A ficção
A ficção seduz-me fortemente. Gosto de criação, mais do que de ficção. Gosto de me sentir embrenhada nos filmes, nos livros, nas peças de teatro, em quadros, esculturas, exposições, em músicas e no que elas significam. Mas há uma grande diferença entre ouvir e tocar, entre ler e escrever um livro, ou entre apreciar e esculpir. Há uma grande diferença entre gostarmos de uma coisa e sabermos sobre ela. A mesma diferença que existe entre arte em geral ou pintura no particular, no específico. Também há uma grande diferença entre vivermos e sabermos viver.
Gosto de crápulas do cinema, personagens execráveis. Adorei, por exemplo, o Hannibal Lecter e acho que nenhum actor faria aquela personagem com tanta arte como Sir Anthony Hopkins. Todavia, não me apetecia nada cruzar a minha vida e os meus caminhos com os daquele homem. Por isso, costumo dizer que mentiras, sacanices, torpezas e sadismos, só na ficção. Na vida real tenho pouca ou nenhuma curiosidade. Ou então quero espreitar e vir embora, do mesmo modo que se espreita sexo ao vivo num bar. Voyeurismo puro.
Tenho um grande descontentamento com a maldade. Parece-me sempre baixo ver um ser humano a pontapear outro, seja verbal seja fisicamente, ou até mesmo em pensamentos. Evidentemente, não sou uma inocente, há muitas pessoas cuja cabeça me apetecia esmagar como quem esmaga alhos no almofariz. A questão é: de que me serviria isso? Nem eu ficava melhor, nem a pessoa aprenderia lição nenhuma. Muitas vezes capitulamos da forma mais honesta que existe, que é a de desistir de colocar em ordem o que nunca esteve bem.
Temos de contar com diversos factores: a maldade é tão humana como a bondade e existiu sempre, desde os primórdios, na luta pela sobrevivência; ao longo dos séculos, e intemporalmente, há pessoas sem consciência, cuja função literal é arruinar o que são (mostrando apenas o que pensam que são ou o que gostariam de ser), e com isso arrastarem a multidão que puderem. Quando olho para Hitler vejo isto mesmo: é uma figura perversa, enraivecida, torpe. Projecta o que gostaria de ser: imortal. Mostra o que é: parvo. Arrasta uma multidão na mesma, que não o questiona. São massas amorfas de gente sem consistência interior. Só assim somos arrastados pelos outros: através da ficção, da mentira, da projecção, mas nunca da verdade. A verdade não arrasta nem convence do mesmo modo que a mentira. Não se socorre de nenhuma retórica específica. Mas a ficção tem uma retórica estudada ao pormenor. Como fazer política sem retórica? Não andamos por aí como Sócrates, a convencer os outros do que é o Bem e do que é a Verdade. Mas é pena…
Podíamos ser melhores pessoas se não nos deixássemos enganar tanto e de tantas maneiras estúpidas. A maior parte desses recursos submerge completamente o que somos. E só assim somos, para nós e para os outros. Ser arrogante, por exemplo, é uma estratégia de defesa que resulta bem: afasta as pessoas de nós, constrói um muro à nossa volta intransponível. Os outros ficam de fora. É como dizer «daqui não passas». Mas a arrogância tem no seu oposto uma função muito semelhante: não servirá a simpatia para nos protegermos também? Evidente que nem todos somos só uma coisa ou outra, mas há pessoas cuja preponderância de uma ou de outra característica nos deixam boquiabertos. E enganam, se não estivermos atentos, o mais comum dos mortais.
Há diversas coisas absolutamente ficcionais, mas nem todos dão por elas. Os narcisistas, por exemplo. Experimentem ir ao blogue do Cláudio Ramos e têm a surpresa da vossa vida: há dezenas de pessoas a apoiá-lo, a achá-lo fantástico e a chamá-lo de frontal, honesto, verdadeiro. Para o Cláudio Ramos, o mundo deveria girar em torno do seu umbigo, da sua cara, das suas palavras. Sou franca que ele até nem escreve mal, mas quando, e só quando, não fala dele próprio. Ao Cláudio Ramos eu daria o castigo de fazer trabalho voluntário com crianças cegas e surdas: sem ninguém para o ver ou ouvir, quem iria ele convencer que é o melhor do mundo? Que estratégias utilizaria? Teria certamente de sair da sua existência tosca, das revistas porcas que lê, dos comentários falsificados que faz e perceber, de uma vez por todas, que até os pais, irmãos, mulher (ou ex-mulher) e filha têm mais que fazer do que estar a ouvi-lo. Quem teve ideia de lhe dar voz na televisão, tempo de antena? De lhe dar atenção, trabalho? Não sei. Sei que lhe pagam para ele ser estúpido.
