Monday, April 16, 2007

A concha

Há aqueles dias de sol em que não apetece nada. Deixem-me ficar. Estar assim. Não me chateiem. É um bocado esta norma que é difícil seguirmos e os outros seguirem também. Parece que só estamos felizes se nos intrometermos na vida dos outros, se fizermos um – nem que seja um – comentário destrutivo. «Estás mal vestido», «Estás gorda», «Pioraste muito de feitio», «Assim não vais a nenhum lado». As pessoas somam coisas negativas umas contra as outras para ver de deprimem, se achincalham, quando podiam perfeitamente ser assertivas, dizer simplesmente «Não concordo contigo porque…» com voz calma, dizem antes «Não tens razão! Não acho!», numa interrupção abrupta, com má fé, com a intencionalidade de dar o gritinho narcisista do costume, «Eu estou aqui, olhem para mim».

As pessoas não têm medo de se afirmar pelo pior de si mesmas. Quantas colegas de faculdade eram assim? Imensas…Tinha uma colega cuja principal actividade era dizer o que os outros deviam fazer, mesmo em actividades que ela não sabia fazer. Dizia raivosamente «Porque é que começaste a fumar? Acho uma estupidez…», mas fumava imenso, justificando-se com «Ah, mas eu fumo, tu não fumavas…». Que estranho alguém cuja maior estupidez é fumar um maço de cigarros por dia dizer aos outros que são estúpidos porque fumam um cigarro de vez em quando. Outro comentário frequente dela – e de muitas pessoas que conheci ao longo da vida – era o célebre «porque é que não conduzes?». Mas desde quando – desde quando? – existe alguma lei que obrigue as pessoas com carta a conduzirem, a terem carro? As pessoas não podem preferir ir de transportes?

A maior parte de nós vive no meio de dogmas que tenta impor aos outros, mesmo que sejam dogmas sem fundo de verdade ou qualquer moralidade como cenário. Conduzir ou não conduzir não tem nada de moral ou imoral ou amoral (a menos que não se tenha carta ou não se veja bem), no entanto achamos que sim, que faz falta aos outros porque nos faz falta a nós.

Até questões como os sentimentos provocam mal entendidos. Para mim o amor é essencial. Acho impossível estabelecer ligações íntimas com as outras pessoas sem que a base seja a afectividade. É verdade que não temos afectividade por todas as pessoas com quem nos relacionamos, mas ter inteligência emocional compreende saber gerir isso. Todavia, cheguei a esta idade a perceber uma coisa: é um dogma meu. Há pessoas para quem amor e afectividade são relativos e dependem das circunstâncias que lhes são favoráveis. Não sei muito bem como se gere uma vida interior desse calibre, mas deve ser apenas pela superfície. Que fundo de verdade pode existir nessas pessoas? O que podemos esperar delas? Nada, basicamente. Não devemos sequer ir à procura do que não existe. É pura perda de tempo.

O que se passa na cabeça das pessoas é realmente um mistério, mas há coisas que hoje em dia são comuns e que acho profundamente erradas. O enraizamento da ideia-chave de que a franqueza e a sinceridade correspondem a «dizer tudo de todas as maneiras» na cara das pessoas, e de igual modo «mostrar bem que não se gosta, frisando o carácter» é gerar o caos na ordem pré-estabelecida de que respeito mútuo é importante, conter ideias, palavras e sentimentos pode até ser útil. Não vejo nada disso como hipocrisia, mas se lhe quiserem chamar assim, então está bem, chamem. Eu devo ser uma perfeita hipócrita por achar que tratar bem algumas pessoas pode ser altamente compensador para mim, pessoal e profissionalmente, ou mesmo simplesmente não arranjar problemas no alheio. Mas não. Hoje em dia institucionalizou-se a norma de que pela frente diz-se tudo para libertar maus fígados. Vejam estes exemplos.

