Antagonismos
Na Bíblia ensina-se que os outros podem ser cruéis mas que, se esses cruéis forem os pais, os irmãos, os primos, os tios, os sogros e cunhados (que vêm agarrados à família, sem nada podermos fazer, tipo pega-monstros), então a crueldade suporta-se bem, porque a família tem de viver em harmonia. Digam isso à Oprah, que em pequena foi violada pelo padrasto, digam isso a todos os que foram abusados física e psicologicamente por pais ou pessoas próximas dos pais. Não existe maior forma de violência do que a sexual, sobretudo numa altura da vida em que «sexualidade» é só uma palavra distante, que distante deve ficar. Aos dez anos, que sabemos acerca de nós mesmos? Muito pouco. Quanto mais recuarmos nas gerações, mais pessoas ignorantes encontramos. A minha avó teve um filho aos vinte anos, o meu pai, e nem sabia de onde vinham os bebés, pensava que era a cegonha que os trazia.
Todavia, a família parece ser a fonte da maior parte dos nossos problemas existenciais, das nossas maiores frustrações, dos nossos sonhos gorados. Queimamos anos da nossa vida a aturar mães manipuladoras, pais cruéis, irmãos viperinos e, anos mais tarde casamos e recomeça tudo de novo, vêm os anexos (sogros e cunhados) ou, como diz a Patrícia e muito bem, os «danos colaterais». Pois. Deviam ser. Mas nem sempre são. Porque os estilhaços de guerra nos atingem e magoam muito quem está do nosso lado e depois a nós. Só magoam se houver estima e amor. Sem isso não tocam sequer. Os filtros que supostamente deveríamos ter arranjado na nossa família são agora requisitados novamente, quando afinal deveríamos, mais do que nunca, guardar as armas e deixar o campo de batalha vazio.
Tenho de ser franca, odeio a vida familiar em muitos aspectos. Mostra o pior que o mundo tem, mas está ali, no nosso cosmos, que deveria ser preservado incólume. É mais triste ainda quando deparamos com casos de pessoas que deixaram simplesmente de se importar com a diferença entre o bem e o mal, neutralizando os efeitos de ambos. Vivem no cinzento, na amargura, na depressão. A família provoca isso muitas vezes: o descrédito no outro.
Se formos pensar bem, deveria ser ao contrário. Tudo o que é revista cor-de-rosa mostra as famílias sorridentes, com casas maravilhosas, profissões bem pagas e pessoas com cara de quem nunca teve problema nenhum em conviver com um filho-da-puta de um pai tirano, de uma mãe postiça, de um irmão sacana, de uma avó maldosa, sei lá…Eu sei que nem tudo é como se vê. Visto à lupa, são pessoas como nós. Ou então disfarçam. E é nos disfarces que as coisas começam e se prolongam toda a vida. Quando temos de enfrentar os piores disfarces, os mais cruéis, somos adultos e pais de família. Fará sentido?
Evidentemente que acredito na teoria que diz que as pessoas com uma família equilibrada são equilibradas. Tudo me leva a crer que sim. Vejo amigas minhas com famílias estupendas e isso reflecte-se no rosto, na vida e nas decisões delas. Estruturam as suas famílias sob esse exemplo, sob essa tutela. Pais fixes, avós fixes, filhos porreiros. Mas e quando não é assim? Há sempre variantes na equação: há pessoas com bons pais que se revelam uma boa merda, assim como há pessoas com pais palermas que são inteligentes. É a velha regra: não julgues ninguém pelos pais que tem.
A casa onde vivemos, as pessoas que nos acolhem sob a premissa que a minha amiga Rita, filha de pais separados, sempre me dizia «não pedi para nascer», deveriam ser um cosmos do qual nos orgulharíamos toda a vida. Um cosmos harmonioso, onde há lugar para brincar, discutir, teorizar, contrariar, reflectir, e acima de tudo, amar. Evidentemente, todos temos expectativas acerca dos outros, expectativas essas que se acentuam com aqueles que nos estão mais próximos. É normal esperarmos muitos dos filhos. Mas nunca nos podemos esquecer, quando somos pais, que quanto mais esperamos dos filhos, mais eles esperam de nós. Estaremos, por isso, a enredar-nos num emaranhado muito complexo de vivências emocionais. Como esperar um filho «perfeito» se nós não o somos? Em pequenos não tínhamos defeitos? Em adolescentes não contrariámos os pais? Em adultos não discordámos deles? Se não o fizemos, então estamos mal. Porque os pais esperarão de nós o impossível, aquilo que muitas vezes não lhes podemos dar, que é sermos deles, melhor, sermos como eles, ou parte deles.
