Sunday, October 14, 2007

Tiros no Escuro

Em todos os filmes de terror e de acção que vi na vida, as personagens mais estúpidas – normalmente destinadas a morrer sem grandes dramas – são aquelas que dão tiros no escuro. Dar tiros no escuro é, antes de mais, gastar balas que poderiam vir a ser úteis numa outra ocasião e também correr o risco de acertar algures, nenhures ou…num amigo, num familiar. Por isso, dar tiros no escuro é das coisas mais estúpidas que se pode fazer.
Corremos todos esse risco, essencialmente porque, na vida, queremos sempre ter razão. Mas às vezes ter razão implica descobrir coisas chatas nas quais acreditámos toda a vida e que, no presente, deixam de fazer sentido. É sermos rendidos pelas evidências. Quando percebemos alguma coisa acerca de alguém, queremos provar à força a nossa tese de que, se essa pessoa se dá mal connosco, só pode dar-se mal com o mundo. E não é verdade. Conheço uma boa mão cheia de pessoas que não têm empatia comigo mas têm com outras pessoas, ou vice-versa, pessoas aparentemente difíceis que comigo se dão bem. A vida não é preto no branco. Aquilo que para mim é estúpido e inaceitável, parece ser bastante razoável para outras pessoas. E há coisas que me parecem bem estranhas…
Durante uns tempos gastei as minhas forças, quase obsessivamente, a denegrir mentalmente uma pessoa que me perturbava. Mais tarde voltei a conectar-me negativamente (utilizo a expressão da Diana) com outras pessoas ainda piores ou um pouco melhores. Porque fico eu agarrada ao que nada tem a ver comigo? Tenho uma certa obsessão pela verdade mas também pela extirpação do mal, do errado. A minha figura favorita é o Arcanjo S. Miguel, que derrota o demónio. Todavia tenho também uma perspectiva positiva acerca do «mal» (chamemos-lhe assim): juntá-lo a mais mal. Parece estúpido e destila veneno, mas se juntarmos más pessoas com más pessoas e as metermos no canto delas, não há hipótese de sairmos lesados (só temos é de fugir).
Há uns anos vi uma comédia um bocado amarga com a Roseanne Barr antes da sua dieta. A personagem dela era a de uma mulher que faz tudo pelo marido e pelos filhos mas, traída pelos dissabores da vida, o marido larga-a por uma mulher muito mais nova, bonita, rica e fútil. Ela jura vingança e começa o seu plano diabólico que visa retirar ao marido tudo o que é importante para ele: carreira, casamento, dinheiro, filhos (as prioridades são mesmo estas). Com o apoio estratégico de uma série de colegas e amigas, ela consegue colocar o caos na vida do ex-marido ao ponto de ele ser preso. Para além disso, perdoa-lhe mas não o aceita de volta.
Era bom que por vezes arranjássemos planos e estratégias deste tipo, tendo em vista a desconstrução e a reconstrução das nossas vidas, mas nem sempre mandar ao fundo os outros é uma glória. Acho que o sofrimento dos outros só agrada aos sádicos, daí serem sádicos. Não tenho muita pena do sofrimento que as pessoas infligem a elas mesmas, muitas vezes é uma escolha para se fazerem de «coitadinhas», andarem a penar, fazerem dos outros gato sapato. Enquanto isso vemos pessoas corajosas que são de facto doentes mas fazem tudo para se manterem de pé. A verdade é que o mundo nem sempre é justo e temos sempre de descobrir isso por nós próprios, pior ainda, aceitar esse facto como consumado. Aliás, aceitamos bem a injustiça desde que não seja connosco, regra geral.
Voltemos aos tiros no escuro. Ocorre-me sempre aqueles casos (tipicamente americanos), de pessoas que ouvem barulhos à noite, descem as escadas e, sem querer mas porque possuem uma arma comprada no WallMarket (escreve-se assim?) por meia dúzia de dólares matam a mulher, o filho, o cão. Se partissem o enxoval da sogra (provavelmente feio como todos os enxovais oferecidos por sogras abonadas) não era grave, mas matar alguém é. Para além da culpa, que faz parte dos sentimentos do ser humano, que toda a vida acompanha um pai que faz mal ao filho, ou um marido que faz mal à mulher (ou vice-versa, porque as mulheres também pegam em armas), há a injustiça, o impulso. Porque será que achamos que disparar em todas as direcções nos dá poder? No fundo, queríamos matar um ladrão, mas ele não existia, era fictício, acertámos numa pessoa. Por isso, a vida funciona assim: queremos vezes demais «matar» pessoas quando estamos, afinal, a fazer a caça às bruxas de que falei, queremos à força manter a ordem pelas nossas próprias mãos.
O autor Arno Gruen explica estes processos de uma forma magnânime nas suas obras, explicando todo o comportamento humano através dos processos de cisão interior. Significa que muitas vezes estamos a lutar contra um fantasma ou então uma presença interior, intrínseca a nós próprios e não exterior. A forma basilar das relações humanas é esta: não podemos mudar os outros, mudamo-nos a nós, o que não significa submetermo-nos aos outros, mas sim aceitar que não os podemos mudar. Evidentemente que é complexo e a explicação certinha só um médico psiquiatra (dos bons) pode dar.
