Monday, April 02, 2007

Em sintonia

Mais do que empatia, simpatia, utopia, sempre gostei da palavra sintonia. Parece mais terra-a-terra do que utopia, mais rebuscada do que empatia ou simpatia. Já agora empatia é profunda, porque pode ter ou não simpatia à mistura, mas tem muito a ver com sintonia. Sintonia lembra-me sinfonia, música, arranjo musical. Tem a ver com algo muito lato que me é extremamente caro: a coerência. Se vivermos em coerência com os nossos valores, pode ruir o mundo, podemos estar tristes, mas sabemos, à partida, que somos nós próprios, que não existimos só para agradar aos outros, que temos um dom não partilhado com a grande maioria das pessoas: há um trilho que só nós percorremos, sozinhos, sem ninguém nos ajudar, mesmo que em todos os outros percursos tenhamos tido ajuda. O percurso do eu. Isso é fundamental. Sem isso, não há coerência, e claro, não há sintonia, nem connosco, nem com as pessoas, nem com o mundo.

Não sei quem eu teria sido se tivesse seguido tão somente a educação que me foi dada. Um misto dos meus pais e dos meus avós parece-me coisa ruim. Mas sem eu própria cá estar era isso que tinha acontecido. Há muita coisa que nunca teria sido como é, há muitas pessoas que eu não teria encontrado no meu caminho. Se eu tivesse levado à letra algumas palavras que me proferiram, eu não estava casada, nem fora de casa, nem a fazer investigação. Houve uma pequena parte de tudo o que fui ouvindo que fez de mim uma pessoa bastante desconfiada: afinal, o que querem os outros? Parece que há pessoas que vivem permanentemente apoiadas nos nossos ombros, a achar que assim é que estão bem, e se lhes desviamos um bocadinho o ombro somos considerados maus filhos, gente com mau feitio, gente fria e severa. Não podemos viver a sorrir, porque essa confiança representa o fim de nós próprios, mesmo que, bem lá no fundo, sejamos simpáticos e tenhamos vontade de ajudar.

Foi sempre isto que senti com muitas pessoas, mesmo da minha família: estavam ali, expectantes, à espera de mim, mas pior do que isso, achavam que eu tinha de ser «assim», naquele formato pré-definido. Há pessoas que lembram os animais, se vêem comida arfam, babam-se e vêm a correr ter connosco. Todavia, se um dia aparecemos de mãos vazias, ali vêm na mesma, pousam à frente dos nossos pés, esperam um bocadinho e depois vão embora. Com as pessoas é diferente, porque as pessoas criticam. Acham que se éramos de uma maneira (provavelmente imaginada por elas) não lhes podemos frustrar as expectativas nunca. A minha avó ainda me cobra as coisas que eu fazia e que eu pensava aos dez anos. Eu tenho trinta. Em vinte anos não podemos mudar nada do que somos?

Estar em sintonia é muito difícil porque compreende o frágil equilíbrio entre o social, o pessoal e o familiar. Mas acima de tudo exige que sejamos coerentes connosco, com os nossos desejos, crenças e sonhos mais profundos. Exige que façamos o luto daquilo em que não acreditamos e das relações pessoais que nos frustram e que passemos à fase seguinte: a fase em que nós temos de ser nós, a fase em que temos dúvidas mas só as expomos a quem as merece ouvir, a fase em que bocas foleiras deixam de nos afectar e em que finalmente pensamos que há pessoas para as quais o maior castigo é serem como são, mas que infelizmente não há Justiça Divina que nos ilumine o caminho e puna os que consideramos prevaricadores. Estar em sintonia é não precisar de mais informações se não as que gostamos de ter, de ouvir, de saborear, de escrever, de partilhar. É dar aos outros o lugar que eles merecem: alguns pertinho de nós, outros bem longe. É só termos e sermos aquilo que realmente precisamos, e não nos importarmos nada que nos chamem orgulhosos, presunçosos ou maus feitios. É ter a certeza que não estorvámos ninguém na hora errada e pedimos ajuda na hora certa, e não nos arrependermos disso. É estar preparado para ser estorvado na hora errada, mas também para ajudar na hora certa. É aceitar os nossos erros e falhas. Eles cá estão para nos lembrarmos que somos humanos, e sobretudo que é muito difícil estar em sintonia, exige anos de treino rigoroso, e que, como qualquer atleta que preza sua forma física, devemos treinar o espírito e a consciência.

1 Comments:

At 8:40 AM, Blogger Brisa said...

Sim, é mesmo esse o segredo; estar em sintonia com o nosso interior. Nada mais difícil, suponho. Nada mais gratificante, garanto.

 

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