É curioso como a educação e a forma como sempre fomos tratados tem tanta influência na nossa personalidade, mas também é curioso como duas pessoas, na mesma situação, se desembaraçam de uma forma completamente diferente.
Costumo dizer que o meu cosmos dito «organizado» (que já não era muito) ruiu com a morte da minha mãe. Mas no fundo, quem ruiu se não eu própria, a minha personalidade, a minha expectativa elevada sobre o outro? Como todos os seres humanos, eu queria a minha mãe eterna e invencível. Eu queria a minha mãe como ela se mostrava ao mundo e a mim. Como eu a via. Vi muitas vezes a minha mãe «perdida» no caos tremendo que era a sua vida, e que hoje compreendo melhor do que nunca, por viver situações similares. Possivelmente a minha mãe foi a porta aberta dessas mesmas situações: eu tinha e tenho de passar por elas para crescer. Essa é a maior descoberta do «eu»: eu não sou ela, nem parte dela, nem como ela. Se perdermos a mãe pequenos, temos um choque: perdemos a super-mulher (ou o super-homem, o pai), mas melhor ou pior adaptamo-nos, vamos procurar incessantemente compensações para o nosso desequilíbrio afectivo. Mas se perdermos o pai ou a mãe muito mais tarde – e eu perdi aos 24 anos – então o choque é avassalador, porque descobrimos uma miríade de coisas que dantes não víamos. Melhor, eu fiz esse exercício, ou porque sou assim e é a minha personalidade ou porque tive condicionantes de vida que me obrigaram a isso. Acredito que muitas pessoas, na minha situação, não se pusessem sequer em «posição» de aprender com o erro de nos identificarmos com as pessoas de quem gostamos. Eu sou eu. Não sou «nós», não sou «vós», não sou «ele», não sou «ela». Se fosse, o pronome pessoal na primeira pessoa não existia. A língua faz parte da compreensão humana e muitas vezes explica-a.
Se anularmos a falta de antagonismo com o mundo, anulamo-nos a nós próprios, porque amputamos o principal: aquilo que nos distingue das outras pessoas. Durante anos batalhei para descobrir o que é que eu tinha diferente das outras pessoas, porque eu queria ser eu. Era a escrita? Era a percepção do mundo? Eram os meus pais, os meus amigos? Era a minha vida? Mas é tudo isso e não é tudo isso. Porque se eu tivesse outra família, outros amigos, outras experiências mais neutras, mais fáceis, sem me achar por exemplo uma pessoa tão distinta dos meus pais e avós, ou sem ter de passar por um luto tão doloroso, talvez eu fosse como sou, podia ser que até mantivesse um espírito pessimista como aquele que tenho hoje.
Sou uma céptica em relação às pessoas. Acho que a maior parte das pessoas gere a vida do mesmo modo que um cão: salivando por um bocado de comida. Para umas pessoas é a companhia, para outras é o dinheiro, para outras a possibilidade de subirem na carreira, para outras é ficarem bem vistas, para outras é simplesmente chamar a atenção sobre si mesmas. Há muito pouco de «sincero» nas pessoas. Sinceridade é um bebé na rua nos sorrir sem propósito nenhum, só porque gostou da nossa cara. Com algumas pessoas conseguimos essa espécie de empatia instantânea, a vulgar mas sempre honesta «simpatia».
A família pode ser a prova dos nove, a prova de que a vida é muito difícil. Pode ser maravilhosa ou amputadora da nossa auto-estima. Pode ser harmoniosa ou o primeiro de muitos campos de guerra onde temos de combater. Pode mesmo ser a prova dos nove: será que nós conseguimos ser nós mesmos quando «eles» não querem? Será que nós podemos ser felizes à nossa maneira, mesmo quando eles pré-definiram e nos pré-programaram para sermos «felizes» à maneira deles? Uma coisa eu sei. Estamos bem connosco quando já não é um desafio provarmos aos outros, sobretudo família, quem somos como pessoas e o que valemos. Isso é ouro.
