ela sabia que de mãos dadas com a vida andava a morte, e que era isso que a esperava, que já não iria ver filhos a casar nem netos a crescer. Aquilo era uma forma de se entregar ao seu destino, um ritual de passagem em que ela me entregava testemunho.
Acho que há muitas coisas na vida que sabemos, à partida, sem perguntar a ninguém. Sabemos porque está dentro de nós a resposta. E às vezes a resposta é dolorosa, não é nada – mas mesmo nada – do que queríamos ouvir. Acho que há muitas respostas que oiço que não gosto de ouvir, e como não sou de ignorar nenhuma, elas ficam e mais tarde lembro-me delas, enquadro-as, percebo-as.
Um casamento é difícil, sobretudo porque as relações humanas são difíceis quando são diárias, rotineiras. Talvez a minha mãe sorrisse daquela forma terna ao seu casamento não tanto por ser feliz, mas por ter sido eterno, por ter sido a vida dela, por ter sido a sua opção. Depois de um ano (e quatro meses!) de casamento, sinto que me tornei rija em muitas coisas, mas um coração muito mole noutras, nomeadamente na compreensão das relações humanas, da fragilidade das mesmas, da capacidade de mudarmos o que não gostamos e que não está bem, na forma como escolhemos o «outro» e nos tornamos nele sem deixar de sermos nós, sofrendo com ele e estimando os seus sentimentos. Aprendi que qualquer que seja a nossa opção ela exige muito de nós se formos exigentes connosco, se não formos qualquer opção serve. Aprendi algum pragmatismo – à custa de muito tropeção, de muita dor. Aprendi alguma calma e introspecção e a fatalidade daquilo que não posso mudar.
Podia ter aprendido isso tudo com a minha mãe antes de ela morrer, mas aprendi lentamente e muito depois. Aliás, foram precisos todos estes anos para me voltar a lembrar do álbum e da forma como nesse dia a minha mãe estava do meu lado exactamente como eu nunca a vira: humana, frágil, mortal. Com uma lágrima no olho e doente. Tristonha mas contente por ter contado o que tanto a atormentava. Então a minha mãe fechou o álbum e iniciou o pior ano da vida dela comigo ao lado. No final desse ano proferiu a frase mais importante que eu alguma vez já ouvira alguém dizer «gostei muito de estar com vocês e de vos conhecer».

2 Comments:

At 3:40 AM, Blogger Brisa said...

Uma das razões que nos faz temer a morte é que ela venha sem que tenhamos tempo para nos despedirmos. Fico sempre muito emocionada quando sei que às vezes temos essa possibilidade e a aproveitamos com todo o coração. Ela e vocês tiveram essa sorte. Mesmo que durante uma vida não a tenhas conhecido como pessoa e, sim, apenas como mãe, ainda foste bem a tempo de a ver no seu todo. Mãe é parede de cimento que não racha nem diante de um terramoto! É assim que nos habituamos a vê-la, por ser nossa protectora desde que nascemos. É uma memória linda, linda, a tua, que te deve fazer sorrir e acreditar em ti!

 
At 9:07 AM, Blogger fercris77 said...

Tenho sorte, porque estou cheia destas memórias, e muitas vezes tenho tempo, paciência e também estrutura emocional para trazê-las ao decimo e partilhá-las.
Além disso, gosto imenso de escrever sobre a minha mãe, faz-me sentir bem, faz-me sentir que ela ainda está por cá...

 

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