O dia em que Salazar venceu
Tenho de ser franca. Nunca pensei. Depois de tanto gozo, de tanta crítica, de tanta gente esquerdista e semi-esquerdista a tentar apagar a memória dessa figura mítica, eis que Salazar surge do nada e apanha comboio para a vitória sobre outros concorrentes, quando a mim muito poderosos: D. Afonso Henriques, D. João II, Aristides de Sousa Mendes, Álvaro Cunhal, Fernando Pessoa, Camões, Vasco da Gama são aqueles de que me lembro. Acima de tudo, lutou ali pertinho e bem renhido em relação a Álvaro Cunhal. Era o que todos queríamos, saber se em Portugal tem mais força a direita conservadora da Igreja ou a esquerda libertina. E, mesmo tanto tempo depois do 25 de Abril, ressurge esta figura com contornos pitorescos, acho eu, com mil e uma histórias mal contadas, figura austera e pouco simpática, o pai e o professor cuja autoridade nunca teríamos coragem de pôr em questão ou apanharíamos decerto uma bofetada valente ou um olhar que nos meteria tanto medo que sentíamos as cuecas molhadas. Não é Salazar. É «o» Salazar. O gajo, o filho da mãe, o cusco, o conservador, o poupadinho, o velhadas. Ontem a figura dele até parecia sorrir de regozijo: “ Toma lá Cunhal, e põe-te a mexer! “. Eu nunca pensei vir a dizer isto, em toda a minha vida, mas viva o Salazar!
O conceito do programa «Os Grandes Portugueses» é interessante, mas roça a tolice colocar figuras como Salazar a par de Fernando Pessoa ou Camões, D. João II ou Aristides Sousa Mendes. Para mim ganhava logo o D. Afonso Henriques. Sem ele, os outros todos arriscavam-se a falar castelhano ou árabe, e eu não me apetecia nada seguir as regras do Corão e muito menos – mas muito menos – ser espanhola. Ser português é um orgulho graças ao D. Afonso Henriques, de quem, pelos vistos, todos descendemos. É certo que hoje ele poderia ir ao Goucha e ser eleito o trolha do ano: o homem cheirava mal, falava mal, era bimbalhão e analfabeto e, quando se via ameaçado, socava e pontapeava a própria mãe, D. Teresa (ou Tareja, quase a rimar com «tareia»), que quanto a mim devia estar a pedi-las. Sem este grande português, nem Camões nem Pessoa tinham versos tão belos, isto é, em português.
Os portugueses elegeram Salazar e isso deve ter uma explicação – ou não, se calhar telefonaram as pessoas aficcionadas e prontinhas a gastar uns tostões para defender o «seu» português. Depois lá vinha a Maria Elisa com aquelas perguntas a soarem a falso: “ Fernando Pessoa era criativo ou depressivo? “. O «ou» disjuntivo é que está mal, porque assim a senhora assume que alguém criativo não pode ser depressivo, ou vice-versa, e no caso de Pessoa as duas características andavam de mãos dadas, sem desprimor nenhum para a sua arte. Aliás, esse é o grande problema. Quando as pessoas tentam fazer algo de jeito, toca a chamá-las de maluquinhas. Compará-lo com Camões também me pareceu de muito mau gosto: desde quando um classicista como Camões tem alguma coisa a ver com um modernista como Pessoa? É preciso entender o contexto da obra Mensagem, para se entender porque Pessoa desejava ser um supra-Camões. Ele não era tolo, sabia o que estava a dizer, e no programa pareceu-me que o trataram, incompreensivelmente, abaixo de cão.