Na Bíblia ensina-se que os outros podem ser cruéis mas que, se esses cruéis forem os pais, os irmãos, os primos, os tios, os sogros e cunhados (que vêm agarrados à família, sem nada podermos fazer, tipo pega-monstros), então a crueldade suporta-se bem, porque a família tem de viver em harmonia. Digam isso à Oprah, que em pequena foi violada pelo padrasto, digam isso a todos os que foram abusados física e psicologicamente por pais ou pessoas próximas dos pais. Não existe maior forma de violência do que a sexual, sobretudo numa altura da vida em que «sexualidade» é só uma palavra distante, que distante deve ficar. Aos dez anos, que sabemos acerca de nós mesmos? Muito pouco. Quanto mais recuarmos nas gerações, mais pessoas ignorantes encontramos. A minha avó teve um filho aos vinte anos, o meu pai, e nem sabia de onde vinham os bebés, pensava que era a cegonha que os trazia.
Todavia, a família parece ser a fonte da maior parte dos nossos problemas existenciais, das nossas maiores frustrações, dos nossos sonhos gorados. Queimamos anos da nossa vida a aturar mães manipuladoras, pais cruéis, irmãos viperinos e, anos mais tarde casamos e recomeça tudo de novo, vêm os anexos (sogros e cunhados) ou, como diz a Patrícia e muito bem, os «danos colaterais». Pois. Deviam ser. Mas nem sempre são. Porque os estilhaços de guerra nos atingem e magoam muito quem está do nosso lado e depois a nós. Só magoam se houver estima e amor. Sem isso não tocam sequer. Os filtros que supostamente deveríamos ter arranjado na nossa família são agora requisitados novamente, quando afinal deveríamos, mais do que nunca, guardar as armas e deixar o campo de batalha vazio.
Tenho de ser franca, odeio a vida familiar em muitos aspectos. Mostra o pior que o mundo tem, mas está ali, no nosso cosmos, que deveria ser preservado incólume. É mais triste ainda quando deparamos com casos de pessoas que deixaram simplesmente de se importar com a diferença entre o bem e o mal, neutralizando os efeitos de ambos. Vivem no cinzento, na amargura, na depressão. A família provoca isso muitas vezes: o descrédito no outro.
Se formos pensar bem, deveria ser ao contrário. Tudo o que é revista cor-de-rosa mostra as famílias sorridentes, com casas maravilhosas, profissões bem pagas e pessoas com cara de quem nunca teve problema nenhum em conviver com um filho-da-puta de um pai tirano, de uma mãe postiça, de um irmão sacana, de uma avó maldosa, sei lá…Eu sei que nem tudo é como se vê. Visto à lupa, são pessoas como nós. Ou então disfarçam. E é nos disfarces que as coisas começam e se prolongam toda a vida. Quando temos de enfrentar os piores disfarces, os mais cruéis, somos adultos e pais de família. Fará sentido?
Evidentemente que acredito na teoria que diz que as pessoas com uma família equilibrada são equilibradas. Tudo me leva a crer que sim. Vejo amigas minhas com famílias estupendas e isso reflecte-se no rosto, na vida e nas decisões delas. Estruturam as suas famílias sob esse exemplo, sob essa tutela. Pais fixes, avós fixes, filhos porreiros. Mas e quando não é assim? Há sempre variantes na equação: há pessoas com bons pais que se revelam uma boa merda, assim como há pessoas com pais palermas que são inteligentes. É a velha regra: não julgues ninguém pelos pais que tem.
A casa onde vivemos, as pessoas que nos acolhem sob a premissa que a minha amiga Rita, filha de pais separados, sempre me dizia «não pedi para nascer», deveriam ser um cosmos do qual nos orgulharíamos toda a vida. Um cosmos harmonioso, onde há lugar para brincar, discutir, teorizar, contrariar, reflectir, e acima de tudo, amar. Evidentemente, todos temos expectativas acerca dos outros, expectativas essas que se acentuam com aqueles que nos estão mais próximos. É normal esperarmos muitos dos filhos. Mas nunca nos podemos esquecer, quando somos pais, que quanto mais esperamos dos filhos, mais eles esperam de nós. Estaremos, por isso, a enredar-nos num emaranhado muito complexo de vivências emocionais. Como esperar um filho «perfeito» se nós não o somos? Em pequenos não tínhamos defeitos? Em adolescentes não contrariámos os pais? Em adultos não discordámos deles? Se não o fizemos, então estamos mal. Porque os pais esperarão de nós o impossível, aquilo que muitas vezes não lhes podemos dar, que é sermos deles, melhor, sermos como eles, ou parte deles.
É curioso como a educação e a forma como sempre fomos tratados tem tanta influência na nossa personalidade, mas também é curioso como duas pessoas, na mesma situação, se desembaraçam de uma forma completamente diferente.
