As ideias que me vêm à cabeça
Hoje veio-me à cabeça uma das maiores diferenças entre vida e escrita. Evidente que vão achar a questão inútil. Vida é uma coisa, escrita é outra. Mas qualquer escritor que goste de escrever chega rapidamente a uma conclusão: não é assim tão diferente, melhor, confundem-se muitas e muitas vezes e nem sempre andam em paralelo. Há casos em que andam em paralelo, mas não me estou a lembrar de nenhum…
O meu caso é duro, por assim dizer. A poesia não é o conjunto de lugares in-existentes onde eu gostaria um dia de ir. A poesia é onde eu estive ou onde eu estou. Uma espécie de respiração que exige treino, prática, ioga até. Por outro lado, na poesia deixo-me ir, perco muito a postura. Ou gostava de perdê-la.
Descobri, enquanto lia vários blogues de outras pessoas, o que difere a minha escrita da minha vida. A ética e a moral. Na vida eu tenho-as. Na escrita estou só a fingir. Gostaria muito mais de descrever o olhar de um assassino, o de uma prostituta de rua, o de uma adúltera, o de um pedófilo, ou simplesmente o olhar de uma pessoa completa e feliz. Mas não consigo porque não sou nenhuma destas coisas e não escrevo tão bem que me permita fingir uma coisa que não sou.
Desde cedo habituei-me a ouvir. Ouvindo pode reflectir-se nas questões e depois acabar um dia por percebê-las. Nesse lapso de tempo, que pode ser a vida toda, pode-se escrever tudo de todas as maneiras. Não há uma conclusão final. A conclusão final é sempre o lugar comum: «corre sempre tudo bem», «há castigo para os maus», «eu até tinha razão», «não merecia isto». Eu também acho estas coisas todas. Mas é quando não escrevo e me disfarço em futura doutoranda à procura de papéis na secretaria tão importantes que me tiram o sono e a visão de futuro e me fazem pensar «mas que mal fiz eu a estas funcionárias públicas?» que eu não sou eu. Quando não me disfarço disto, quando não sou filha, neta, irmã, esposa e nora de alguém, aí, nesse lugar fora deste lugar, eu sou mesmo eu. E não tenho disfarce algum acerca de mim mesma. Portanto, já me perdi de mim, mas voltei-me a achar uma centena de vezes. Perco-me de mim quando tenho dores de dentes, comichão nos olhos, calor ou frio descomunais, quando vou à secretaria e à biblioteca. «Aquilo» não sou eu. Eu sou mais. Muito mais. Uma porrada de coisas a mais. Eu sou eu papéis, dores e cansaços à parte.
Não gosto de manter éticas na escrita. Nem moralizar. Mas como a escrita me acompanha enquanto ser humano, ela vai reflectindo essas nuances pouco a pouco. Portanto, um ser execrável na vida real pode dar um bom romance. Tudo são comportamentos, codificados em ADN ou pertencentes à vulgar esperteza humana. Tenho-me sentido tão sozinha sempre que julgo pessoas e as divido em «filhas-da-puta» e «não filhas-da-puta». É que já ninguém faz isso…
Já em criança havia alguém de quem eu não gostava, ou um rapaz parvo ou uma miúda com brincadeiras torpes. Mas todos dariam óptimas personagens de contos, histórias, romances amorais, imorais, e outras merdas que eu nunca consigo ser. Quem me disse que eu nunca fui amoral ou imoral? Eu própria. Um dia fui à psicoterapia e mandaram-me pensar na minha vida em perspectiva sem julgar os acontecimentos como «bons» ou «maus». Não consegui. Moralizei até ao mais ínfimo pormenor. Sou uma pessoa moral. Não sou fechada, nem pateta. Moral pressupõe «boa intenção para com o próximo». Para mim, claro. Quem não tem está excluído do jogo que é a minha vida. Ou há armas limpas ou não vale jogar. Respeito a minha forma de pensar – que remédio! – mas não gosto. Um pouco mais de trapaceria, imoralidade, optimismo parvo e megalómano far-me-ia bem. Dava logo para ignorar metade das pessoas que conheço num ano de vida.
