Wednesday, May 02, 2007

A banha da cobra

Muitas vezes não passa disso. Digam o que disserem, as técnicas de persuasão para vender um produto ao cliente não passam de banha da cobra. E as que são sérias, nós declinamos, porque temos o receio de sempre: ser enganado. Isso torna-nos desconfiados com tudo o que é dado – haverá retorno, o que me vão pedir em troca? Deve ser por isso que amizade e amor são genuínos (supostamente): a retribuição tem de estar dentro de um cosmos harmonioso. Vejo casais tenebrosamente incompatíveis. Onde raio se desencantou a ideia de que um dos elementos pode tudo e o outro não pode nada? É uma coisa estranha. Há pessoas que são banha da cobra, compra-se gato por lebre (com todo o respeito pelos gatos). Quando isso acontece, como diz uma amiga minha, quanto mais tempo passa menos se vê, porque no fundo adaptamo-nos a tudo o que é mau, e até achamos que, comparados com outros casais, com a vida de outras pessoas, estamos muito bem. À medida que o tempo passa, nem sempre são os laços afectivos e os projectos comuns que sustentam a relação, mas sim a dependência. Como sair dali? Muitas pessoas não vêem saída, outras não querem ver. Mas os maiores cegos são aqueles que nem se apercebem que estão mal, mesmo mal e vivem dentro de um remoinho de coisas totalmente erradas.

Já desde há uns dias para cá que me consigo distanciar o suficiente para perceber uma coisa: a história da banha da cobra estava certa. Uma vez ou outra todos somos enganados, todos nos enganamos na porta a que batemos, quer seja no trabalho, quer seja no amor, quer seja na vida do dia-a-dia. E apesar de pensarmos que quietos até estamos bem, estar quieto é uma atitude como outra qualquer, o silêncio revela muito mais do que poderíamos pensar.

No outro dia fui abordada no Saldanha por uma rapariga, ainda muito jovem, com alguma simpatia, que me pediu os dados para um sorteio de louças de porcelana, vendidos numa loja nova que estava a divulgar os seus produtos. Por «acaso» até fui das premiadas, imaginem porquê, porque era casada. Pediram-me que fosse com o meu «esposo» receber o prémio, ao que eu respondi que com os horários do meu esposo era impossível irmos os dois levantar as bem ditas porcelanas (ou o prémio que fosse, provavelmente uma caneta sem tinta…). Pensei o quão parva (ingénua) fora em aceitar tacitamente dar os meus dados pessoais a uma estranha e estar a ser telefonicamente contactada em horas de trabalho, insistentemente, para ir lá buscar a prenda. Até que, três telefonemas depois e muitas outras vezes sem atender nem responder ao contacto deles, acabei por dizer que eu e o meu marido (que nunca soube disto) não queríamos lá ir buscar nada. A senhora, suficientemente educada e sensível, disse logo «mas qual é o seu receio? Que eu venda alguma coisa?» e eu respondi, de forma sincera «Sim, claro», ao que ela retorquiu «Pois, hoje em dia ninguém dá nada a ninguém, mas o objectivo era vir à loja conhecer os nossos produtos e, caso gostasse, divulgá-los a outras pessoas». Até podia ser verdade, parece verosímil dito assim, na voz calma da senhora, mas eu disse novamente «A decisão foi não ir aí», e ela aceitou (que remédio!) e desligou. Pois é. Costuma-se dizer que pelo justo paga o pecador, ou seja, mesmo que fosse verdade, eu já estaria altamente desconfiada.

Digamos que quando nos vendem banha da cobra muitas vezes, inequivocamente ficamos desconfiados, de sobrolho carregado. Com as pessoas também acontece isso. Se muitas vezes aparecem para nos dar cabo do juízo, é natural que na próxima vez desconfiemos delas. As relações humanas muitas vezes também se baseiam na falsidade, na venda de um produto inquinado. As pessoas levam o cartão de visita, muitas vezes um cartão irresponsavelmente redigido, porque é falso e desconectado da realidade. Além do cartão, muitas apresentam-se da mesma forma que um vendedor da banha da cobra. Para mim vai sendo fácil descortinar quem são estas pessoas, mas muitos se deixam convencer com facilidade. Desde quando uma pessoa chegar ao pé de nós e dizer «Sou boa pessoa, muito humana e sensível» pode ser vulgar, comum, natural? Era suposto que actos e palavras demonstrassem isso, todavia as pessoas dão de si a melhor cara, vendem o que lhes interessa, e nem sempre sabem que se calhar eram incapazes de ajudar um amigo com a sua palavra, a sua presença. No fundo, sermos capaz e darmos o primeiro passo para ajudar alguém é um dom e não precisamos assim de tanta disponibilidade e dinheiro como pensamos. Há sempre tempo para uma palavra, pelo menos, de ânimo, de doçura, de coerência com essa faceta de «ser boa pessoa».

Porque é que toda a gente teima em ser «boa pessoa», mesmo quando não é? Porque é um bom cartão de visita. Dizemos e fazemos o que achamos que os outros vão gostar de ouvir ou ver, mas que na realidade não somos. Mas será que, segundo a lei da causalidade do universo, não haverá alguém que tope essa incoerência? Eu acho sempre que sim. Que alguém mais esperto, inteligente, sensível ou simplesmente «experiente» vai perceber a incoerência. Então andamos a lutar para salvar baleias mas não temos tempo para ajudar ninguém porque somos «pessoas ocupadas a salvar baleias». É um bocado nisto que as pessoas se baseiam. Ser boa pessoa é hoje como vender banha da cobra, gato por lebre. «Toma lá este embrulhinho bonito», por dentro vem um bomba estraga-tudo, uma pessoa miserável e manipuladora a quem basta ser boa vendedora para vencer na vida. Evidente que não falo do disfarce da segurança: nem sempre se pode mostrar fraqueza e verdade em todas as situações (embora, tal como os animais, a insegurança e o medo se pressintam). Muitas vezes ficamos entalados em situações em que não podemos verdadeiramente ser nós próprios. A minha pergunta é: como é que se vive fora de nós próprios sempre, ou melhor, mentindo a nós próprios e aos outros quem somos? Deve ser um jogo de exigência elevada, de muita mestria, e as pessoas ficam normalmente a ganhar com isso, pelo menos na aparência. A grande questão é: onde arranjam essas pessoas tempo e espaço para a verdade? Nenhures. Onde arranjam espaço para amigos verdadeiros? Não arranjam. Onde conseguem sinceridade? Sacando elogios de engraxadores iguais a elas. Onde procuram a felicidade? No fundo do bolso dos outros, no fundo da sua fraqueza e boa vontade. Qual o mérito deste jogo? Do ponto de vista moral, nenhum. Socialmente, é um jogo correcto e bem aceite.

Quando tiverem experiência de vida e sensatez identifiquem uma destas pessoas e…ponham-se a milhas. Ou então façam como o Chuck Norris: sejam a consequência dessas pessoas, a pedra no sapato, a espinha atravessada na garganta, o mau da fita. Essas pessoas não gostam e escoceiam, sentem-se acossadas no seu próprio jogo. Todavia o melhor jogo que existe é o de não jogar o mesmo jogo. É como com um idiota: nunca se consegue descer ao nível dele, nem vale a pena tentar, mais vale passar ao lado.

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