Feliciano
Na Faculdade existiam exemplos de sobrevivência que mais eram fósseis mal amanhados. Velhos desdentados, velhas poeirentas, gente de meia idade ou mesmo a cair para o lado, desde miúdos, dezoito para dezanove anos, que nos habituámos a ver aqueles espécimes todos. Uma que andava com uma muleta cheia de fitinhas era minha homónima: Fernanda, mas Fernanda-da-Muleta, para que nunca se confundisse comigo. Usava uma trança tão longa (e aparentemente sebenta) que ninguém sabia bem onde terminava. Nunca falei muito com ela, porque a senhora detinha um defeito que sempre detestei nas pessoas, sejam velhas ou novas: era graxista. Terrivelmente graxista, de tal modo que era capaz de chorar quando um professor aparecia no Jornal de Letras. Carregando o jornal na mão, enquanto coxeava, era costume dizer: «o professor está aqui e ficou muito bem na foto». Se isto não for graxa…
Havia outra a quem o Jorge chamava de «Esquilo», por causa de um corte de cabelo tão pouco moderno e um cabelo castanho tão ralo que parecia um esquilo. O Jorge geralmente entrava nas salas antes de as aulas começarem e trocava pastas e malas das velhas todas com um sorriso de satisfação. Quando as ditas velhas entravam na sala, ali estava o caos: onde se sentavam agora? Quais eram os seus lugares? O Jorge entrava então e lamentava aquela desarrumação, com um choradinho filho-da-puta ombro a ombro com elas todas. Isto até ter sido apanhado pelo «Esquilo», que furioso, melhor furiosa, o admoestou com um célebre «não se goza com as pessoas mais velhas». A partir daí o Jorge passou a gozar somente comigo, por ser míope, e com a Giana, por ser medrosa como só a Giana sabia ser (tal como eu, a Giana tinha medo das lésbicas, que naquela faculdade caíam do céu). Hoje em dia, o Jorge sabe que aprendeu com estas ditas senhoras mais do que aprenderá em toda a sua vida: sabe dar graxa, ser melífluo, parvinho, sabe repetir a última frase dos professores para lhes agradar e, no final do ano, recebe uma nota valente que, como diz a mãe dele «é dada por pena».
Havia mais espécimes terríveis. Um deles, a «Resistènce Française», chateava a Diana como mais ninguém conseguia e depois ainda vinha pedir desculpa. A Diana era a grande confidente dela, sabe-se lá porquê, de tal forma que a «Resistènce Française» (de nome Sílvia, o cognome fora dado graças à boina que usava, colocada de lado na cabeça) um dia lhe contou que «há muito tempo não tinha homem».
Todavia, ninguém, em todos estes anos, e provavelmente séculos passados, se comparou a essa figura desdentada e imparável: o Feliciano. A mim o nome lembrava-me o poeta ultra-romântico Feliciano de Castilho. Mas qual quê…O Feliciano sempre foi velho. Se ele algum dia tiver sacado de uma fotografia novo, alguém se deve ter rido, porque ele deve ter nascido velho e velho morrerá. Bem, morrer não é bem a especialidade dele. Todos têm uma história com o Feliciano, porque todos já o viram algures, a deambular pela cidade: no comboio, no metro, no Atrium Saldanha, na BN. Por muito engraçados que sejam os anões, o Feliciano suscita a veia cómica que existe em todos nós, porque nos coloca uma questão existencialmente válida: ele está mesmo vivo? Como? Ele fuma que nem um desgraçado, bebe café, esquece-se onde tem os livros, também não se lava, isso já quase todos demos conta. Segundo a Diana, ele dormia nas aulas e odiava ser acordado. Se fosse acordado, ralhava com o pessoal num francês perfeito. Segundo a Paula, ele enganava-se nas salas de aula e não via nada para o quadro (mas isso eu também não e o Jorge gritava que me dava uma palmada que me saltavam as lentes). Todos nos formámos há sete, oito anos ou mais. E o Feliciano foi colega de todos nós. E todos continuamos a ver o Feliciano. É um exemplo de longevidade ou quiçá de como o cérebro, quando é estimulado, também conserva o corpo. Nem sei bem…que histórias se escondem por detrás deste homem? Tanto que eu gostaria de o entrevistar, visto que é uma preciosidade genuína da Faculdade de Letras.
