Monday, October 01, 2007

A casa

Era uma vez uma casa…não posso divulgar a morada porque senão toda a gente que lê o meu blogue vai querer lá ir. Vou chamar-lhe «a casa da Paula», com a advertência de que a casa não é dela, é dos pais, e que este caso tem história, pois dantes havia amigas parvas da Paula (como eu) que se atreviam a ligar para a casa dela perguntando «é da casa da Paula?» e a mãe respondia «não, a casa é minha, mas a Paula não está».
A casa da Paula é o lugar mais habitado e seguro que conheço. Por muito vazio que fique, está sempre cheio. Por muitas pessoas que saiam, mais entram. É uma casa saudável, pelo que me é dado a ver. Não existem casas perfeitas, ou melhor, famílias perfeitas, todas têm problemas, ovelhas brancas, ovelhas negras, avós chatas ou avôs rezingões como eu tive. Eu até tive uma colecção de madrastas ruins e outras tantas que passaram na vida do meu pai mais rápido que fogo de artifício num dia de festa. No entanto, a minha casa sempre foi muito mais fechada e inabitada do que a da Paula, sobretudo depois da morte da minha mãe. Porque depois disso houve silêncio e ficámos sem fala ou palavras possíveis para denominar o momento. O presente passou a arrastar-se para o futuro com muita dificuldade e alguma dor.
A casa da Paula é muito especial por causa das pessoas que a habitam. Por causa da Paula, da mãe dela, do pai, do irmão, da cunhada, das primas, dos sobrinhos e primos e amigos que chegam e ficam na casa de passagem. Lembra alguns costumes africanos, em que as pessoas chegam às casas, tomam as suas refeições e continuam o seu caminho.
Desde sempre que me habituei a ir àquela casa. Depois a Paula casou, saiu de casa, mas a casa ali está, com a mesma dinâmica para a Paula e para os amigos da Paula. Há sempre café e bolachas. Há sempre milhares de conversas, de desabafos, há centenas de coisas a passarem-se em paralelo à casa, ou em diagonal. Há ali boas energias. Os filhos não estão presos aos pais com pregos obrigatórios, a nora é tratada como mais um elemento (de uma família saudável), e os amigos fazem parte da vida. Cheguei a um ponto da vida em que toda esta normalidade me parece tão sensata e doce que quase me apanha desprevenida.
A minha casa sempre foi muito mais anormal do que a da Paula, nas minhas considerações. Mas sempre foi uma boa casa, também. Como diz o meu irmão, pertencemos a uma casta de gente que quando tem problemas se ri e isso é especial. Contamos uma anedota, discutimos o quão parvos eram os nossos pais e o quão chatos eram os nossos avós, e vemos sempre que isso não mudou. A avó continua a achar que a cristaleira nos vai cair em cima a qualquer momento e que temos de comer até rebentar ou morremos magrinhos. O meu pai continua a achar que o feijão verde enfeita a sopa mas não é para comer e que morangos e amoras são exactamente a mesma coisa. A minha mãe e o meu avô resolveram ser anjos antes de tempo e já não nos fazem companhia presencialmente, mas devem andar por ali e rir-se de tantos disparates.
Recentemente a família cresceu e veio a Elisabete, depois o Serginho e depois a Helena. A Elisabete é como uma irmã para mim (sorte a minha, que as cunhadas às vezes também parecem salamandras com veneno pegado às patas), o Serginho (meu sobrinho) parece ser intransigente, ou a cadeira é dele ou nada feito, mas ainda não lhe vemos os traços todos de carácter, é muito pequeno. A Helena veio mais tarde, é a minha madrasta, mas eu prefiro dizer que é a vizinha do 4º direito, porque «madrasta» encerra uma série de cognomes, epítetos, ideias preconcebidas muito desagradáveis, e felizmente a Helena não é nenhum deles. É apenas ela própria e ouve-me com disponibilidade e graça.
Não entro muitas vezes na casa dos meus pais. Os últimos anos foram duros e eu tive de lutar um bocado para me erguer ou reerguer. A casa não tem movimento nenhum, é como se estivesse morta e talvez fique melhor quando eu tirar de lá todas as minhas coisas. Mas dali só saiu gente e o meu pai basicamente vai lá buscar o que precisa, levando pratos, talheres e copos do 4º esquerdo para o 4º direito. Portanto, nada tem que ver com a casa da Paula, melhor, dos pais da Paula. A casa dos meus pais está desactivada. A casa dos pais da Paula é eterna: está lá sempre alguém, está lá sempre a máquina de café e as bolachas, há sempre alguém que vai lá dormir, pernoitar, porque «é muito tarde para voltar para casa e a Paula tem casa em Lisboa», há sempre secretárias, escrivaninhas e computadores para se trabalhar, livros para ler, mesas para escrever, filmes para ver. E tudo isto não está ali morto, a flutuar no universo, tudo isto tem uso, apesar de a Paula e de a mãe da Paula dizerem sempre que «está tudo cheio de pó».
A vida ali existe também pelas boas relações que nós, amigos da Paula, mantemos com os pais e restante família, e vice-versa. Creio que a Paula sabe que são relações que já a transcendem, quer dizer, já gostamos deles para além da existência dela, mas isso a mim parece-me bom, um dia quando for mãe (se conseguir ter coragem para tanto) quero permitir isso aos meus filhos, a possibilidade de eu fazer amigos através deles. Deve ser fantástico…
Não posso dar a morada da casa da Paula, senão vocês iam todos para lá. Mas fica mais ou menos no final do arco-íris, tipo pote de ouro. Perguntem à Ângela (o morzito), à Patrícia França, à Patrícia Torres, à Sofia, a mim e a muito mais gente que já por ali passou, pernoitou, bebeu café e comeu bolachas (embora eu jure que já lá comi muito mais refeições variadas!). Dava um prémio a alguém que encontrasse uma casa como a da Paula, perdão, como a dos pais da Paula.

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