Sunday, July 08, 2007



O meu gabinete

Trabalho num gabinete fechado e pequeno, sozinha: é quente, escaldante, arde em brasa no Verão. É gelado no Inverno. No Inverno trago mais um agasalho (tal como o meu colega do lado, que sendo muito menos friorento, também se queixa). No Verão trago uma ventoinha, enquanto destilo com 45º à sombra. Mas adoro. Adoro o meu gabinete desarrumado, estupidamente frio no Inverno e estupidamente quente no Verão, cheio de papéis desarrumados, dossiers espalhados pelo chão. Aqui lancho, falo sozinha, vou comprar revistas que às vezes leio à hora de almoço, telefono a quem gosto e vou de vez em quando ao messenger desabafar.
Este gabinete é um empréstimo. Para o ano, por esta altura, volta a estar vazio, ou melhor, eu não estou cá, mas outras pessoas estarão, com outras teses, outros trabalhos, outros destinos ou simplesmente a fumar um cigarro.
Naturalmente que para eu dizer que este gabinete é porreiro é porque já estive em sítios muito piores, que me deram água pela barba. Todos os sítios que, de início, me parecem impecáveis, são, normalmente, uma grande porcaria. Já tive num sítio lado a lado com a minha casa e não passava de uma cave onde se davam aulas barulhentas. Nunca tive tanto sono e tanta vontade de voltar para casa como quando trabalhei aí. Já estava naquela fase pela qual os professores passam, mais tarde ou mais cedo, sobretudo se tiverem alunos crianças: chegamos a odiá-los pelo simples facto de respirarem tanta burrice, tanta palermice. Perguntamos mesmo porque é que eles não são como no «nosso» tempo, no tempo em que quem nos dava explicações eram os pais e à tarde podíamos ir brincar. Agora há os ditos «centros de explicações», que são pau para toda a obra e se destinam, em primeiro lugar, a sacar dinheiro aos pais e a dividi-lo bem mal dividido entre donos de centros de explicações e professores semi-desempregados (ou totalmente desempregados).
Concorri a tantos centros de explicações, centros de formação, escolas de todo o género, que cheguei à conclusão inequívoca que ou o meu currículo não lhes agradava ou nem o viam sequer. Nos centros de explicações eu conheci o verdadeiro significado da palavra «exploração». Não por trabalhar muitas horas, raramente trabalhei mais de quatro horas seguidas, mas por serem horas péssimas, mal pagas, com más condições, sentada lado a lado com professores de ciências e de matemática; enquanto dava Gil Vicente ouvia equações e fórmulas, enquanto dava figuras de estilo ouvia o aparelho digestivo, enquanto dava Camões e Pessoa ouvia palavrões dos miúdos. E claro que não gostava. Não era só criancice dos miúdos, era criancice dos adultos donos de centros de explicações, que queriam encher o saco à conta desta palerma, que dava 5º ano como dava 8º ou 12º anos. No máximo, eu fazia ali sessenta contos. Raramente ultrapassei essa fasquia, excepto quando havia exames. 300 euros. Para fazer mais do que isso, arranjei alunos fora dali, portanto dali saía para Lisboa ou vinha de Lisboa para ali, ou Linda-a-Velha. Ao final do dia, eu não via nada (e não me refiro à miopia)… Cheguei também a fazer Oeiras-Malveira da Serra noutro centro de explicações para esquecer, onde trabalhei numa vivenda pequena, com três salas mínimas e outra no sótão. Ali cheguei a ser paga de seis em seis meses.
Um dia meti na minha cabeça uma evidência que não é assim tão óbvia: qualquer coisa era melhor do que «aquilo». Quando estamos chateados, zangados, lixados com a vida pensamos assim mesmo. Quando surgiu a oportunidade desisti, e confesso que, se soubesse o que sei hoje, teria desistido muito antes, porque o target de aguentar tudo de todas as maneiras valeu-me um estado de espírito depressivo e um estado físico dilacerado. Não queria mais ver alunos, pais de alunos, outros professores, como eu, piores do que eu, melhores do que eu ou…advogados e engenheiros que também eram «professores» para ganhar uns trocos.
A minha transição profissional para este gabinete não foi simples e muito menos rápida do que eu esperava. O simples facto de receber dinheiro sempre no mesmo dia do mês (coisa habitual para a grande maioria das pessoas) outra vez, como no ano em que estagiei, causou-me espanto…
Sempre achei, perante as pessoas que conheço, que não tinha grande capacidade de sobrevivência. Quer dizer, nunca fui de aceitar qualquer trabalho e talvez isso me tenha estupidificado na célebre arte do «desenrascanço». Mimada, achava que só sabia dar aulas e pronto. Depois conheci as minhas colegas/amigas de mestrado e vi uma realidade muito diferente: desde cedo todas tinham trabalhado para pagar o curso, aceitavam o que calhava e estavam ali a fazer mestrado ao mesmo tempo que trabalhavam noutras coisas completamente diferentes.
Na realidade, há muitas coisas que nos parecem improváveis que, se tentarmos e formos teimosos, até conseguimos alcançar. Demora mais, exige mais treino, esforço, capacidade de sobrevivência e, acima de tudo, vontade. Vontade de ir até às coisas, mas também paciência para esperar por elas.
Hoje não penso muito em como seria a minha vida se desse aulas. Prefiro não pensar, dado os exemplos dos meus colegas professores. Seria difícil gostar mais disso do que deste pequeno e sujo gabinete. É o meu. Pelo menos até ver.

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