Há pessoas cuja existência se baseia em serem vermes nojentos. Pagam-lhes para serem os piores vermes. Uma vez a Maya (a tal taróloga-relações públicas) disse-lhe: “Ainda bem que as pessoas te odeiam, estás a fazer o teu papel“. Portanto, ele é pago para ser odiado, mas é narcisista e quer ser admirado, adulado, amado? Que confusão…Nem na adolescência eu vivi num armário assim tão cheio de cadáveres. Claro que o blogue dele se chama «Eu, Cláudio», como «Eu, Carolina». Aliás, o princípio da existência das duas personagens é o mesmo: quanto mais reles, mais atenção, quanto mais atenção, mais dinheiro. Ele e ela são especialistas no seu próprio umbigo. Mas ela ao menos sabe que ninguém gostaria de estar na sua pele, a ser ameaçada de morte, agora o Claudinho, esse acha que todos têm inveja dele e lhe devem alguma coisa. Amigos, vão para casa ler Dalai Lama, aprender que no universo somos só um pontinho, aprender, como diz aquela parábola oriental, que quando o macaco julga que chegou à lua está num dos dedos de Buda e ainda tem de enfrentar o deserto do mundo.
Mas todas estas personagens à parte, existe a vida do dia-a-dia, e a maior parte de nós corre o dia todo, sem tempo para ficções de maior. Porque temos emprego, casa para cuidar, filhos, cães para pôr a fazer xixi, uma cozinha para arrumar, livros para ler, tarefas inúmeras que sobrecarregam o nosso dia. Lemos a «Caras» e a «Lux» basicamente numa de divertimento com roupas, festas e declarações fantásticas de uma tiazorra qualquer que diz frases com expressões francesas pelo meio (mesmo à Eça), ou, como já aqui disse uma vez, de uma entrevista retiram e dão relevo a uma das frases mais medíocres e desinteressantes, como aquela da D. Isabel de Bragança «a minha casa tem correntes de ar». Como não acredito que a senhora seja estúpida (pelo menos não parece) creio que a entrevista devia falar de coisas mais importantes, como a educação dos filhos.
Todavia, a maior parte de nós não tem uma vida glamourosa, por isso criamos ficções muito diferentes. Criamos ficções pela expectativa, pelo sonho, pela projecção, pelo rótulo, também. Umas ficções ganham asas, outras não. Há inúmeras pessoas que conheço que poderiam perfeitamente concorrer com o Cláudio Ramos, a todos os níveis: ao nível da tal «honestidade», que basicamente consiste em falar do que não sabemos e sermos mal-educados, ao nível do «eu tenho as melhores coisas do mundo», ao nível de «eu sei tudo» ou «eu sou bom e todos me querem» (tipo Reginaldo Rossi). Temos de rir. Não há outra atitude. A megalomania gera loucura, muitas vezes disfarçada de um humanismo que não existe, não está lá. O Cláudio Ramos considera-se «boa pessoa». Como me disse a minha avó um dia: “ Sou boa pessoa, não minto, não roubo, não faço mal a ninguém “. O Cláudio diz exactamente o mesmo, enquanto disfere insultos contra quem aparece nas capas das revistas, porque não tem «motivos» para aparecer – portanto ele tem, certo?
Há pessoas que querem o impossível: serem só elas no mundo e fazer dos outros meros espectadores da sua existência divina. Muitas pessoas gerem o mundo à sua volta dando volta aos outros, sem dó nem piedade, e tratando mal quem não lhes lamba o rabo, desculpem a expressão rude. O que lhes dói mais é serem ignoradas, como diz a Lisa. Ser ignorado implica estar fora do palco, fora da ribalta, fora de jogo. Para essas pessoas, é como não existir, provoca solidão e pânico. Um narcisista sem público é como um parasita sem hospedeiro: um não existe sem o outro, porque um existe por causa do outro. Em suma, deixem de adular o Cláudio Ramos e de comprar livros da Carolina Salgado. Vão ver que resulta.
2 Comments:
Falando no mau carácter de muito boa gente, fizeste-me lembrar do fim de um filme que apanhei no outro dia na Sic Radical. Um tipo normal foi preso não sei porquê. entretanto, cai no goto de um grupo de 3 pretos que lhe sacam os sapatos. Teve de acatar a ordem, tal como eles mandaram. Depois, foi fazer queixa aos guardas. Não podiam fazer nada porque não havia provas. E a embirração dos tipos continuou; passou a ser agredido e gozado por eles. Sentindo-se totalmente indefeso, agarrou a arma que um tipo hispânico lhe deu e num acesso de loucura acaba por alvejar os pretos que o lixavam, alguns guardas, outros presos. Fica a pergunta: quem foi o mau? Os pretos ou o francês que se passou por estar farto de maus tratos físicos e psicológicos, e por ter procurado ajuda e visto todas as portas fechadas? Bom, suicidou-se no fim, num stress extremo. É sempre complicado ver estas coisas porque são bem reais e revelam as relações que temos de enfrentar em qualquer grupo, em maior ou menor escala. Ou temos uns tomates gigantescos e enfrentamos o agressor, mesmo a morrer de medo, ou viveremos para sempre de joelhos.
Ui não me tentes a fazer justiça pelas próprias mãos! Ainda sou da opinião que a vingança se serve num prato frio. No caso do francês acho que não podia ficar à espera...
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