Wednesday, October 03, 2007

Um Anjo à Minha Mesa

Há muitos anos, não me lembro quantos, o Paulinho Mongo emprestou-me um dos filmes da minha vida, uma daquelas pérolas cinematográficas que não esquecemos nunca mais. Chamava-se «Um Anjo à Minha Mesa», filme de Jane Campion (1992), baseado na autobiografia da escritora neozelandeza Janet Frame. Fiquei estupefacta. Nunca tinha visto um filme que tanto apelasse à sensibilidade humana, ao mesmo tempo retratando os antípodas: a crueldade dos diagnósticos psiquiátricos feitos à toa, num tempo em que qualquer doença mental dava direito a uma lobotomia (ainda falam da Idade Média). Essa foi a história de Janet Frame, escritora premiada e prova viva de como a criação salva o mundo, recriando-o, sistematizando-o e pode salvar mesmo a própria vida (o prémio arrecadado pela autora aos 28 anos, com a obra Os Cárpatos do Nosso Jardim salvou-a da maldita lobotomia).
Jane caracteriza a personagem de Janet no filme de uma forma magistral: tímida, gorducha, esquisita, anti-social, todavia, brilhante, criativa. Portanto, uma pessoa sensível, pobre, com uma vida difícil, que não suporta olhares nem avaliações externas, por isso mesmo passa de professora primária a empregada de limpeza quando um dia está sob o olhar de um júri e…é incapaz de soltar um esgar que seja, fugindo da sala de aulas.
Este filme acompanhou a minha vida, sobretudo o meu ano de estágio (creio que o Paulo mo emprestou um ano antes, portanto em 1999), com todas as avaliações subjacentes. Senti-me sempre uma pessoa de sorte por ter nascido em 1977 (e não em 1924, como a autora), ter avós e pais a protegerem-me, algum dinheiro para viver nos arredores de uma cidade chamada Lisboa. Tive mais sorte na vida do que Janet Frame, mas muito menos talento do que ela. Achava que a minha vida tinha sido solitária até ver aquele filme e me aperceber do quão enganada estava. Ninguém no filme está do lado de Janet excepto o seu próprio talento criativo. Ali é tudo. Ali basta. O talento é o anjo à mesa de Janet, o seu anjo da guarda, sem ele ficava lobotomizada, desfigurada, desconhecida e passaria na história como mais uma ruiva gorducha que morreu louca num hospício.
Janet tem comportamentos auto-destrutivos que eu nunca me lembraria de ter: empanturra-se de chocolates, arranca os próprios dentes. A dor de se mutilar e odiar acompanha-a ao longo da vida e transforma-se em relações estéreis, timidez obsessiva. Se me tivesse lembrado deste filme antes de me casar com o Pedro, tê-lo-ia compreendido muito melhor como pessoa. Aqui se vê a importância do Paulinho Mongo na minha vida, em me emprestar filmes destes. Eu é que tenho memória curta. É o mal de muita gente.
Em parte também eu sou parecida com Janet Frame, como o Pedro. Em última instância, como diz o Pedro, somos parecidos um com o outro e por isso é que casámos. É o poder do amor e da criação que nos salva da loucura, e já não é da loucura do mundo, mas daquela que nos rodeia de perto. Se eu tivesse nascido em 1924 certamente já estaria lobotomizada com tanta sensibilidade exarcebada a comentários tristes. Diagnóstico da Janet: esquizofrenia. O meu: paranóia ou psicose paranóide. O que há de comum? Nem eu nem ela somos loucas, apenas sensíveis. Quando Janet sai do último hospital psiquiátrico, um dos médicos diz-lhe (a ela ou à irmã, não me lembro bem): “ Afinal não tem esquizofrenia, é apenas sensibilidade a mais “. Olha que bom… A mim dificilmente quem me chamou paranóide irá um dia chegar ao pé de mim e dizer «afinal enganei-me, és só sensível a coisas que eu não sou». Além disso, eu posso mesmo fingir que sou paranóide, ninguém me interna e é capaz de dar jeito no contexto presente.
Há muitas doenças mentais por diagnosticar e outras tantas diagnosticadas que as pessoas não tratam. Mas eu tenho-me lembrado daquele fulano dos Doze Contos Peregrinos do Gabriel Garcia Marquez que fica entalado num hospital psiquiátrico a dizer que quer telefonar e a quem diagnosticam também uma «psicose paranóide» (é cá dos meus), todavia aquilo tem um contexto que justifica essa obsessão, o tipo é normal mas acaba por enlouquecer com tantos dedos que o apontam como louco.
