Tuesday, November 13, 2007

O gueto

Diz-se que é um fenómeno cultural. Um gueto é uma espécie de espaço isolado, afastado do mundo, com gente da mesma raça ou da mesma espécie. Geralmente é um fenómeno social, económico ou simplesmente cultural. Dar protecção aos iguais pode também ser um fenómeno de nacionalismo. Muitas vezes o gueto não se mistura com o exterior, daí o nome. Os chineses que vêm para Portugal ou para a Itália parecem-me iguais. Os árabes, os indianos, os romenos que estão aqui, em Roma, são em tudo parecidos aos de Portugal. Aprendem a língua, falam com sotaque, entre si usam a língua nativa, vivem juntos e fazem negócio.
Depois há o gueto cultural, também protegido por embaixadas ou institutos. Aqui há o Instituto Português, como deve haver albergues espanhóis, ingleses, alemães e alguns mais. Aquilo que o gueto tem de bom é exactamente o problema do mesmo: encontramos um bocadinho do nosso país aqui. Sentimo-nos em casa, por um lado estamos bem, mas vemos os defeitos da «nossa» casa à lupa. O que me faz pensar que todas estas pessoas, já híbridas de tanto falarem italiano e viverem em Itália, são, essencialmente portuguesas, em costumes, tradições, modos de vida e, acima de tudo, modos de pensar. O pensamento é tudo.
Assim que aqui entrei vi-me em Portugal em ponto pequenino. Aqui as obras são feitas por italianos e há uma certa mistura de línguas, os italianos falam um pouco de português e os portugueses sabem (quase todos) falar italiano com correcção (parece-me). Todavia, as empregadas são analfabetas, algumas extremamente incorrectas, coscuvilheiras, o sacristão é preguiçoso e o padre que gere tudo isto, pessoa certamente culta, tem modos distantes, afectados, altivos, de autêntico burguês que gere um palácio. Ele gere um gueto, mas não sabe, ou se sabe não mostra, porque é esperto. Esta «espertalhice» é tuga, é nossa. Aqui está o Eça de Queirós narrado, com todas as melhores personagens. Estas são as criadas do Eça, as que vigiam a Luísa nos seus encontros fortuitos com o primo Basílio e espalham as notícias rapidamente umas pelas outras. Os padres e os sacristães são iguais aos do Eça: inúteis, corrompidos, larvares.
Quem não gosta de se ver no seu país, de ouvir a sua língua? Eu gosto. Mas aqui evito com alguma veemência os portugueses. É bom ouvir português, mas posso sempre ouvir a Amália no MP3. É bom conversar em português, claro que sim. E ter costumes portugueses. E vir de Lisboa (apesar de as empregadas daqui virem todas de Viseu). Mas de resto não. Estar isolado tem as suas vantagens e tem os seus males, bem sei, mas se uma pessoa quer conviver com portugueses fica em Portugal, não se desloca a Roma, nem arranja um trabalho que exija deslocações. O bom das deslocações é a mudança de hábitos. Algumas mudanças custam, como estarmos habituados a companhia ao fim do dia, ou ouvir notícias em português ou almoçarmos com amigos. Mas algumas não custam. Estar sozinho é semelhante a estar em paz, quer dizer, claro que os problemas existem, claro que a minha vida não é aqui, mas agora, neste momento, é. E eu sou obrigada a estar presente, dentro ou fora do gueto, eu mantenho-me eu. Há uma vida em Portugal à minha espera, este é o intervalo dessa vida. Portanto, trabalho muito, mas descanso outro tanto. E eternamente me vão perguntar o que vim cá fazer, para que é que isto serve, o que é que isto dá no futuro e acima de tudo vão dizer-me, como já ouvi mil vezes «isso deve ser muito giro».

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