Sou muito pessimista. Acho sempre que o espermatozóide que chega ao óvulo é aquele que tem mais defeitos, apesar de ser o mais forte, o mais rijo, aquele que chega lá. Acho que poucas pessoas se deitam mesmo na cama que fazem. Acho que é mentira que cá se fazem cá se pagam – nunca vi ninguém pagar, a menos que seja parvo. Acho que temos de lutar imenso para sermos aceites pelas pessoas que, à partida, melhor nos deveriam aceitar e proteger. Acho a vida uma perfeita injustiça sem explicação, que nenhum livro pode realmente explicar…
Há muito por fazer para a vida voltar a ser divertida. Mas há dois caminhos que sei que vão lá dar sempre: a leitura e os amigos. Ler é das melhoras coisas que existe. Consigo ler no metro, no comboio, nos bancos do metro, perspectivar as coisas, distrair-me, rir-me, deleitar-me, ir a correr contar a alguém o que li. Ouvir e observar também é bom, já aqui o disse. Mas os amigos ainda são o melhor que a vida traz. Existe qualquer coisa neles que os faz estarem presentes, «ali», onde deviam estar. Muitas vezes, por questões de educação e até de proximidade, os pais, os irmãos, os avós, não conseguem isso. Por vezes nem temos boas relações com essas pessoas a quem estamos, irremediavelmente, ligados para toda a vida. No fundo, se pudéssemos escolher, escolheríamos mesmo «aquelas» pessoas para nosso pai, mãe, irmão? Por vezes, parecem pessoas estranhas, que nada nos dizem. Por vezes, são pessoas que me enraivecem por isso mesmo. Ficam inertes quando se devem mexer, mexem-se e falam quando não devem. Porque é que as avós estão sempre tão preocupadas se os netos estão ou não mais gordos, mas nunca lhes perguntam se são felizes na vida que levam?
A família é uma questão que me angustia sempre muito, tipo maldição, tipo filme de terror, pela capacidade que tem sobre nós, que é eterna. Na família nascem traumas, tabus, preconceitos, estereótipos, protótipos, problemas de auto-estima, etc. Mas temos de ter família. E se não tivermos, vamos à procura de uma. Está codificado. Organizamo-nos assim, regra geral, e muito poucos falham a este requisito social.
É muito mais fácil ter amigos do que família. Os amigos, se falharem como nossos amigos, podemos sempre arranjar outros. A obrigação que temos para com eles é muito menor (a dívida é sempre mais pequena: não nos amamentaram nem pagaram casa toda a juventude). Podemos estar disponíveis ou não, mas em princípio não seremos tratados como depósitos de frustrações e de furos existenciais. Mas com a família…será que podemos negar as expectativas elevadas que recaem sobre nós? Com a família, o conceito de liberdade é outra fruta.
Eu acho que o segredo da felicidade é este: descobrir em que lugar somos felizes. Se esse lugar for dentro e não fora de nós é porque já somos felizes. Como diria José Saramago «Eu sou feliz, o mundo é que não».
Hoje veio-me à cabeça uma das maiores diferenças entre vida e escrita. Evidente que vão achar a questão inútil. Vida é uma coisa, escrita é outra. Mas qualquer escritor que goste de escrever chega rapidamente a uma conclusão: não é assim tão diferente, melhor, confundem-se muitas e muitas vezes e nem sempre andam em paralelo. Há casos em que andam em paralelo, mas não me estou a lembrar de nenhum…
O meu caso é duro, por assim dizer. A poesia não é o conjunto de lugares in-existentes onde eu gostaria um dia de ir. A poesia é onde eu estive ou onde eu estou. Uma espécie de respiração que exige treino, prática, ioga até. Por outro lado, na poesia deixo-me ir, perco muito a postura. Ou gostava de perdê-la.
Descobri, enquanto lia vários blogues de outras pessoas, o que difere a minha escrita da minha vida. A ética e a moral. Na vida eu tenho-as. Na escrita estou só a fingir. Gostaria muito mais de descrever o olhar de um assassino, o de uma prostituta de rua, o de uma adúltera, o de um pedófilo, ou simplesmente o olhar de uma pessoa completa e feliz. Mas não consigo porque não sou nenhuma destas coisas e não escrevo tão bem que me permita fingir uma coisa que não sou.
Desde cedo habituei-me a ouvir. Ouvindo pode reflectir-se nas questões e depois acabar um dia por percebê-las. Nesse lapso de tempo, que pode ser a vida toda, pode-se escrever tudo de todas as maneiras. Não há uma conclusão final. A conclusão final é sempre o lugar comum: «corre sempre tudo bem», «há castigo para os maus», «eu até tinha razão», «não merecia isto». Eu também acho estas coisas todas. Mas é quando não escrevo e me disfarço em futura doutoranda à procura de papéis na secretaria tão importantes que me tiram o sono e a visão de futuro e me fazem pensar «mas que mal fiz eu a estas funcionárias públicas?» que eu não sou eu. Quando não me disfarço disto, quando não sou filha, neta, irmã, esposa e nora de alguém, aí, nesse lugar fora deste lugar, eu sou mesmo eu. E não tenho disfarce algum acerca de mim mesma. Portanto, já me perdi de mim, mas voltei-me a achar uma centena de vezes. Perco-me de mim quando tenho dores de dentes, comichão nos olhos, calor ou frio descomunais, quando vou à secretaria e à biblioteca. «Aquilo» não sou eu. Eu sou mais. Muito mais. Uma porrada de coisas a mais. Eu sou eu papéis, dores e cansaços à parte.