Uma amiga minha entra numa loja de fatos de banho e a empregada diz-lhe: “ Para si, só se for feito à medida! “, olhando-a de alto a baixo. Portanto, para esta empregada, que deve achar-se o cúmulo da franqueza (nada hipócrita, portanto) dizer na cara das pessoas o que pensa é uma expressão de sagacidade. Será que é inteligente ter perdido uma cliente? De ontem para hoje aconteceu-me três vezes este tipo de sucedido. O primeiro foi ontem, a seguir ao almoço eu e a Patrícia comprámos dois gelados, e a empregada, passado meia hora e depois de ter tirado dois cafés (porque pensava que queríamos dois cafés) lá me disse, na sua máxima sinceridade: “ Esse gelado é enjoativo, tem muito chocolate “. Ai que espontânea! E como diria a Patrícia, alguém lhe perguntou alguma coisa? A seguir entrámos num café. Noutro, para não «enjoar» mais a empregada anterior…Um café daqueles tipo de esquina, soturno, numa cave, cheio de gente mal encarada. Peço um café, sentamo-nos as duas, eu e a Patrícia, e um empregado olha-nos de alto a baixo: “ As mesas são para almoço “, resmunga ele, na sua sinceridade máxima, que, quanto a mim, bem podia ser refreada. Olhamos em volta, e as mesas quase todas vazias. Eu lá digo, muito simpática (que hipócrita sou eu!): “ Se for necessário, saímos “. Mas estávamos a consumir, a pagar, e as mesas quase todas vazias…sair porquê? Ele lá resmunga: “ Podem ficar “, mas muito seco, muito incomodado. Como disse a Patrícia, ficámos a saber de uma vez só porque é que as mesas estavam vazias…

Vamos passar para hoje. À hora de almoço novamente – deve ser a freak time, decerto que sim. Vou a uma loja fantástica que há ali nas Laranjeiras, cheia de enfeites para festas e aniversários, compro as minhas velas de aniversário: 30 anos. E diz logo a empregada: “ Ai a partir daqui é uma desgraça, plim, plim, plim, os anos todos a passarem e nós a cairmos…”. E eu sorrio ao de leve (agora sim, sorriso amarelo ou hipócrita) e apetece-me simplesmente esganá-la. Não só não lhe perguntei nada, como sou uma cliente que ela não deve ver muito por ali, porque a regra é as pessoas não gostarem de fazer anos, muito menos comemorarem com velas e guardanapos os seus 30 anos. Claro que ela percebeu que meteu o pé na poça, porque eu sim, sou sincera, não me rio do que não gosto, e apesar de adorar a lojinha, dificilmente lá voltarei.

Porquê? Porque é que temos sempre uma palavrinha triste e desgostosa a dar aos outros? Porque é que somos tão frios? Porque é que a rapariga, ainda tão nova, se acha tão velha por ter mais de 30 anos, e acha que depois disso, é «tudo a cair»? Se estivesse aqui a Patrícia, diria já «Sim, a gaja é a prova disso». Digam lá se não apetece mesmo responder algo desse género: “ A senhora prova que assim é, que depois dos 30, muito muito depois (deste modo chamava-lhe velha, coisa que as pessoas odeiam), as pessoas ficam amargas e tristes, abrem lojas de enfeites para esconder a desgraça e o vazio interior daquilo que são. Já agora, usa botox e colagénio? É que devia…devia mesmo “. Porque é que as pessoas são sinceras quando não deviam, mas quando devem sê-lo, acabrunham-se tanto? Afinal, a senhora deveria ter dito: “ Já fiz 30 e não gostei nada. Ainda bem que a senhora tem motivos para comemorar…”. Reparem na inteligência emocional e social desta resposta: 1) assume a sua opinião/posição pessoal sem generalizar; 2) não magoa o outro, neste caso o cliente, que não fica lesado na resposta; 3) elogia o cliente, conquistando-o para uma próxima compra. Mais inteligente seria ainda o célebre e antigo «Obrigada e volte sempre». Dantes era só assim que se despedia do cliente. Agora não. Agora vem à boca o fel e a amargura dos dias que não conquistámos para nós e só demos aos outros.

É por isto que gosto tanto de fazer anos. Sou mais eu. Digo a mim mesma: “ Viva! Mais um ano! E está sol e não vai ser Domingo de Páscoa, por isso posso até convidar o pessoal para junto de mim…”. Não vou pensar que estou mais velha, ai as rugas e que porcaria. Afinal saí de casa desde o ano passado, como sempre quis, casei-me, tenho emprego, tenho amigos…vou pensar que a partir daqui é a minha ruína? Que pensamento horrível! Claro que a idade traz alguma nostalgia e socialmente é como uma sombra terrível, há sempre alguém que nos lembra que somos velhos para alguma coisa. Mas seremos?...Fiquem a saber que eu tenho guardanapos da Hallo Kitty, a minha boneca favorita desde menina e não me sinto nada velha nem nada parva por ter ido à procura de guardanapos especiais para a minha mini festa.