Quando veio à baila a comparação entre Salazar e Cunhal, também fiquei perplexa com as tentativas – infrutíferas – de todos para definir «líder». Uns diziam que líder é o que tem poder, outros que tem um poder que emana do povo, outros que um líder não pode ser imposto. Não estamos a ler bem as coisas. Em primeiro lugar existe o factor diacrónico, a história. Cada líder aparece consoante a história mundial, a história das mentalidades, a história nacional de um país. Depois existem características pessoais que põem um líder a liderar: o carisma, a palavra, a retórica, a presença, até a capacidade manipulativa, a paciência para convencer uma ou várias pessoas ou até multidões. Existe também a irracionalidade das pessoas, o vazio interior que leva as massas a exterminarem o «outro», o diferente, o menos bom ou menos capaz. E há a necessidade histórica que convoca aquele líder. É o caso de Salazar. Não lhe reconheço nenhum carisma por ali além, devia mesmo cheirar a mofo, mas era inteligente, sagaz, e soube aproveitar as circunstâncias para defender o país o melhor que sabia. Não vale fazer convergir nele defeitos incríveis ou achar que ele é a encarnação do mal. Preferiam o Hitler ou o Mussolini? Eu não.
Ao menos não andámos a exterminar judeus por dá cá aquela palha. Toda a gente sabe que os judeus fazem falta (mesmo quem não os acha seres humanos), no comércio, na sovinice, no controlo de bens, e claro, em Hollywood. Os judeus mandam em Hollywood, caso não saibam Spilberg e Woody Allen são judeus, entre muitos produtores, realizadores, actores e, acima de tudo, financiadores de filmes com tiragens excepcionais. Está bem, os judeus mataram Jesus, mas alguém tinha de o fazer, o tipo falava demais, e ser filho de Deus não pode ser…isso é querer ser mais papista do que o Papa.
A Odete Santos gritava que tinha havido fascismo, o José Hermano Saraiva outrora defendeu que não. A realidade dos dois é muito diferente. Ela defende uma realidade fora da História e ele conhece a História por dentro. Dentro do fascismo e dos fascistas, Salazar foi o melhorzinho que por aí andou. As tropelias da polícia política em Portugal não se comparavam às SS dos alemães, nem a propaganda portuguesa à do Goebbels, autor de uma das frases mais verosímeis da História: “ Uma mentira muitas vezes contada torna-se verdade “. É isso mesmo. Portanto, e em última instância, cada povo, cada nação, cada família, cada pessoa tem a mentira que merece. E cá em Portugal tivemos mentirinhas. O Salazar não apareceu com ideias de extermínio, apenas tentou que ficássemos fechados neste cubículo chamado Portugal, longe do resto, e conseguiu. As consequências perduram até hoje. A ideia de que Portugal é o litoral do continente, em particular Lisboa e Porto ainda tem sucesso, concentrando-se nessas zonas o melhor e o pior do país, a todos os níveis: ensino, produtividade, competitividade. O excesso de pessoas em ambas as cidades deu origem a guetos e bairros de lata nas periferias.
Salazar foi o fascista necessário, aquele que merecíamos ter. Eu sei que o país era pobre e mal amanhado, muito mais do que hoje. O acesso a tudo e mais alguma coisa era diminuto e as mulheres faziam parte de um grupo triste e soturno que não tinha direito a respirar fora de casa. Ser gaja era sinónimo de ser burra, obediente, dona-de-casa e mãe. Poucas mulheres saíam deste núcleo e quem saía era muito mal vista. Como diria a minha avó, uma mulher solteira e com filhos era uma vergonha, uma mulher solteira depois dos vinte anos era uma vergonha, uma mulher viúva não se podia voltar a casar, porque era uma vergonha…sobrava as outras hipóteses que, invariavelmente, deixariam a mulher largada a um epíteto pouco doce: vadia, prostituta. Se tivéssemos continuado com Salazar, andávamos todas de burka.
Salazar fez o tinha de fazer, o que estava ao seu alcance, nas suas mãos. Não foi cruel, foi necessário. Foi útil ao país da maneira que podia. É insensato pensarmos que, se tivesse sido outro tipo de pessoa, teríamos tido liberdade mais cedo, porque ele foi, à sua maneira e no seu tempo, um Messias. Quando começou a desagradar, não quis sair do poleiro nem ouvir ninguém. Um líder que não ouve perde-se, obviamente, porque o poder está naquilo que os outros não sabem e ele sabe. Se os outros sabem e ele não, desvirtua-se o jogo, como no filme «Underground», cuja personagem principal é mantida na ignorância relativamente ao fim da guerra da ex-Jugoslávia, e vive numa cave com tanques, pronta a defender-se do exterior.