Que sorte eu viver em 2007! Se fosse há uns séculos atrás estava já na fogueira por causa de um boato maldoso e se fosse em 1924 tinha o mesmo fim da Janet Frame. Em 2007 ser louco é uma brincadeira…uma brincadeira de mau gosto. Uma paranóia é uma «psicose de delírio crónico, lúcido e sistemático dotado de uma lógica interna própria» (cito a wikipédia, não é grande fonte mas estava aqui à mão de semear). Diferentemente da esquizofrenia paranóide, não afecta as funções psíquicas externas (portanto eu devo ter a psicose, visto que aqui no trabalho ninguém dá conta de nada e até consigo dar aulas sem se notar). O delírio é amplo e pode estender-se tipo complô, ou como se diz hoje em dia de forma culta, uma «cabala» prejudicial ao sujeito. O sujeito (portanto eu) assume assim «atitudes de defesa e vingança inadequadas e graves, conduzindo a graves defeitos pessoais e sociais». Mais vocábulos fazem parte das definições desta doença, entre eles perseguição, ciúme e megalomania, de que eu obviamente sofro, veja-se o tamanho deste blogue e as suas pretensões dantescas.
Não posso expor no blogue os quês e os porquês todos de ter sido assim «classificada», nem me interessa. Só acho os termos tão subjectivos que só um psiquiatra saberá do que se está a falar ou…estaremos a falar de todos nós num ou noutro momento da vida, quando trabalhámos «naquele sítio» que não gostámos, com pessoas que nada nos diziam nem tinham conversas de jeito e pareciam olhar para nós de lado. De resto, só conheci uma paranóide na vida, a Primitiva, colega da Universidade que, sempre que se brincava com ela gritava «Não roubei o lugar a ninguém!», de olhos bem abertos e esbugalhados. Gosto especialmente da parte dos graves defeitos pessoais e sociais, que, a serem doença psiquiátrica, já não dependem de quem vê e aprecia ou de um odiozinho de estimação, são assim para toda a gente. Digamos, a típica pessoa agressiva e odiosa que se dá mal como tudo e com todos, que não aguenta um emprego mais de dois meses que está a andar à pancada e ser despedido e depois diz «é um complô contra mim!». Deve ser isto que eu tenho, mas é assintomático, ou então é uma espécie de histeria colectiva, os meus amigos sabem que sou assim e nunca me disseram nada com medo da vingança temerosa deste ser tenebroso. Aqui na Universidade o sr. João diz «bom dia, doutora» com medo de levar um tiro e claro que arranjo muitos conflitos com toda a gente, passo à frente nas filas, sigo as pessoas, atiro laranjas podres a vidros, faço telefonemas anónimos…
Provar a minha suposta normalidade seria tão inútil como a Janet Frame provar que não era esquizofrénica nem precisava de choques eléctricos. Fizeram-lhe à mesma o diagnóstico e condenaram-na a duras provações que só lhe aguçaram a escrita. Quem dera que eu seja assim tão rija e que a minha escrita me transcenda. De tudo o que já me aconteceu na vida, só concluo que tenho mais ainda a aprender. Não tem sido fácil esta caminhada longa, aflita e com milhares de risos e de anedotas pelo meio. Nos intervalos estou, evidentemente, muito triste, mas isso é porque sou humana e não consigo evitar. Também não evito «classificar» os outros de forma aguçada, como me fazem a mim, mas nunca numa onda psiquiátrica, há palavras com contexto próprio cujo significado depende em muito da patologia em causa.
Muitos escritores, criadores, artistas têm doenças mentais do mais variado estilo e isso não lhes diminui o talento ou a humanidade. A bem ou a mal, não é mesmo o meu caso. Em 2001 entrei pela primeira vez num gabinete de um psiquiatra, depois no de um psicólogo e o diagnóstico foi demasiado positivo para eu me achar «louca». Sempre me disseram que era sensível e inteligente. Nunca ouvi a palavra «psicose», «neurose» ou outra qualquer maleita psiquiátrica associada à minha pessoa. Cheguei a ouvir «stress pós-traumático» depois da morte da minha mãe ou a palavra «depressão», mas também ouvi «está curada» por diversas vezes. Acho-me demasiado honesta comigo própria para, no caso de ser doente mental, não assumir. Dizem no entanto que os loucos nunca se acham loucos, por isso nunca se sabe.
O caminho nunca acaba e jogar à defesa é essencial. Digo sempre que daqui para a frente é isso que se passará, mas claro que todos os dias erro e tento corrigir. A postura é a da distância do que não interessa e a proximidade do essencial da vida. Tentar provar a minha sanidade mental parece-me um absurdo difícil de conseguir, mas a minha loucura tem acalmado ânimos, que assim suspiram e fazem o controlo dos valores tomados como «certos» (que são, afinal, os únicos possíveis no contexto em causa). É como queimar bruxas na fogueira: fica o mundo isento de pecado. Quer as bruxas o sejam ou não. Pouco interessa para o caso, parece-me, e além disso eu tenho muitos anjos à minha mesa, por isso nada me derrota.

2 Comments:

At 2:06 AM, Blogger paulo said...

Amiga, já te escrevi uma espécie de resposta a este texto (é o que dá ter a quinta-feira livre para ficar em casa a cuscar o que a malta escreve).
Está aqui. Beijinhos e todo o meu apoio!

 
At 5:47 AM, Blogger Márcia de Assis said...

Belo e profuno. Ou belo porque profundo? De qualquer forma, belo e profundo.

 

Post a Comment

<< Home