Gosto tanto de empregados simpáticos, de pessoas simpáticas. Fazem tão bem ao ego. Não é mentir bem nem nada disso, é serem disponíveis, dizerem que estão ali para ajudar. Há uma certa inteligência emocional nisso. No outro dia fui à procura de um par de sapatos lindos, mas que infelizmente me doíam muito nos pés (e eram caros, embora a dor nos pés fosse pior do que o preço!). A rapariga ajudou-me, fartou-se de elogiar os sapatos e disse que me ficavam bem. Eu não os levei, mas achei-a muito simpática. Acontece um fenómeno estranho, sobretudo com as mulheres, acho eu, que é a empatia com os outros. Saber vender baseia-se muito nessa filosofia. Ser macio, dócil, atribuir qualidades a quem compra «aquilo», como a beleza, o conforto, a aparência. Eu entrei naquela loja como sou: quispo esbranquiçado, mochila gigante, botas, collantes com meias por cima, mesmo com este calor, suor a escorrer-me do rosto. E ela sempre sorridente, sem olhares parvos de soslaios, que nós topamos muito bem quando existem. Só que o produto não se adequava, paciência. Na Baixa entrei noutra loja e a experiência foi antitética: empregada antipática, má cara, olhares de soslaio, do tipo «quem é esta gaja mal pronta?», mas estava lá o par de sapatos que eu queria. É assim a vida… Ainda tentei utilizar o método da minha avó, de ser simpático com quem é antipático, dizendo «Boa Páscoa!», mas a rapariga resmungou algo, não levantou os olhos e foi à vida dela.

Ser sincero não pressupõe necessariamente ser arrogante (é verdade que às vezes é preciso uma certa agressividade como resposta, para delimitar espaço e dizer ao outro «aqui não entras»). A sinceridade é uma espécie de calma interior, não uma imposição ao outro. Não me parece que dizer «não há fato-de-banho que se lhe sirva» ou como me disseram numa loja «O seu marido não vai gostar de nada disso, eles nunca gostam» seja sinceridade, é, isso sim, arrogância pura. Uma pessoa arrogante não é necessariamente uma pessoa sincera, nem vice-versa, uma pessoa sincera não tem de ser arrogante. Estranho como as pessoas confundem…

Arno Gruen descreve, na sua obra «A Loucura da Normalidade» um estranho aspecto: por vezes os loucos são as pessoas que melhor expressam a sinceridade do Eu, visto desconhecerem, por completo, as barreiras sociais e os códigos que nos orientam (eles e muitas as outras pessoas não loucas, por isso é tão grave a situação). Hoje vi um «louco» no autocarro que fazia coisas estranhas. Os loucos assustam-me desde miúda. Muitos não são perigosos, só estranhos, mas depois de ler o livro de Arno Gruen fiquei com menos pena, porque visto que ninguém os leva a sério, podem basicamente dizer o que lhes apetece. Ele lá estava sentado, fazia sons alto, grunhia, agarrava no braço da pessoa ao lado chamando a atenção para coisas perfeitamente triviais, tipo «Olha um prédio ali!» (no Saldanha, que estranho haver um prédio), mandava as senhoras sentarem-se nos lugares vagos e estendia a mão aos senhores. Depois saiu no Campo Pequeno (isto depois de eu ter fugido para os lugares mais recônditos do autocarro, porque como disse morro de medo dos loucos), e mandou o autocarro avançar, como se comandasse o mundo com as suas mãos. Fiquei a pensar em como nós, seres aparentemente fiáveis, somos tão pouco fiáveis e tão mais instáveis do que este homem. Temos medo de expressar quem somos, mas não temos medo de omitir uma opinião que magoe profundamente alguém ou de dizer o que nos vai na alma por forma a deprimir a outra pessoa, a dizer-lhe de uma vez «Que ideia tão estúpida! És mesmo burrinho!» ou «Eu é que tenho razão, esquece a tua ideia!». É terrível como conseguimos ser estúpidos porque estamos magoados com a vida, connosco, como os outros ou…porque somos estúpidos. Conheço pessoas que não me parecem nada «magoadas» e que são muito antipáticas e agressivas. Por isso, acho os loucos muito mais sensatos, interessantes.

Na verdade, até o meu sogro, conhecido por dizer tudo o que pensa, acha insensato dizer tudo o que se pensa. Ele tem razão, ele é médico e com toda a certeza milhares de vezes na vida teve de dosear cuidadosamente a informação que ia dar às pessoas, de forma inteligente e sensível. Não podemos dizer tudo o que sabemos, nem tudo o que pensamos, nem tudo o que somos. Até porque muitas vezes não vale a pena. Cabe-nos estudar-nos a nós, ao mundo, aos outros, tentar perceber quando, onde e com quem devemos (e podemos) falar.

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