O cepticismo
O que separa a minha antiga percepção do mundo da de agora é uma coisa bastante simples: o cepticismo. Eu dantes acreditava que era céptica, mas não era, e hoje sou mesmo, em todo o seu esplendor. Simplesmente não acredito. Não acredito em Deus, em milagres, na Virgem Maria, na Bíblia, nos políticos, nas pessoas em geral. Estamos todos tão conformados na desgraça, na tristeza, na conquista de dinheiro que nos permita tirar férias e comprar uma casa nova, que não percebemos isso mesmo: que nos tornámos estúpidos. E cépticos. Acho que uma criança liberta muito, no sentido em que nos ensina como era o mundo antes de sermos estúpidos. Para além disso, uma criança desafia, o que eu acho fantástico, significa que nascemos com esse espírito aventureiro e destemido, mas que depois, com a estupidez, perdê-mo-lo pura e simplesmente, sem dó nem piedade.
Não gosto muito de me vitimizar, mas acho que, em alguns aspectos da minha vida, sou muito azarada, mais do que o comum das pessoas. E acho que é porque sou muito céptica, ou então o contrário, porque sou azarada tornei-me céptica – no meu caso, claro, porque há azarados muito optimistas. Não sou nada optimista. E não me refiro à poluição, à guerra mundial, ao desemprego, à política, ao consumismo desenfreado ou à obesidade. Refiro-me mesmo ao ser humano, ao interior, ao que somos, como pessoas, e como nos mostramos. Há muitos anos que para mim sentir alegria é raro. É raro e quando sinto alegria fico com a sensação de que me estou a trair desenfreadamente, porque nunca estou alegre e, se procurar bem, não há muitos motivos, e os que há são destronados pelas peças cruéis do jogo em volta.
Não posso dizer que tenha recuperado da morte da minha mãe. Poderei vir a recuperar. Mas hoje não recuperei, essencialmente porque poderia ter aprendido muito mais e melhor, nomeadamente a desacreditar as pessoas de princípio, a não acreditar nelas. Só que a esperança faz parte da humanidade e do ser humano, e cá dentro sempre houve essa semente plantada. Podem dizer-me que estou a ser cruel em não acreditar em quase nada, mas um dia uma amiga minha disse-me «Acreditas em ti própria e já não é nada mau». Muitas vezes também não acredito. Acho que as pessoas têm muita tendência para abusar de mim e sei-me culpada, porque realmente os outros só vão até onde deixamos. Por muito que eu esperneie e responda mal (se é que faço isso a tempo e horas) eles continuam com um sorriso a olhar para mim, como se eu fosse louca e devesse levar um tiro na cabeça pela minha loucura. Ser bem educado saiu de moda há muito tempo e eu nem dei conta…
Um dia entrei numa casa pior do que aquela em que sempre vivi e vi isso: ali, ser mal educado é que é bom, é que conta. Pode não ser correcto, mas é o que funciona para não haver problemas: a agressividade. Por isso, para mim, que sempre acreditei que um ambiente harmonioso exige discussão mas não agressividade, «aquilo» é o meu oposto, e com opostos não se brinca, bane-se mesmo da vida. Lentamente, vou aprender a banir o que não me interessa e a ficar calada porque nada tenho para dizer. Também acabo por dar graças pelo facto de as pessoas na minha família não serem assim tão azedas e cruéis e, uma vez que são minha família, ter a liberdade total para as mandar calar, desligar o telefone na cara, dizer coisas à bruta, dar-lhes safanões, afastar-me, não me ligarem nenhuma e vice-versa, bater com as portas, ralhar com as insistências supérfluas em coisas ridículas, desfazer idealismos com uma só palavra, não ouvir queixinhas e berrar logo, em suma, ser fria. Este género aparente de «violência» é preciso, é necessário quando as pessoas nos dominam e estrafegam. Mas se as pessoas que o fizerem não forem da nossa família, a porra está toda aí: não podemos fazer o mesmo, ou melhor podemos, mas somos obrigados a pesar os prós e os contras. E é uma pena. Porque é o que apetece. Ignorar não chega. Apetece espezinhar como nos espezinham a nós, com a mesmo falta de elegância e de doçura, com a mesma crueza e até burrice, porque como eu digo sempre, um arrogante é alguém fraco que não se sabe defender, mas, do meu ponto de vista, é uma pessoa sem desculpa, visto que todos sofremos – e às vezes mais do que aparentamos – e não somos todos assim.