Os anos do fascismo deixaram as pessoas perdidas, sem saberem muito bem quem eram e do que gostavam. Não tinham escolha. Quando em Abril de 1974 passámos ao outro extremo, a coisa complicou-se.
Toda a gente sabe que os comunistas são bichos perigosos, excepto os próprios comunistas. São bichos com asas, mas graças a Deus não voam, que é como quem diz, fazem falta na oposição, mas ninguém lhes dê o poder para as mãos. Por isso alguém da plateia do programa reclamava com grande fé que o grande líder vivo desta nação era Mário Soares, afinal afastou os comunistas com uma contra-proposta para o país, que nos fez encarreirar noutro caminho bem diferente do de Álvaro Cunhal. Ninguém vive só de ideologias, precisamos da barriga cheia. Não venham chorar que Cunhal é excelente, também lhe reconheço brilhantismo, mas se algum dia fosse governador, teríamos Portugal igual a Cuba e continuávamos a apregoar que éramos todos «iguais». Os comunistas adoram gente igual. Gente igual a eles. Os outros podem pôr-se a milhas.
Quanto a Soares, alguns portugueses fizeram o favor de o afastar dos dez mais, do top dos melhores portugueses. Tudo o que é demais enjoa. Desta última candidatura dele à Presidência da República retive a cena daquele dinossauro velho a dormir, enquanto uma brazuca esfregava o rabo freneticamente na cara dele. Homem que dorme perante este cenário está cansado (ou é bicha)… Uma pessoa também se cansa do poder. Ou um dia diz, como um dia disse Cavaco Silva: “ Agora tenho netos para cuidar “. Na verdade já devem ter crescido, até este voltou ao poder… Além disso, Soares tem prole e uma família que mete o nariz em tudo, uma mulher beata, um filho desajeitado e arrogante cuja sede de poder é evidente. Os Soares são a família-mete-nojo de Portugal: se um é mau, três é pior. Com sorte os netos vão para padeiros, varredores de rua ou bombeiros, prestando um serviço à nação de grande monta e significado (não é ironia).
A grande questão que me coloco é o porquê de portugueses em massa ou bloco irem votar na figura controversa do Salazar, quando poderiam ter votado, por exemplo, no Vasco da Gama? Está enraizado na nossa cultura que um homem de extrema direita ou um de extrema esquerda só pode ser mafioso, mentiroso, e também que um político só pode ser manipulador. À excepção dos escritores, que figuras foram à votação final? Políticos. De uma maneira ou de outra, até Vasco da Gama era político, convencer o rei das viagens que pretendia fazer deve ter sido obra, o resto era arte de navegação e sorte pura. Vasco da Gama era, assim, uma figura bem mais neutra do que Salazar e igualmente importante. Porquê Salazar? Não há grande saudosismo da época da repressão: ou será que há? Teremos saudades de regras excessivas, que puniam «a sério» alunos faltosos e agressivos, por exemplo? Teremos saudades de quando as mulheres eram mais submissas, mais ligadas à família, menos cabeças de vento prontas a ir ao divórcio por dá cá aquela palhinha? Teremos saudades de não poder ter blogues a «dizer tudo de todas a maneiras»? Ou teremos simplesmente saudades de valores enraizados, profundos e do tempo em que não podíamos endividarmo-nos porque não havia o bem dito «crédito»? Quiçá teremos saudades simplesmente de não haver anúncios estúpidos a dizer «Allgarve» aqui em Portugal. Porque Salazar estava cá e não deixava. Decerto as mulheres, com excepções raras (como a minha avó) não devem ter saudades de não poderem votar, de serem analfabetas obrigadas a saber coser e cozinhar com perfeição, de terem as finanças controladas, de precisarem da assinatura do marido ou dos pais para poderem sair do país ou dar aulas, e de terem um acesso diminuto à universidade.