Se há coisa que sei sobre mim é esta: sou muito honesta. Se tenho problemas e não sou capaz de os ultrapassar, digo que tenho problemas e não sou capaz de os ultrapassar sozinha. Então peço ajuda. Acho que tenho feito o erro supracitado, tenho sido uma parvalhona a tentar mudar o exterior, mas afinal, porque ainda sou jovem ou porque sou inteligente, sou eu que tenho mudado e acho que para melhor. Os problemas não servem só para estragar a vida. Como diria a minha mãe, a cabeça não serve só para ter cabelo e fazer penteados bonitos, serve para pensar. Quando ela me dizia isto, eu sabia que tinha feito o erro maior: pensar pela cabeça dos outros ou esperar que os outros me resolvessem um problema. Na realidade, somos nós que temos de chegar lá. Vemos bem isso quando damos aulas. Há sempre alunos a quem não conseguimos ensinar nada, mas há alguns que percebem que fazer penteados bonitos não chega (são poucos, eu sei).
Dantes eu precisava ainda mais das pessoas. Quer dizer, continuo a falar que nem uma desgraçada, a rir-me enquanto conto infelicidades, mas não preciso que me digam que sou capaz. Cai sempre bem – não se inibam de o dizer. É evidente que, como acredito muito nos meus amigos, gosto que o Paulinho Mongo me diga que eu sou «boa rapariga e boa mulher». São coisas muito boas de se ouvir e ele é credível (apesar de perder tudo em todo o lado…). É bom ouvirmos coisas da boca de pessoas a quem atribuímos credibilidade. Que eu saiba ninguém consulta pessoas cuja credibilidade é duvidosa, e se alguém o faz é por ignorância. Geralmente vou a médicos recomendados por outras pessoas que tenham sido bem tratadas por eles. Tem lógica. Todavia, há imensa gente que acha a sua opinião válida mesmo sabendo que a sua credibilidade é zero. E é dessas que ouvimos mais opiniões, geralmente insensatas. São os tiros no escuro. É desses que temos de nos desviar. Lembra a biografia da Sade, que chumbou em todos os exames vocais, mas que tem uma voz belíssima. Terá ouvido opiniões sensatas e insensatas e teve de chegar às suas próprias conclusões sozinha. É como tudo na vida.
A Faculdade de Letras não tem aquilo a que podemos chamar «avaliações objectivas». Escrever e interpretar tem a sua parte científica, mas a nota é dada por quem lê, gosta, aprecia (ou não), escrutina e ajuiza. Ouvimos dizer tão mal do nosso trabalho, chumbamos numas cadeiras porque não sabemos escrever e passamos noutras porque escrevemos bem. Afinal, onde está a verdade? Temos sempre de discernir o professor que dá uma opinião sensata e construtiva daquele que dá tiros no escuro. Nenhum de nós pára de aprender nunca. Tudo é uma experiência constante de aprendizagem e de domínio de instrumentos de saber. Quem somos e o que sabemos para além da opinião das outras pessoas? Essa é a grande prova de fé em nós próprios.
Eu acho que sei escrever. Mas acho por mim, não acho só pelos outros, e não me sinto enganada. Já me li e gostei. Quando escrevo não me sinto o Zé Cabra-que-acha-que-é-cantor, nem o Emanuel e o Quim Barreiros, que cantam para ganhar uns trocos (mas têm carros de luxo e casas com piscina). Quem sou eu para os criticar? Mas na verdade também não me sinto uma Margueritte Duras ou uma Simone de Beauvoir. Escrevo por diversão mas também porque acho que sei escrever. E acerca da escrita só oiço quem me interessa e não quem manda tiros no escuro. As regras que aplico à minha escrita deveria eu aplicá-las à minha vida, mas nem sempre o consigo com suficiente discernimento. Como diz a Patrícia, por vezes a minha escrita transcende a minha vida, ganha força e balanço e vai mais à frente. É estranho, mas ela tem razão. Não é pessoa de dar tiros no escuro.
Quando somos pessoas inseguras temos duas soluções: ou criamos uma barreira de segurança (que nos permita fazer a destrinça entre as «opiniões a serem ouvidas» e as «opiniões a serem rejeitadas»), uma espécie de «delete» do lixo que ouvimos (e muitas vezes não somos obrigados a ouvir); ou então solucionamos a coisa de uma forma um bocado triste, mas talvez a mais usual, que é engolir e acreditar no que nos dizem e julgar o mundo por esse prisma. Nesse caso, qual a diferença entre uma pessoa assim e uma marioneta? Nenhuma. Curiosamente este é o caminho mais fácil e também o mais seguido pelas pessoas. É muito fácil sermos manipulados e há pessoas que gostam disso, não têm qualquer problema com uma suposta falta de liberdade constituída por não raciocinarem pela própria cabeça (afinal, dá muito mais trabalho fazê-lo).
Todos temos um caminho a percorrer. Creio que o caminho da destrinça entre o que interessa e o que não interessa ouvir/considerar é mais difícil do que o outro, todavia, não sei, porque a falta de autonomia também traz amargos na boca, faz estragos na vida e, em retrospectiva, a diferença entre alguém assim e uma planta é que uma pessoa assim não faz a fotossíntese. Há pessoas para quem o engano é a salvação. Se descobrissem a verdade, morriam de desgosto.

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