Não gosto de manter éticas na escrita. Nem moralizar. Mas como a escrita me acompanha enquanto ser humano, ela vai reflectindo essas nuances pouco a pouco. Portanto, um ser execrável na vida real pode dar um bom romance. Tudo são comportamentos, codificados em ADN ou pertencentes à vulgar esperteza humana. Tenho-me sentido tão sozinha sempre que julgo pessoas e as divido em «filhas-da-puta» e «não filhas-da-puta». É que já ninguém faz isso…
Já em criança havia alguém de quem eu não gostava, ou um rapaz parvo ou uma miúda com brincadeiras torpes. Mas todos dariam óptimas personagens de contos, histórias, romances amorais, imorais, e outras merdas que eu nunca consigo ser. Quem me disse que eu nunca fui amoral ou imoral? Eu própria. Um dia fui à psicoterapia e mandaram-me pensar na minha vida em perspectiva sem julgar os acontecimentos como «bons» ou «maus». Não consegui. Moralizei até ao mais ínfimo pormenor. Sou uma pessoa moral. Não sou fechada, nem pateta. Moral pressupõe «boa intenção para com o próximo». Para mim, claro. Quem não tem está excluído do jogo que é a minha vida. Ou há armas limpas ou não vale jogar. Respeito a minha forma de pensar – que remédio! – mas não gosto. Um pouco mais de trapaceria, imoralidade, optimismo parvo e megalómano far-me-ia bem. Dava logo para ignorar metade das pessoas que conheço num ano de vida.
Sou muito pessimista. Acho sempre que o espermatozóide que chega ao óvulo é aquele que tem mais defeitos, apesar de ser o mais forte, o mais rijo, aquele que chega lá. Acho que poucas pessoas se deitam mesmo na cama que fazem. Acho que é mentira que cá se fazem cá se pagam – nunca vi ninguém pagar, a menos que seja parvo. Acho que temos de lutar imenso para sermos aceites pelas pessoas que, à partida, melhor nos deveriam aceitar e proteger. Acho a vida uma perfeita injustiça sem explicação, que nenhum livro pode realmente explicar…
Há muito por fazer para a vida voltar a ser divertida. Mas há dois caminhos que sei que vão lá dar sempre: a leitura e os amigos. Ler é das melhoras coisas que existe. Consigo ler no metro, no comboio, nos bancos do metro, perspectivar as coisas, distrair-me, rir-me, deleitar-me, ir a correr contar a alguém o que li. Ouvir e observar também é bom, já aqui o disse. Mas os amigos ainda são o melhor que a vida traz. Existe qualquer coisa neles que os faz estarem presentes, «ali», onde deviam estar. Muitas vezes, por questões de educação e até de proximidade, os pais, os irmãos, os avós, não conseguem isso. Por vezes nem temos boas relações com essas pessoas a quem estamos, irremediavelmente, ligados para toda a vida. No fundo, se pudéssemos escolher, escolheríamos mesmo «aquelas» pessoas para nosso pai, mãe, irmão? Por vezes, parecem pessoas estranhas, que nada nos dizem. Por vezes, são pessoas que me enraivecem por isso mesmo. Ficam inertes quando se devem mexer, mexem-se e falam quando não devem. Porque é que as avós estão sempre tão preocupadas se os netos estão ou não mais gordos, mas nunca lhes perguntam se são felizes na vida que levam?
A família é uma questão que me angustia sempre muito, tipo maldição, tipo filme de terror, pela capacidade que tem sobre nós, que é eterna. Na família nascem traumas, tabus, preconceitos, estereótipos, protótipos, problemas de auto-estima, etc. Mas temos de ter família. E se não tivermos, vamos à procura de uma. Está codificado. Organizamo-nos assim, regra geral, e muito poucos falham a este requisito social.
É muito mais fácil ter amigos do que família. Os amigos, se falharem como nossos amigos, podemos sempre arranjar outros. A obrigação que temos para com eles é muito menor (a dívida é sempre mais pequena: não nos amamentaram nem pagaram casa toda a juventude). Podemos estar disponíveis ou não, mas em princípio não seremos tratados como depósitos de frustrações e de furos existenciais. Mas com a família…será que podemos negar as expectativas elevadas que recaem sobre nós? Com a família, o conceito de liberdade é outra fruta.
Eu acho que o segredo da felicidade é este: descobrir em que lugar somos felizes. Se esse lugar for dentro e não fora de nós é porque já somos felizes. Como diria José Saramago «Eu sou feliz, o mundo é que não».
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