Na Faculdade existiam exemplos de sobrevivência que mais eram fósseis mal amanhados. Velhos desdentados, velhas poeirentas, gente de meia idade ou mesmo a cair para o lado, desde miúdos, dezoito para dezanove anos, que nos habituámos a ver aqueles espécimes todos. Uma que andava com uma muleta cheia de fitinhas era minha homónima: Fernanda, mas Fernanda-da-Muleta, para que nunca se confundisse comigo. Usava uma trança tão longa (e aparentemente sebenta) que ninguém sabia bem onde terminava. Nunca falei muito com ela, porque a senhora detinha um defeito que sempre detestei nas pessoas, sejam velhas ou novas: era graxista. Terrivelmente graxista, de tal modo que era capaz de chorar quando um professor aparecia no Jornal de Letras. Carregando o jornal na mão, enquanto coxeava, era costume dizer: «o professor está aqui e ficou muito bem na foto». Se isto não for graxa…
Havia outra a quem o Jorge chamava de «Esquilo», por causa de um corte de cabelo tão pouco moderno e um cabelo castanho tão ralo que parecia um esquilo. O Jorge geralmente entrava nas salas antes de as aulas começarem e trocava pastas e malas das velhas todas com um sorriso de satisfação. Quando as ditas velhas entravam na sala, ali estava o caos: onde se sentavam agora? Quais eram os seus lugares? O Jorge entrava então e lamentava aquela desarrumação, com um choradinho filho-da-puta ombro a ombro com elas todas. Isto até ter sido apanhado pelo «Esquilo», que furioso, melhor furiosa, o admoestou com um célebre «não se goza com as pessoas mais velhas». A partir daí o Jorge passou a gozar somente comigo, por ser míope, e com a Giana, por ser medrosa como só a Giana sabia ser (tal como eu, a Giana tinha medo das lésbicas, que naquela faculdade caíam do céu). Hoje em dia, o Jorge sabe que aprendeu com estas ditas senhoras mais do que aprenderá em toda a sua vida: sabe dar graxa, ser melífluo, parvinho, sabe repetir a última frase dos professores para lhes agradar e, no final do ano, recebe uma nota valente que, como diz a mãe dele «é dada por pena».
Havia mais espécimes terríveis. Um deles, a «Resistènce Française», chateava a Diana como mais ninguém conseguia e depois ainda vinha pedir desculpa. A Diana era a grande confidente dela, sabe-se lá porquê, de tal forma que a «Resistènce Française» (de nome Sílvia, o cognome fora dado graças à boina que usava, colocada de lado na cabeça) um dia lhe contou que «há muito tempo não tinha homem».
Todavia, ninguém, em todos estes anos, e provavelmente séculos passados, se comparou a essa figura desdentada e imparável: o Feliciano. A mim o nome lembrava-me o poeta ultra-romântico Feliciano de Castilho. Mas qual quê…O Feliciano sempre foi velho. Se ele algum dia tiver sacado de uma fotografia novo, alguém se deve ter rido, porque ele deve ter nascido velho e velho morrerá. Bem, morrer não é bem a especialidade dele. Todos têm uma história com o Feliciano, porque todos já o viram algures, a deambular pela cidade: no comboio, no metro, no Atrium Saldanha, na BN. Por muito engraçados que sejam os anões, o Feliciano suscita a veia cómica que existe em todos nós, porque nos coloca uma questão existencialmente válida: ele está mesmo vivo? Como? Ele fuma que nem um desgraçado, bebe café, esquece-se onde tem os livros, também não se lava, isso já quase todos demos conta. Segundo a Diana, ele dormia nas aulas e odiava ser acordado. Se fosse acordado, ralhava com o pessoal num francês perfeito. Segundo a Paula, ele enganava-se nas salas de aula e não via nada para o quadro (mas isso eu também não e o Jorge gritava que me dava uma palmada que me saltavam as lentes). Todos nos formámos há sete, oito anos ou mais. E o Feliciano foi colega de todos nós. E todos continuamos a ver o Feliciano. É um exemplo de longevidade ou quiçá de como o cérebro, quando é estimulado, também conserva o corpo. Nem sei bem…que histórias se escondem por detrás deste homem? Tanto que eu gostaria de o entrevistar, visto que é uma preciosidade genuína da Faculdade de Letras.
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