A minha mãe e eu
O meu amigo Paulinho escreveu um post lindo chamado «Louvor à mãe» (www.andmyman.blogspot.com). Suscitou-me uma resposta. Fez-me pensar seriamente em diversas coisas da minha vida, da minha relação com a minha mãe e de como Freud tinha razão: a relação com a mãe é estruturante da vida, da psique, das relações humanas.
Ultimamente, a minha mãe tem-me feito uma falta danada. Uma falta tão grande, tão profunda, tão inexplicável, que se eu a visse não parava de chorar nunca mais e enchia os vales secos com lágrimas (hipérbole, eu sei, mas merecida). Tão chato perder a mãe cedo – mas a mãe perde-se sempre cedo de mais, foi o que sempre ouvi. Creio que quem a perde mesmo muito cedo, nunca mais sabe bem para onde ir. Conheço casos desses. Sem a mãe, somos seres humanos perdidos, com pouca ou nenhuma biografia. São as mães que tradicionalmente sabem as coisas todas: onde fomos feitos, como fomos feitos e com que objectivo. Pai não se lembra disso e se se lembrar não diz. A minha mãe dizia-me sempre que eu tinha nascido numa fase boa da vida dela, para acalmar o meu irmão, que até aí era filho único. Será que resultou?
A minha mãe faz-me falta em dias de sol e em dias de chuva. Em dias de luz e em dias de trevas. Faz-me simplesmente falta. Durante uns anos vivi em casa depois da morte dela e a presença dela era forte, muitas vezes, era intensa, outras vezes apagava-se. Agora não vivo em casa, e quando lá vou não gosto. Parece uma casa morta, sem energia a fluir.
Como descrever a minha mãe? Aparentava uma masmorra. Era alta, grande, forte, robusta como uma árvore. Por dentro era um baralho de cartas desfeito, rasgado e dilacerado pela falta de auto-estima. Não sei que caminho deveria ter seguido a minha mãe. Não sei dizer. Não me posso outorgar sequer o direito de dizer o que ela deveria ou não ter feito. Não me posso culpabilizar de não a ter ajudado mais cedo. Lembro-me de intuir com força que alguma coisa se passava com ela e de lhe dizer «queres ir ao médico?» e de ela me responder «claro que não. Não adianta nada.» Quando estamos mortos por dentro, ir ao médico não adianta nada. É preciso amor à vida para nos tratarmos. É até preciso amor à vida para saber que estamos doentes. Outro dia ela disse-me «tenho dores no peito» e eu disse-lhe «queres ir ao médico?» e ela respondeu «claro que não. Não adianta nada.». Depois disso esqueci-me de que ela podia estar doente até ela me dizer, grave, séria e a chorar, entre roupa passada a ferro e músicas da Sade e do George Michael, ao som da quais eu estudava: «Tenho um problema num peito, um quisto e agora vou-me tratar. Contar isto era o mais difícil, mas agora já está». Depois disso, eu chorei até me doer a alma. Lembro-me de ter caído na banheira de tanto chorar. Só voltei a chorar por ela dias depois de ela morrer. Depois disso, a vida nunca mais foi a mesma, e naquilo que a vida tem de comum com o antes, que são os meus amigos e a minha família, a vida é boa. Naquilo que a vida é diferente, a vida dói como se a minha mãe tivesse morrido ontem. Porque ela me faz falta. Muita falta.
Numa situação como aquela que vivo, a minha mãe desenvencilhava-se. Já tinha batido nos meus sogros, com toda a certeza, como muitas vezes quase bateu na minha avó, no meu avô, no meu pai, no meu irmão ou quando me deu uma palmada forte no rabo quando eu era menina ou me criticou na faculdade por eu ter saído até às tantas sem avisar ou ter comprado uma camisola cara. Digamos que ela era a força que arrastava tudo, mas era um obstáculo para ela mesma. Com o braço direito dela bateu nos filhos e quase nos sogros, passou a ferro, lavou roupa, fez bolos no Natal, trouxe papelada para casa para centenas de pessoas receberem as suas reformas a tempo e horas, e quando já não tinha forças para fazer isso com o braço direito fez com o esquerdo, retomando tarefa por tarefa tudo o que tinha para fazer enquanto morria devagar.