A estilista Ana Salazar (que não é filha do Salazar, descansem) conta que quando começou a usar o cabelo vermelho os olhares viravam-se todos para ela, as pessoas comentavam, mas que hoje em dia passa despercebida. Ser diferente ou estar de forma diferente era punido, daí que a minha avó tivesse interiorizado a ideia de que, no tempo do Salazar, não havia homossexuais e as mulheres eram dignas de pena. Ela conta sempre como o meu bisavô, figura extremamente semelhante ao D. Afonso Henriques, que lhe rasgava a bainha subida das saias porque era «uma pouca vergonha» e lhe mandava os cremes pela janela fora, achava todas as mulheres dignas de pena. Até a gata, por ser fêmea, recebia uma carcaça para comer todos os dias, mais do que qualquer gato da época da outra senhora poderia almejar. A minha avó ainda hoje está convencida de que aquilo é que estava certo. Também nunca percebeu bem a utilidade de uma mulher estudar ou trabalhar, nem percebeu ainda porque é que uma mulher se divorcia ou uma viúva mete os cornos ao falecido, voltando-se a casar. Já os homens, para ela, podem e devem ter o acesso livre a todas estas coisas. Basicamente, desde que um homem não espanque uma mulher, a vida corre de feição para ela. A minha avó já não é do tempo em que o mundo deu uma volta de 180 graus. Estamos no pólo oposto, e ainda bem. Mas ainda descemos mais do que isso - e ainda mal. Começámos a fazer aos homens o que não gostámos que nos tivessem feito a nós, somos espertas ao ponto de nos fazermos de coitadinhas para o macho nos vir salvar das intempéries e com isso ganharmos espaço, embora percamos a dignidade daquilo que considero «feminino». Essa é a atitude do macho ferido, fazer-se de sensível para pedir desculpa e bater outra vez na mulher. Agora é a vez de elas fazerem o mesmo, mas com mais subtileza e determinação. Mas essa é outra história…
Numa altura em que se discute (ainda!) se se deve ou não abrir um museu dedicado a António de Oliveira Salazar, o Presidente da associação do combate contra o fascismo (nem sabia que havia esse tipo de organização) diz que a abertura de museus acerca do fascismo e do regime salazarista são da maior utilidade, mas que o museu está desenquadrado, visto que espera recuperar a antiga casa de Salazar com os utensílios dele, a escrivaninha, a sala, etc. Pergunto-me qual será o mal desse tipo de museu, ainda por cima situado no cu de Judas, numa terra chamada Santa Comba Dão, pequena, tipo aldeia das bonecas com uma única estátua: a do dr. Salazar. Quem lá irá para ver de propósito os utensílios que Salazar utilizava para cortar a barba? Já agora, Vasco da Gama deu nome a um centro comercial, até Colombo, cuja nacionalidade ainda se questiona; Fernando Pessoa teve direito à casa Fernando Pessoa e a centenas de teses de mestrado e de doutoramento, bem como estudos e publicações com o subtítulo «inéditas». Muitas pessoas perguntam, e correctamente, de que tamanho será o baú literário de Pessoa, para aparecerem inéditos caídos do céu a toda a hora. Camões vai pelo mesmo caminho, embora a questão da autoridade literária se coloque sempre (virá o dia em que atribuem tudo à índia que ele deixou morrer no mar). Aristides Sousa Mendes tem a sua fotografia na Faculdade de Direito, não fosse isso e ninguém o conheceria. Álvaro Cunhal deixou um legado teórico, arte, desenhos e a cela onde esteve preso ainda é visitada.
Afinal, o que é que Salazar não tem que os outros têm todos? Se o Mário Soares tem uma fundação, porque não fazer uma dedicada ao Salazar, enaltecendo as virtudes do regime? A questão é simples: não vende, ninguém liga nenhuma, ninguém compra e, acima de tudo, é tabu, ninguém quer falar disso. Durante anos, houve uma tentativa poderosa por parte da esquerda (mas também de muitas outras pessoas), e em parte bem sucedida, de apagar o rastro do regime, de não lembrar a sordidez de alguns aspectos menos bons. Mas estamos na época do fala-barato. Já devíamos ter vencido esse medo, essa fraqueza. Não é possível fazer um novo capítulo sem perceber o capítulo anterior (excepto nos livros do António Lobo Antunes), talvez esse seja o grande erro. E Salazar é o capítulo anterior.
1 Comments:
Brilhante dissertação.
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