Sunday, October 14, 2007



A simplicidade

Só há uma maneira de encontrarmos simplicidade: nas crianças. Os bebés são despreconceituosos ao máximo e também nos ensinam a ser pessoas simples. O Serginho, meu sobrinho, não se inibe de dar traques enquanto come pedaços de pêra ou de maçã, sentado junto aos tios. Os bebés podem fazer quase tudo, são reis e senhores de um universo muito pequeno, porque estão em formação, não têm propriamente uma filosofia de vida que não seja a principal do ser humano: sobreviver. Um bebé gosta de botões como nós gostamos de filmes, mas a razão desse gosto é simples: cor e forma, depois o toque. Por isso eles adoram telemóveis. Aí vem o som. Um bebé gosta de explorar pés, mãos e a boca das outras pessoas. A Beatriz, sobrinha da Paula, coloca as mãos na minha boca com a mesma destreza com que as coloca num urso de peluche – e sem pedir autorização. Um bebé não diz «deixa-me ver a tua boca, posso?». Um bebé não é dentista, é um explorador. Uma boca tem tanta graça como uma tomada na parede, um brinquedo ou um medicamento. Não há a noção de causalidade implícita, do género, «se tomar isto sinto-me mal e posso morrer».
Um bebé vomita, caga, esperneia, grita em qualquer local e não vai para a casa a pensar «que figurinha fiz eu hoje! Coitados da mamã e do papá!».
Um adulto tem uma ganga de coisas difíceis em cima: a moral, antes de mais, a noção de comportamento socialmente aceite e/ou correcto, a noção de consequências, etc. Por isso, se um adulto faz sabe o que está a fazer, ou pelo menos podemos pressupor isso, a menos que haja doença mental grave.
Para nós, a simplicidade é das coisas mais difíceis de conseguir. Tudo passa a ser difícil a certa altura da vida. Essa altura pode ser aos dezoito anos, antes ou depois, pode até ser muito tarde. As coisas deixam de ser simples, ou porque temos de suportar os problemas e já não há quem os suporte por nós, ou porque temos dívidas, ou porque alguém está dependente de nós directamente. Sim, os problemas começam aí mesmo, quando alguém depende de nós.
Simplicidade e burrice são coisas diferentes, naturalmente. Aquilo que escrevi acerca dos bebés nem é simplicidade, é uma aprendizagem muito complexa da vida, que nós, adultos sempre cheios de ideias, achamos simples. Para nós, simplicidade é outra coisa. Acho que se prende com os intervalos do complicado. Quando uma coisa complicada tem um pequeno intervalo, às vezes conseguimos cheirar uma flor, dar um passeio, ter uma conversa agradável, enfim…recordar como é bom cheirar, tocar, lamber, sem haver pensamentos pelo meio. Ler um livro também me parece muito agradável, mas exige mais de nós. Nem sempre é simples. Mas o conhecimento, a filosofia, a pesquisa podem tornar-nos seres muito mais esclarecidos e felizes. Há aqui um colega na biblioteca que diz que descobriu a felicidade desde que se inscreveu num doutoramento e tem quase cinquenta anos.
Alguns dos meus alunos eram burros. Já crescidos, mas com uma incapacidade de abstracção medonha. Como seriam a matemática se eram incapazes de perceber que o Consílio dos Deuses, episódio mitológico de Os Lusíadas era apenas um enfeite do texto e não tinha acontecido mesmo? Aliás, todos os dias eu era surpreendida por perguntas deste calibre: os deuses decidiram mesmo a sorte dos portugueses? As pessoas falavam em verso no tempo de Camões? Não era melhor ele ter salvo a Dinamen em vez do livro? Assim perdeu uma namorada e fez com que a obra dele desse trabalho aos alunos. A melhor observação que tive, essa mais simples e muito menos burra, foi a de um aluno de que me lembro muito bem, volvidos tantos anos, que ficou chocado com o epitáfio escrito a Camões, que o designava como um «grande poeta» mas também como alguém que morrera na miséria. O meu aluno, chocado, saiu-se com esta «isso não é muito positivo, stôra. Se eu morrer prefiro que escrevam: «aqui jaz o Fábio, que curtiu bués e se divertiu à grande nesta vida!». Acho que, para além de simples, é honesto q.b.

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