Monday, December 03, 2007

A História Interminável

Hoje o meu post tem o nome de um filme fantástico. Um filme de 1984. E tem história, provavelmente interminável também. Eu vou contá-la. Em 1984 eu fiz sete anos. Animada pela promessa dos meus pais de que quando aprendesse a ler ia ao cinema, fui pela primeira vez com a minha mãe em 1984. Não me lembro porque fui só com ela. Talvez o meu irmão não quisesse ver o filme, talvez o meu pai não pudesse ter ido naquele dia – não me lembro. Talvez tenha sido um projecto entre mim e a minha mãe, tal e qual como quando íamos juntas à Baixa.
Eu tinha aprendido a ler há bem pouco tempo, portanto não seguia as legendas todas, a minha mãe teve de me explicar algumas partes do filme – além disso, eu já via muito mal. Mas sei que o filme me marcou para toda a vida, e nesta vinda a Roma percebi porquê. Vi o filme à venda e namorei-o dias e dias, mas reparei que não tinha legendas em português, para o ver e perceber teria de me esforçar no inglês ou seguir legendas em italiano – acabei por optar pelas duas. Todavia, ainda havia uma outra hipótese, bem remota: lembrar-me do filme quando o vi em 1984. Foi também o que me aconteceu. E foi tão bom ouvir a música do Limalh outra vez «Neverending Story». Foi tão bom vibrar com o filme e com o herói do mesmo. E finalmente perceber tudo sobre o filme: porque sempre gostei dele, porque ainda gosto dele, porque me marcou e quem sou eu no filme.
Obviamente sou o Bastian. Não tão má aluna como ele a matemática, mas igualmente boa leitora e participante das minhas leituras. Mas quem eu gostava de ser era o Atreyu ou a Imperatriz-Menina. E a história tem essa graça: os heróis são meninos e meninas, não homens, não guerreiros, mas meninos-guerreiros. E a partir dos sete anos, com pesados óculos na cara, eu desejei muito entrar na História Interminável, como entra o Bastian, e deixar de pé Fantasia, o universo onde reina a Imperatriz-Menina.
A Paula disse-me no outro dia que lhe disseram que Novembro é um mês terrível para quem perdeu alguém. Há saudades que não acabam mais. Há tristeza. É do tempo, da aproximação do Natal (que custa tanto), não se sabe bem. Mas é realmente um mês de transição. Para mim é sempre. Desde sempre. Não sei se não detesto mais Dezembro, por causa do Natal. Aos sete anos o Natal tinha tanta graça e era tão rico e hoje para mim vale zero. Mesmo zero. Não me lembro de nada tão mau, tão cruel e tão duro como o primeiro Natal sem a minha mãe. E quem me conhece sabe que não sou de choraminguices destas. Por isso cheguei a este Novembro, mais um passado em Roma, com a sensação de que a minha mãe partiu, realmente, mas está aqui comigo, quando eu atravesso a ponte Sant’Angelo ela está lá e fala comigo, e é tão fácil, tão simples…e tão estúpido, tão patético.
Descobri há bem pouco tempo que o segredo da vida se reduz a uma coisa muito importante: a espera. Queremos tudo demasiado rápido. Queremos comida rápida (excepto a Patrícia Torres), queremos que a constipação passe rápido (a gripe nem se fala), queremos que a gravidez passe rápido para vermos a cara do nosso filho, queremos ter um parto rápido para não doer, queremos sair rápido de casa (algumas pessoas, pelo menos), ter emprego rápido, ter estabilidade rápida, queremos resolver rápido o que não nos satisfaz. Eu pelo menos sou assim. Muito impaciente, inclemente, e por isso sofro da doença da rapidez. Quero perceber tudo rápido. Mas levei mais de dez anos a perceber a História Interminável, isso vos garanto, e toda a sua beleza, encanto e doçura, sobretudo na mensagem que transmite.
Do que me lembro com sete anos? Da minha mãe ao meu lado no cinema, sem dúvida. E da cena tenebrosa em que morre Artax, o cavalo do herói Atreyu, na lama movediça. Levei o resto do filme a perguntar à minha mãe «Morreu mesmo?», e ela dizia «Sim», e eu fiquei muito triste. Lembrava-me que o cavalo era branco. Só hoje, com trinta anos de vida, percebi essa cena: o cavalo não morre por acaso, morre para Atreyu aprender a continuar sozinho o seu percurso. O cavalo decide morrer. E quando na cena final volta a aparecer, fica claro que é fantasia, porque o cavalo tinha morrido. E eu para a minha mãe «O cavalo ressuscitou?», e ela «Sim». Atreyu sou eu e o cavalo a minha mãe. E ainda hoje, a ver o filme, me desespero completamente com o sofrimento de Atreyu, porque é o meu sofrimento, quando ele grita «Não me faças isso, Artax, não desistas! Preciso de ti!». Uma cena tão simples e com tanto significado. Sozinho e desamparado, Atreyu depara-se com falta de ajuda, cansaço, solidão, tristeza e doença, da qual só recupera quando é, no último suspiro, raptado pelo dragão da sorte (do qual eu me lembrava perfeitamente, excepto nos dentes e nas escamas, que agora achei horrorosos e mal feitos). O dragão ensina-lhe que ele não está sozinho, dá-lhe a mão nos piores momentos, procura por ele quando não o vê, preocupa-se genuinamente em lutar contra o fim de Fantasia, tomada pelo Nada. O Nada é o caos, a desordem, a escuridão, as trevas. Atreyu acha que falhou, Fantasia é destruída, e diz-lhe o dragão «Pelo menos tentaste». O dragão da sorte são os meus amigos.
Quando Atreyu se defronta com o lobo que representa o Nada diz-lhe que prefere morrer a combater, porque toda a vida combateu. Pergunta ao lobo quem é ele, e a resposta parece-me exemplar «Alguém vendido ao poder do Nada. Dantes os homens sonhavam, tinham coração, mas agora desistiram dos seus sonhos e venderam-se ao poder e à ambição. Represento a traição aos sentimentos». Atreyu mata-o, todavia antes de aí chegar tinha passado já por duras provas, uma das quais passar por entre duas esfinges que dizimavam quem mentia a si próprio. As esfinges liam o coração. E lêem o medo de Atreyu, por isso disparam, ao ponto de ele correr para não morrer. As esfinges são os meus inimigos: lêem-me o coração e tentam aniquilar-me.
Chegado à Imperatriz-Menina, que eu não me lembrava que era também uma criança, Atreyu chora e diz que falhou, mas a Imperatriz diz que não. Diz que com a sua bravura convocou outros a serem bravos, os leitores das suas histórias. E então convoca Bastian, o terrestre que Atreyu chamou e que tem de lhe dar a ela um novo nome. A Imperatriz diz-lhe «Tu sabes que nome me dar, mas não tens tido coragem de o dizer». Bastian abre a janela e grita o nome da mãe, que morrera (e não se chega a saber qual é esse nome, mas para que a Imperatriz não morresse era preciso dar-lhe um novo nome, segundo o Oráculo). Não me lembrava que Bastian era órfão de mãe, lembrava-me só que era um garoto triste e desolado, que os outros gozavam na escola. Mas pelos vistos Bastian e eu temos muito em comum.
A Imperatriz diz-lhe então que só sobrou um grão de todo o seu Império, mas que chega para construir um novo, basta querer. E para isso Bastian só tem de…sonhar, inventar, criar. E Bastian começa a inventar, a criar (daí a ressurreição do cavalo, ele também não deve saber lidar com a morte dos que amamos, como eu).
Tão bonito o filme! À distância de mais de vinte anos, acho o filme magnífico. No final, o narrador diz «Bastian inventou e criou, mas um dia teve de voltar à vida real…só que isso é outra história». Lembra-me quando eu sonho e gosto muito do sonho, acordo e volto à vida real.
Em 1984 ninguém fazia merchandising destes filmes: não havia cadernos, cadernetas, lápis, canetas, camisolas dos filmes, como hoje há do Homem-Aranha. Com muito menos do que há hoje, acho que éramos crianças muito mais felizes: tínhamos calquitos, cromos, barbies, sandálias transparentes para ir à praia, ténis e calças de treino para os fins-de-semana e víamos o Corpo Humano e a Abelha Maia. Se víamos um filme, fixávamos a história, não líamos resumos e sabíamos a priori de que tratava. Íamos à sorte e adivinhávamos o conteúdo dos filmes e dos livros. A vida era uma aventura muito divertida. E sobretudo íamos ao cinema com os nossos pais e por muito cansados que eles estivessem viam os filmes connosco, ainda fazíamos os trabalhos de casa com eles, no tempo em que fazer trabalhos de casa era uma coisa normal e regular, diária mesmo. Mas desse tempo o que mais recordo é que a minha mãe não aparecia nos meus sonhos, porque era viva e fazia parte da minha vida diária. Estava ali, à mão de semear. Hoje tenho de ir à procura dela na ponte de Sant’Angelo, numa igreja, num sonho, na minha memória, que nem sempre é feliz na forma como a recupera. A minha também é uma história interminável, que só resiste pela luta, pela bravura, e sobretudo pela minha imaginação, pela verdade do que o meu coração é e sabe. Com tanta força talvez as esfinges não me dizimem. E quem sabe o mundo seja como o Walt Disney o definiu «se podes pensar, então consegues fazer».