Costumo dizer que o meu cosmos dito «organizado» (que já não era muito) ruiu com a morte da minha mãe. Mas no fundo, quem ruiu se não eu própria, a minha personalidade, a minha expectativa elevada sobre o outro? Como todos os seres humanos, eu queria a minha mãe eterna e invencível. Eu queria a minha mãe como ela se mostrava ao mundo e a mim. Como eu a via. Vi muitas vezes a minha mãe «perdida» no caos tremendo que era a sua vida, e que hoje compreendo melhor do que nunca, por viver situações similares. Possivelmente a minha mãe foi a porta aberta dessas mesmas situações: eu tinha e tenho de passar por elas para crescer. Essa é a maior descoberta do «eu»: eu não sou ela, nem parte dela, nem como ela. Se perdermos a mãe pequenos, temos um choque: perdemos a super-mulher (ou o super-homem, o pai), mas melhor ou pior adaptamo-nos, vamos procurar incessantemente compensações para o nosso desequilíbrio afectivo. Mas se perdermos o pai ou a mãe muito mais tarde – e eu perdi aos 24 anos – então o choque é avassalador, porque descobrimos uma miríade de coisas que dantes não víamos. Melhor, eu fiz esse exercício, ou porque sou assim e é a minha personalidade ou porque tive condicionantes de vida que me obrigaram a isso. Acredito que muitas pessoas, na minha situação, não se pusessem sequer em «posição» de aprender com o erro de nos identificarmos com as pessoas de quem gostamos. Eu sou eu. Não sou «nós», não sou «vós», não sou «ele», não sou «ela». Se fosse, o pronome pessoal na primeira pessoa não existia. A língua faz parte da compreensão humana e muitas vezes explica-a.
Se anularmos a falta de antagonismo com o mundo, anulamo-nos a nós próprios, porque amputamos o principal: aquilo que nos distingue das outras pessoas. Durante anos batalhei para descobrir o que é que eu tinha diferente das outras pessoas, porque eu queria ser eu. Era a escrita? Era a percepção do mundo? Eram os meus pais, os meus amigos? Era a minha vida? Mas é tudo isso e não é tudo isso. Porque se eu tivesse outra família, outros amigos, outras experiências mais neutras, mais fáceis, sem me achar por exemplo uma pessoa tão distinta dos meus pais e avós, ou sem ter de passar por um luto tão doloroso, talvez eu fosse como sou, podia ser que até mantivesse um espírito pessimista como aquele que tenho hoje.
Sou uma céptica em relação às pessoas. Acho que a maior parte das pessoas gere a vida do mesmo modo que um cão: salivando por um bocado de comida. Para umas pessoas é a companhia, para outras é o dinheiro, para outras a possibilidade de subirem na carreira, para outras é ficarem bem vistas, para outras é simplesmente chamar a atenção sobre si mesmas. Há muito pouco de «sincero» nas pessoas. Sinceridade é um bebé na rua nos sorrir sem propósito nenhum, só porque gostou da nossa cara. Com algumas pessoas conseguimos essa espécie de empatia instantânea, a vulgar mas sempre honesta «simpatia».
A família pode ser a prova dos nove, a prova de que a vida é muito difícil. Pode ser maravilhosa ou amputadora da nossa auto-estima. Pode ser harmoniosa ou o primeiro de muitos campos de guerra onde temos de combater. Pode mesmo ser a prova dos nove: será que nós conseguimos ser nós mesmos quando «eles» não querem? Será que nós podemos ser felizes à nossa maneira, mesmo quando eles pré-definiram e nos pré-programaram para sermos «felizes» à maneira deles? Uma coisa eu sei. Estamos bem connosco quando já não é um desafio provarmos aos outros, sobretudo família, quem somos como pessoas e o que valemos. Isso é ouro.
1 Comments:
É verdade, o nosso pior inimigo pode estar mesmo no seio da nossa família, quando pela lógica nunca deveria ser assim. Afinal, é o mesmo sangue, é uma convivência de anos e que deveria conduzir ao máximo da compreensão humana. Contudo, haverá uma regra qualquer que faz com que vamos parar a esta ou àquela família, sabe-se lá porquê! Fica-nos a valer, como sempre, a nossa personalidade e riqueza interior. Seja qual for o ambiente exterior, temos de tentar manter-nos fiéis àquilo que somos, embora haja momentos em que isso quase nos dê cabo do juízo! O importante será, de qualquer das formas, tomar tudo como uma aprendizagem, com o cuidado de não nos transformarmos em monstros na sequência da influência (nefasta) dos outros!
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