A minha mãe tinha força. Uma força desmesurada que a irritava e a consumia, mas que era capaz de aguentar tudo à volta. Era a chapada que os desaforados arrogantes mereciam. Era o estalo na hora «H». Era o braço forte de toda a gente. No final da vida, ela disse-me que gostava muito disso, era esse o papel dela: fazer tudo pelos outros. Não viver para ela. Esquecer-se um bocado dela. Disse-lhe que eu era muito estúpida porque não tinha aprendido a fazer nada a tempo e horas. E ela disse que não era assim, que gostava muito de mim.
A vida andou. Até hoje ainda não percebi para onde, em que sentido ou aquilo que aprendi verdadeiramente com a minha mãe e com a morte dela. É como se fosse um eterno retorno e eu revivesse as situações vezes sem conta, a mesma angústia, o mesmo ódio, a mesma fenda profunda cá dentro, que as piores pessoas vêem e onde querem meter a pata. A carapaça que eu tanto sonhava ter está-me a custar conseguir. Talvez seja um treino para aquilo que ainda vou ser um dia. Talvez isto não seja nada senão sofrimento e tortura. Talvez eu esteja a recusar os papéis que me dão. Não sei. Sei que a presença dela me dava muito jeito, que o braço dela me faz muita falta e que a sensação de andar de avião, ficar sem apoio debaixo dos pés é muito semelhante à de a ver morrer, é ser obrigada a largar o que não quero, o que eu outrora achei seguro e largar-me aos espinhos do mundo.
O meu amigo Paulinho escreveu um post lindo chamado «Louvor à mãe» (www.andmyman.blogspot.com). Suscitou-me uma resposta. Fez-me pensar seriamente em diversas coisas da minha vida, da minha relação com a minha mãe e de como Freud tinha razão: a relação com a mãe é estruturante da vida, da psique, das relações humanas.
Ultimamente, a minha mãe tem-me feito uma falta danada. Uma falta tão grande, tão profunda, tão inexplicável, que se eu a visse não parava de chorar nunca mais e enchia os vales secos com lágrimas (hipérbole, eu sei, mas merecida). Tão chato perder a mãe cedo – mas a mãe perde-se sempre cedo de mais, foi o que sempre ouvi. Creio que quem a perde mesmo muito cedo, nunca mais sabe bem para onde ir. Conheço casos desses. Sem a mãe, somos seres humanos perdidos, com pouca ou nenhuma biografia. São as mães que tradicionalmente sabem as coisas todas: onde fomos feitos, como fomos feitos e com que objectivo. Pai não se lembra disso e se se lembrar não diz. A minha mãe dizia-me sempre que eu tinha nascido numa fase boa da vida dela, para acalmar o meu irmão, que até aí era filho único. Será que resultou?
A minha mãe faz-me falta em dias de sol e em dias de chuva. Em dias de luz e em dias de trevas. Faz-me simplesmente falta. Durante uns anos vivi em casa depois da morte dela e a presença dela era forte, muitas vezes, era intensa, outras vezes apagava-se. Agora não vivo em casa, e quando lá vou não gosto. Parece uma casa morta, sem energia a fluir.