2 Comments:

At 3:17 AM, Blogger Brisa said...

Tu com este filme, eu com o Principezinho e com a Fada Oriana, cuja memória deliciosa carrego desde os tempos da Primária, em que a professora nos lia, todos os dias, um pedacinho. Ficaram ambos, até hoje, lidos e relidos sempre com um novo olhar. Que bom para ti, para mim, termos estes fragmentos de vida para recordar. Rever esse filme é como tornar a viver um momento bom, particularmente bom no teu presente.

 
At 5:26 PM, Blogger djowup said...

hey, essa é a melhor demonstração de amor pela História sem fim que eu já li! eu também não entendo como muita gente não entendeu de cara esse filme. até parece desculpa ou vergonha para não ter que se comprometer com as mensagens deixada pela historia. e que bom que você viu no cinema. eu só vou ver agora graças ao remake que vão fazer. espero que o leonardo di caprio e a produtora dele saibam o que estão fazendo, justamente mexendo com nossas memórias de infância^^

e sabes que aqui no Brasil cultuamos muito os anos 80. os filmes mais lembrados aqui, por exemplo, são os chamados clássicos da sessão da tarde, que eram filmes que passavam na sessão de filmes Sessão da tarde, na Globo, ou no Cinema em casa, do SBT, rede de tv do milionário Sílvio Santos.

aqui na rede de amigos orkut(igual ao HI5) tem umca comunidade pra esse filme
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=135186

tem mais de 6mil pessoas e é mto bom lá. se um dia tu quiseres se inscrever lá pra dar uma olhada na comu(já q tds falamos português), é só criar um usuário e senha e sinta-se a vontade.
=]

aliás, teu post foi quase que interminável tb, igual à história, mas foi excelente lê-lo
^.

 

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