A gaffe
Toda a gente conhece gaffes, umas maiores do que outras. Algumas dão mesmo origem a mails compridos que recebemos nas nossas caixas de e-mail, outras diluem-se no tempo e no espaço. Em português, gaffe corresponde a fífia ou, como diria a minha mãe, meter o pé na argola, dar uma argolada, meter os pés pelas mãos também pode corresponder. Lembro-me sempre de um caso clássico da faculdade. A história começa com uma colega a quem chamávamos «Carlona» porque era gorda e um bocado arrogante, mas que era chamada assim secretamente (ou nós achávamos, porque nunca ninguém primou muito pela descrição e contenção desse juízo de valor). Um dia, outra amiga nossa, distraída, ouve o nome «Carlona» e, não associando à pessoa, pergunta bem alto «Quem é a Carlona?», e a Carlona, que andava por perto diz-lhe «Acho que sou eu». Rimos todos com esta história, que ainda é contada de forma mítica.
A minha gaffe de ontem também não foi má. Por vezes quando me perguntam direcções também esqueço que o universo existe, chego a nem saber responder a questões relacionadas com locais que povoam o meu dia-a-dia. Mas ontem foi uma gaffe inocente, um tanto ou quanto melhor do que estas mais usuais. Há uns dias encontrei uma amiga, muito preocupada, que me disse que a Tembua estava desempregada novamente. A Tembua é uma amiga comum que trabalhava num sítio cujo nome vou omitir, fazendo algo que nada tem que ver com os nossos cursos, como a grande maioria das pessoas com cursos de letras, história, geografia, psicologia e outros tantos pré-destinados a trabalhos mal pagos e não especializados. Relendo a frase, parece que a Tembua foi trabalhar para a Passerelle, mas não é nada disso…
Concentrados na velha máxima, «ter um emprego fixo é que é bom», os nossos pais e avós nunca entenderam que o canudo não é para brincar aos espadachins, é mesmo para ser utilizado a nível científico, de conhecimentos, mas a sociedade não está devidamente estruturada ou preparada para empregar tanta gente com estes cursos que não são técnicos e nem são considerados científicos. Tantas e tantas vezes ouvi na vida «para que é que serve esse curso?». Sempre me apeteceu responder vivamente «para meter no cu». Porque quê dizer «não serve para nada»? Mesmo pessoas com estes cursos dizem isso. Se não serve, então é pôr a servir. Como diz o meu amigo Eduardo, se querem fazer disto um produto de vendas, então vamos por aí. Não desvirtua nada a literatura e a história, ao contrário do que possamos pensar.
A minha avó nunca percebeu que curso tenho. Diz «és professora», mas não sabe mais nada. Um dia perguntou-me se as crianças iam bem, portanto cheguei à conclusão que ela acha que sou professora primária e «sei muito de matemática e francês». Onde é que a minha avó foi buscar isto, eu não sei…mas dá para contar às amigas velhotas dela que eu tenho um curso e é isso que é importante para ela. Não dou aulas, mas ela também nunca vai entender esse lado da questão. Acho que ela também nunca entendeu que uma mulher pode ganhar o mesmo ordenado – ou um muito melhor – do que um homem. Infelizmente, nunca cheguei a essa fasquia, a fim de lhe provar isso.
Se eu atendesse telefones, provavelmente a minha avó não via isso como uma injustiça, até porque podia continuar a dizer que eu tinha um curso (uma boa verdade) e era professora (uma grande mentira). Acho que depois de sabermos que o Sócrates teve o diploma de curso em 1996 e é Primeiro Ministro, posso confiar na minha licenciatura, que por acaso tirei em 1999, apenas três anos depois dele. Se ele chegou onde chegou e formado pela Independente, porque não eu? Muitas coisas na vida dependem, essencialmente, do carisma. Nem é da inteligência. E muito menos do carácter. Não gozem…há muitos colegas com cursos de letras que não têm razões de queixa. Muitos foram direitinhos para professores universitários, apesar de as universidades andarem sempre perto da falência.
Tudo para chegar à Tembua. A Tembua é daquelas pessoas a quem faço a vénia da compreensão e do entendimento. Arranjou trabalho fixo para pagar a casa. Como muitas e muitas pessoas. Mas para quem anda de metro e de comboio, a cara das pessoas é como aquele anúncio do algodão: não engana. As pessoas andam infelizes. De acordo com alguns estudos de psiquiatria e sociologia, dantes as pessoas passavam pelo triplo das dificuldades com metade das depressões que têm hoje. Hoje, há uma certa tendência a ter tudo facilitado, mas ao mesmo tempo, tudo é muito complicado: as distâncias, a vivência comum, o dinheiro, que se gasta em tudo e mais alguma coisa, tudo parece diminuir o prazer que temos em estarmos vivos. Depois o cruzamento entre o nosso mundo e o mundo das outras pessoas, que para uns parece taxativamente fácil e para outros, como eu, é sempre complicado.