Quantas pessoas que andam todos os dias nos transportes não perderam os pais, os filhos, os irmãos, a casa, o dinheiro, se calhar mais do que uma vez? E não andam por aí a ver se estrangulam as pessoas…a diferença entre um bom e um mau ser humano está aí: na transformação a que estamos dispostos – ou não – a fazer dentro de nós. Estão a ver o meu cepticismo? Não ando por aí a ver pessoas disposta a evoluir muito. A evolução das pessoas passa muito pelo dinheiro, pelo domínio do outro, pela manipulação, pelo facilitismo. Desculpem a sinceridade, mas isso não tem desculpa. Não tem. Palavra.
A história do perdão e da condescendência é importante, mas tem limites, como todas as histórias. Não somos sacos do lixo dos outros, nem sacos de pancada. Se as pessoas querem gastar energia, então arranjem um desporto ou uma actividade desgastante qualquer. Mas não chateiem com coisas mesquinhas, com obsessões e possessões estranhas, com o intuito de assumir o comando da vida dos outros. Eu não faço isso, e quem me dera que algumas pessoas abrissem um olhinho só para ver o que eu vejo. Todavia, não ando por aí a gritar aos sete cantos que «eu é que sei o que é bom para os outros», porque sou esperta e sei que não vale a pena. Se um gajo gosta de uma namorada pérfida com cara de boa pessoa (para ele!), paciência, é deixá-la levá-lo nesse percurso sinuoso chamado «dependência». Uns dependem do álcool, outras da droga, e outros…de pessoas. Juro que vai dar ao mesmo, são os psicólogos que dizem. Uma pessoa que diz que outra faz dela uma pessoa de verdade que nunca foi é um doente. É como uma pessoa que se encharca em vinho dizer que não é bêbeda e sabe-se controlar muito bem quando bebe. Ó amigos, vão mentir para outro lado…
Pior do que tudo isto: porque é que a merda do dinheiro tem sempre tanta importância para estas pessoas, mas nunca fazem nada de jeito com ele sem ser tentar comprar os outros sem dó nem piedade?
O que faz as boas relações entre os seres humanos é uma coisa chamada reconhecimento. Reconhecermo-nos no outro é sabermos que, numa situação em que sejamos postos à prova nos nossos valores profundos, a resposta será a mesma: a honestidade e a verdade ou a desonestidade e a mentira. Há linhas cinzentas, caminhos menos directos, mas o geral vai dar ao mesmo. O que tenho visto é que comigo identificam-se as pessoas que dão as mesmas respostas que eu às questões mais complexas e também às mais simples. O que significa que há pessoas que preferia mil vezes não encontrar no meu caminho, mas que, por ordem cósmica (ou kármica) elas estão ali, muitas vezes para desajudar, outras vezes para nos ajudar a chegar à nossa lição de aprendizagem. Em relação às lições de aprendizagem, não sou tão céptica assim. Acho que um dia vou aprendê-las. Mas em relação às pessoas, predomina o meu cepticismo, puro e duro. Que lição pode aprender quem nunca quis aprender?
1 Comments:
Li algures: "não acuses o mundo pois ele não é senão o reflexo de ti próprio. O que tu és, o mundo é-o também." A princípio, é uma ideia que choca. Porém, se formos aprofundando as reflexões, acabamos por compreender o que é que isto quer dizer. E o que diz é muito importante.
Post a Comment
<< Home