Tuesday, June 12, 2007


A data

Detesto muitas datas instituídas e quase toda a gente que me conhece sabe isso de cor. O Natal e a Páscoa, a passagem do ano e por aí fora. Das poucas datas que aprecio são as dos meus anos e as dos meus amigos. Todavia, das piores datas que recordo são sem dúvida as das mortes das pessoas próximas: a minha mãe e o meu avô. Tristemente sei que não há nada a fazer, não há a hipótese de ignorá-las. Com os anos dilui-se a vontade de «encomendar» missas ou ir pôr flores às campas. Mas com os anos aprende-se a moderar o sofrimento, a fazer o luto da existência que tivemos, a saber gerir quem somos, aceitando-nos, sem arrependimentos pelo meio. Isso significa uma visão libertadora da vida. A culpa, o arrependimento, a frustração de não recuperar momentos perdidos de nada servem se não para aprendermos a continuar.
Dia 11 de Junho de 2001, às 16h20 ou muito próximo disso, estava eu na Clínica de Santo António a observar a minha mãe em agonia. Encontrei-me comigo mesma, completamente sozinha, frente a frente com a morte, e curiosamente, não fugi. Colada ao chão, nem pensava «porquê?», ouvia uma voz dentro de mim que soprava isto «Aprende, amanhã podes ser tu». É estranho, mas a grande maioria das pessoas não dá importância a esta voz. Ouve tudo menos aquilo que deve. E limita-se a continuar, que é afinal o que toda a gente faz. Tornamo-nos autómatos. Foi a época em que mais precisei de ajuda e não consegui ajudar. E tenho pena, alguns mereceriam mais a minha ajuda, mas eu não estava bem ali, andava a pairar, e muitas das coisas desses primeiros tempos eu já esqueci. Outras não e são muito curiosas: por exemplo, estranhar que se gastasse tanto dinheiro com a comida, que a casa andasse sempre suja mesmo quando eu a limpava, ou mesmo chegar à cozinha para contar alguma coisa à minha mãe, como fazia todos os dias, e ela não estar lá. Também pensava como se sentiria o meu pai, igualmente abandonado em mil afazeres. E pensava «e agora? Se o meu pai morre?». É estúpido porque eu não era nenhuma menina quando isto aconteceu. Tinha 24 anos. Mesmo assim saiu-me o tapete debaixo dos pés. Que burrice não saber sobreviver aos 24 anos!...
Cheguei aos 30 anos com uma expectativa muito menos elevada das pessoas e muito mais realista (acho) do mundo. Ainda confio nas pessoas e tenho fé na vida, ainda sou positiva e optimista em muitas aspectos (pelo menos quando me comparo com alguns pessimistas de estirpe), mas sei sempre que a principal mensagem me acompanha todos os dias: acima de tudo defender-me, defender aquilo em que acredito, ter consciência. A consciência é a base da iluminação. Leiam «O Livro Tibetano da Vida e da Morte», de Sogyal Rinpoche, é dos melhores livros que já vi, porque explica a morte e a vida e mesmo para mim, que não acredito na reencarnação, muitas das coisas que ali estão parecem fazer sentido. A acreditar nos meus estados de semi-consciência (os célebres bardos) eu beneficiaria em fazer meditação, conseguiria uma iluminação superior. Por enquanto, só observo e escrevo, só penso e sinto, como todos os outros seres humanos, e os sítios onde chego já não me parecem nenúfares que flutuam, mas estacas seguras.
A iluminação de espírito não vem com o tempo nem com a experiência de vida: vem com a consciência. Muitas pessoas atingem estados de iluminação bem cedo, o que segundo os budistas quererá dizer que reencarnaram muitas veze e estão muito mais preparadas para encarar a vida do que a grande maioria das pessoas.
No livro de Sogyal Rinpoche, ele descreve a história curiosa de um dos seus mestres, que chora copiosamente cada vez que há uma passagem de ano. Interrogado do porquê de tal facto ele responde: “ Lembro-me que as pessoas envelhecem e cada vez estão menos preparadas para a morte “. Esta frase indicia um facto curioso: quanto mais nos aproximamos da morte mais a tememos, por isso odiamos tanto envelhecer. Depois há o discurso célebre de que a idade traz não só memórias mas muita maturidade, e não é bem assim. Há muita gente que fica simplesmente onde está a vida toda, tornando-se obtusa e à medida que envelhece o esclarecimento parece fugir das mãos. Portanto, se não é a idade, a passagem do tempo que traz iluminação, o que nos traz iluminação senão a vontade de percorrer o caminho de forma justa e honesta?
Sou daquelas pessoas que acha que nunca é tarde para aprender. Muitas vezes, tarde e a más horas, quando nos apetecia descansar da vida, somos confrontados com um problema que nunca demos conta, uma falha nossa, por vezes grave e temerosa. Se não podemos corrigi-la, podemos alcançá-la, percebê-la, transformá-la. Basta querer. Se me disserem que às vezes é tarde, eu vou concordar. Se me disserem que às vezes as falhas são muitas e já não vamos a tempo de consertar todas, eu vou concordar também. Todavia, nada disso é desculpa para não tentarmos.
Porque escrevo, ou porque observo, ou mesmo pela influência que sempre a literatura teve na minha vida, sempre achei que tudo é uma lição, uma metáfora, uma alegoria. A minha mãe é uma alegoria magnífica: a morte dela ensinou-me que temos de saber fracassar, aceitar o sofrimento como parte integrante da vida, mas também me ensinou a nunca desistir. Lembro-me que depois de a minha mãe ser operada, impedida de mexer o braço direito, começou a aprender todas as tarefas com o braços esquerdo. Portanto, muitas pessoas deveriam aprender, como fez a minha mãe, a mexer o braço esquerdo, ou aquele a que damos menos uso, menos valor, o que está mais quieto, mas que está ali, é importante, precisa de ginástica e o qual esquecemos ao longo da vida que é parte integrante do corpo. Assim são muitas coisas na vida: esquecemo-nos delas mas temos a oportunidade de utilizá-las anos mais tarde, quando já estamos ferrugentos.
Tal como as nossas casas, tornamo-nos muitas vezes empilhadores de lixo: o lixo emocional, o nosso e o dos outros. Acumulamos palavras, actos, ansiedades do que vai acontecer, do que nos disseram ontem, o que nos vão dizer amanhã. Eu vivo assim e reconheço que não ajuda, não é certo e que tenho muito a mudar dentro de mim até chegar ao ponto em que entenderei que eu sou eu e ninguém destrona isso. Não é uma visão egocêntrica, porque eu posso ser eu e continuar a perceber que no universo sou um ponto muito pequeno, que faço parte de um puzzle universal muito grande. A humildade é a base de qualquer caminhada. O resto é como sempre ouvi: o caminho faz-se caminhando.

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