Como descrever a minha mãe? Aparentava uma masmorra. Era alta, grande, forte, robusta como uma árvore. Por dentro era um baralho de cartas desfeito, rasgado e dilacerado pela falta de auto-estima. Não sei que caminho deveria ter seguido a minha mãe. Não sei dizer. Não me posso outorgar sequer o direito de dizer o que ela deveria ou não ter feito. Não me posso culpabilizar de não a ter ajudado mais cedo. Lembro-me de intuir com força que alguma coisa se passava com ela e de lhe dizer «queres ir ao médico?» e de ela me responder «claro que não. Não adianta nada.» Quando estamos mortos por dentro, ir ao médico não adianta nada. É preciso amor à vida para nos tratarmos. É até preciso amor à vida para saber que estamos doentes. Outro dia ela disse-me «tenho dores no peito» e eu disse-lhe «queres ir ao médico?» e ela respondeu «claro que não. Não adianta nada.». Depois disso esqueci-me de que ela podia estar doente até ela me dizer, grave, séria e a chorar, entre roupa passada a ferro e músicas da Sade e do George Michael, ao som da quais eu estudava: «Tenho um problema num peito, um quisto e agora vou-me tratar. Contar isto era o mais difícil, mas agora já está». Depois disso, eu chorei até me doer a alma. Lembro-me de ter caído na banheira de tanto chorar. Só voltei a chorar por ela dias depois de ela morrer. Depois disso, a vida nunca mais foi a mesma, e naquilo que a vida tem de comum com o antes, que são os meus amigos e a minha família, a vida é boa. Naquilo que a vida é diferente, a vida dói como se a minha mãe tivesse morrido ontem. Porque ela me faz falta. Muita falta.
Numa situação como aquela que vivo, a minha mãe desenvencilhava-se. Já tinha batido nos meus sogros, com toda a certeza, como muitas vezes quase bateu na minha avó, no meu avô, no meu pai, no meu irmão ou quando me deu uma palmada forte no rabo quando eu era menina ou me criticou na faculdade por eu ter saído até às tantas sem avisar ou ter comprado uma camisola cara. Digamos que ela era a força que arrastava tudo, mas era um obstáculo para ela mesma. Com o braço direito dela bateu nos filhos e quase nos sogros, passou a ferro, lavou roupa, fez bolos no Natal, trouxe papelada para casa para centenas de pessoas receberem as suas reformas a tempo e horas, e quando já não tinha forças para fazer isso com o braço direito fez com o esquerdo, retomando tarefa por tarefa tudo o que tinha para fazer enquanto morria devagar.
A minha mãe tinha força. Uma força desmesurada que a irritava e a consumia, mas que era capaz de aguentar tudo à volta. Era a chapada que os desaforados arrogantes mereciam. Era o estalo na hora «H». Era o braço forte de toda a gente. No final da vida, ela disse-me que gostava muito disso, era esse o papel dela: fazer tudo pelos outros. Não viver para ela. Esquecer-se um bocado dela. Disse-lhe que eu era muito estúpida porque não tinha aprendido a fazer nada a tempo e horas. E ela disse que não era assim, que gostava muito de mim.
A vida andou. Até hoje ainda não percebi para onde, em que sentido ou aquilo que aprendi verdadeiramente com a minha mãe e com a morte dela. É como se fosse um eterno retorno e eu revivesse as situações vezes sem conta, a mesma angústia, o mesmo ódio, a mesma fenda profunda cá dentro, que as piores pessoas vêem e onde querem meter a pata. A carapaça que eu tanto sonhava ter está-me a custar conseguir. Talvez seja um treino para aquilo que ainda vou ser um dia. Talvez isto não seja nada senão sofrimento e tortura. Talvez eu esteja a recusar os papéis que me dão. Não sei. Sei que a presença dela me dava muito jeito, que o braço dela me faz muita falta e que a sensação de andar de avião, ficar sem apoio debaixo dos pés é muito semelhante à de a ver morrer, é ser obrigada a largar o que não quero, o que eu outrora achei seguro e largar-me aos espinhos do mundo.
2 Comments:
Amiga, assim que voltar, comento como deve ser! Beijinhos!
A tua mãe ensinou-te o caminho e mostrou-te onde está a porta. Agora, é contigo. Pega nas memórias e faz delas uma arma para ganhares coragem para desbravares, por ti e para ti, o teu caminho. Tu sabes que tens essa força, só ainda não descobriste como fazê-la jorrar...
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