Eu e a Tembua somos um bocado parecidas, levamos a vida como espectadoras, dos outros e de nós mesmas, e vamos paralelamente escrevendo piadas acerca de tudo. Observar a burrice medonha de algumas pessoas dá imensa vontade de rir, todavia a burrice de outras mexe até com o fígado mais inócuo do universo. Conheço pessoas burras que são tão burras como espertas, isto é, na verdade são burrinhas, não saem dali, daquele ponto, mas obrigam que outros se verguem a elas, trabalhem por elas. São uma espécie de bivalves, de medusas que se fingem de mortas na areia das praias: a pessoa tem de se desviar ou apanha uma alergia do caixão à cova, todavia ocupam espaço, respiram, chateiam, estão ali. As medusas são o contrário de mim e da Tembua: não têm sentido de humor, acham que basta a sua existência sem mais nada, os outros que se mexam que há-de vir a onda certa que as leve dali.
A Tembua saiu do local onde trabalhava para ir para uma coisa que gostava, mas menos segura, pois claro, mal paga, pois claro, a recibos verdes, pois claro. E diz-me a Tricia um dia destes em pânico: “ Ai que ela não arranjou turmas para dar formação! “. E eu fiquei naquele desespero que só um bom amigo pode ter (desculpem ser convencida, mas se não fosse boa amiga não me tinha chateado muito), a pensar, coitada da Tembua, agora que vai fazer ela? Óbvio que não a via a dobrar cartas ou colar selos em casa, como pedem aqueles anúncios do «Aumente os seus rendimentos» ou a ler tarot como a Florbela Queirós para ganhar uns trocos. Mas via a rapariga desesperada e achei que essa coisa de não lhe darem turmas era uma grande treta, para não dizer uma grande merda. Pensava eu na injustiça deste facto que é notório na nossa sociedade, o tal sapatinho sujo de que fala o Mia Couto, mas no qual acredito piamente, o de pensarmos que só os trolhas, os arrogantes e as más pessoas é que ganham nesta vida, quais putas disfarçadas de donzelas inocentes a precisarem de protecção. Ora como a Tembua não é nada assim, precisa apenas de ser protegida da sogra quando joga o Sporting, fiquei a matutar que talvez pudesse fazer uma daquelas acções tipo Paula, de ir à procura de empregos fixes para os amigos. A Paula é uma espécie de âncora dos amigos, podia perfeitamente trabalhar a arranjar emprego para o pessoal à comissão. Quando pode ajuda.
Como a Tembua já tinha falado com a Paula, segundo a Tricia (mulher é assim: comunica tudo, nem que seja por sinais de fumo!), eu pensei que o desespero era mais do que grande, era gigantesco, era catastrófico, era avassalador, tipo tsunami na vida da Tembua. Imaginava-a a apanhar (verbalmente, claro) do marido, da sogra, do pai, do irmão, de alguns amigos, e até dos avós: “ Ai que trocaste uma coisinha certa, que sabias que pagava a sopa, por uma porcaria que agora não te dá meia dúzia de trocos! “ . A esta altura a Tembua está a rir, porque ouviu mesmo isto de certeza. Eu por acaso é coisa que nunca ouvi, porque nunca tive emprego nenhum, só trabalho, portanto, ao longo dos anos, tenho-me sentido entre o sem-abrigo e o pedinte, com tempo livre mas sem direitos nenhuns. A minha avó passou uma fase belíssima (ironia) lá em casa em que me presenteava com comentários muito entusiasmantes, explicando que para uma mulher eu tinha tudo o que queria: um pai que me sustentava. Realmente, não sei porque é que almejei mais do que isso…
Resolvi que, mesmo estando o casamento da Lina à porta, podia enviar-lhe uns sites de empregos e dar-lhe o meu apoio, confessando, obviamente, que tinha apanhado a informação pela Tricia por mero acaso (para não dar uma de coscuvilheira). E dizer-lhe que, mesmo quando trocamos o «certinho» pelo «caos» às vezes estamos no caminho certo, e quem são os outros para dizer que não é assim…No outro dia de manhã era a gaffe. A Tembua telefona, enquanto eu deambulava por Lisboa, a rir-se e a dizer que estava tudo bem, ganhava mal mas não era grave, tinha as turmas, sim senhor. Portanto, eu tinha apanhado mensagem deturpada e dramatizado ao mais alto nível. Ainda bem! Porque sinceramente não me agradava nada que a minha teoria do caos falhasse agora, logo com a Tembua.
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