Os nossos pais
Eu e o Paulo Mongo, meu amigo há décadas, descobrimos mais uma coisa comum entre os dois: somos muito sentimentalóides no que diz respeito aos nossos pais. Para mim é uma novidade, uma descoberta daquelas. O Paulo obviamente já sabia que adorava os pais. Mas eu sempre fui desligada dessas coisas e foi preciso perder um deles para perceber que os adorava, a ambos, de formas diferentes, certamente, mas afinal sou devotada aos pais. E não sabia.
Esta minha adoração não veio só com a morte da minha mãe e com a morte do pai do Paulo. Veio com a observação concreta do que é que são bons pais e do que são maus pais. O Paulo é mais sensato e sempre soube que os pais deles eram maravilhosos, dentro das hipóteses que tinham, à maneira deles. O Paulo é mais generoso, também. Eu sou mais pateta, cresci mais devagar (por isso ele me manda sempre correr, para ver se eu cresço mais depressa).
Acho que é bom chegarmos aos trinta anos a sabermos quem são os nossos pais, onde erraram, porque erraram e onde podemos fazer melhor – se é que podemos – enquanto pais e enquanto filhos. No outro dia vi um livro que preconizava o perdão total e absoluto para os pais. Deve ser uma ideia herdada da Bíblia. Dizia o livro que devíamos sempre respeitar os pais, mesmo que eles nos tratassem mal. Acho que é a ideia da minha avó, que sempre viu no pai dela um ser humano bom e genuíno onde eu, pelas histórias que ela conta, só vejo um burgesso mal amanhado. A necessidade de amor distorce as nossas lentes. Passamos a vida a olhar para sombras, para fantasmas, para projectos de pessoas que nunca se realizaram. A minha avó elogia sempre o pai dela, gaba-lhe essa grande qualidade de ter sido pai e mãe (por ela ter perdido a mãe bastante cedo), quando afinal essa era a sua grande obrigação. Nas palavras dela «podia-me ter abandonado». Nunca vi uma expressão de afecto tão desajeitada. Temos de ser agradecidos a carrascos porque são pais. Acho terrível…
Levei a adolescência envergonhada com os meus pais, como quase todos os adolescentes. Não gostava de como se vestiam, de como comiam, dos hábitos deles, não concordava com nada do que diziam ou faziam, criticava-os de alto a baixo. Achava-me recebida com desdém, o mesmo desdém que tinha por eles. Cheguei a adulta com a percepção de que, mesmo imperfeitos, eram bons no que faziam, porque transmitiram força, lealdade de carácter e de princípios, honestidade e algum auto-conhecimento que muito me satisfaz. Ao confrontá-los, fui rebelde e livre na minha opção de não ser como eles (e não sou). Mas apercebo-me hoje de que afinal essas diferenças, que tanto me entalavam em casa, nos princípios «deles», não eram assim tão más, tão insatisfatórias e ao menos eu podia tê-las, dizê-las, sabia-as de cor. Muitos filhos não passam de uma cópia mal amanhada dos pais, um projecto dos pais, e invocam-nos aos cinquenta anos como se tivessem quinze. Pais que não permitem aos filhos a grande desgraça que é serem eles próprios e esbarrarem em obstáculos nunca podem ser bons pais. Nesse tipo de educação ou um filho é rebelde e se faz à estrada ou não há hipótese. Está arrumado no que diz respeito a percepções diferentes da realidade. Fazer uma vénia aos pais é capaz de nem sempre ser bom.
Eu e o Paulinho podemos fazer vénias aos nossos. Foram suficientemente porreiros para nos ensinarem o amor ao próximo, mas também o respeito por nós próprios e pelos nossos limites pessoais. Foram espertos para entenderem que nem sempre nos podem proteger e que, a partir de certa altura, estamos mesmo por nossa conta (o Paulinho mais do que eu, que fui muito mais protegida).
O Paulo diz que eu e ele somos dois seres decepados: ele sem pai, eu sem mãe. Há uma actriz brasileira, a Fernanda Montenegro, que diz que sem o pai estamos sem o tecto da casa, mas sem a mãe estamos sem o alicerce principal. Talvez em dias de chuva o Paulinho saiba que lhe chove em cima, não tem o tecto dele – o pai, talvez em dias de terramotos eu sucumba, porque não tenho a minha mãe e sem os alicerces uma casa entra em colapso. Ao menos sabemos que valeu muito a pena estar com os nossos pais, aprender com eles sem termos de ser como eles. Sentimos que era muito melhor eles estarem cá, connosco, mas que quem ficou continua o seu trabalho deixando a porta aberta sem forçar a entrar, aceitando o destino.
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