Monday, November 05, 2007

A inveja

Caros amigos, queria dizer a todos que, mesmo em Roma, ainda não descobri «the meaning of life». Como naquele filme «A vida, o amor e as vacas», em que a personagem de Jack Palance reclama existir uma única coisa que importa na vida, mas nunca chega a dizer o que é, anunciando que cada um de nós sabe e só tem de ir à procura. É simplista q.b., quase como no Principezinho, mas…não será verdade?
Aqui em Roma estou sozinha, por isso em Roma ou na Conchinchina (que por acaso existe e consta nos documentos do Vaticano) os problemas seriam sempre os mesmos na vida de uma mulher trintona que viaja sozinha, que deixa o seu gajo e os seus amigos em prantos (vá, deixem-me brincar…), que só tem TV italiana (por acaso muito má, pior do que a portuguesa), o seu PC – que é salvação do mundo, se isto se estraga acabou-se a minha vida – e sabe que, durante muitos e muitos dias será assim mesmo. Cozinhar sozinha, viver sozinha, passear sozinha, escolher locais a visitar sozinha, lavar a roupa sozinha. É a vida de muitas pessoas, não tem nada de mais, não fosse a estranha investigação que me traz cá, desculpem mas não vou dizer qual, o blogue é público.
Serei digna de inveja? Em muitos aspectos estou certa que sim. Para já, porque viver sempre no mesmo sítio e fazer sempre os mesmos percursos, para a grande maioria das pessoas é uma seca. Há excepções, claro. Tenho um amigo que diz que onde houver uma Fnac está a salvo, seja em Portugal ou noutro sítio qualquer do mundo. Para ele, só está fora de questão países sem livrarias, cinemas, teatros, cultura. Portanto, países de terceiro mundo seriam a ruína dele.
Mas ultimamente pus-me a pensar. Foi tão difícil conseguir este trabalho, foi uma batalha tão dura. Na primeira vez que vim foi tão complicado que chorei no primeiro dia, coisa que raramente me acontece (houve circunstâncias muito próprias, digamos muito romanas, que levaram a isso, claro). Sempre que vim deixei situações complicadas em casa. Sempre ouvi comentários da minha avó completamente tortuosos, que quanto a ela lhe saem sempre involuntariamente e «não têm mal nenhum», mas que para mim são palavras com longo alcance. Na primeira vez deixei o pai sozinho, era tudo perigoso, uma menina sozinha (trinta anos, amigos, trinta anos e ainda sou tratada como se fosse o Capuchinho Vermelho na floresta), à segunda e à terceira vez é o marido. Pois claro, um marido ficar sozinho…olha que coisa! Que raio de trabalho fui eu arranjar, que porcaria. Soubesse ela que vou tentar compor a minha vida profissional com muitas e muitas mais viagens, porque isso me enriquece, como pessoa e no trabalho. Sempre esbarrei com comentários destes. Parece que sempre que avanço alguém me segura na camisola e manda voltar para trás, me puxa para uma vida dita «normal». Isto não é inveja, é simplesmente não perceber que, eventualmente, o mundo pode ter mudado e as mulheres já serem capazes de fazer alguma coisa por ele.
Depois, há as pessoas que detestam uma vida «normal». Há uns tempos esbarrei com uma atitude (feminina, e desculpem o comentário, como quase sempre) que me fez ficar muito irritada. Uma daquelas pessoas para quem a vida sorriu a sério, em termos pessoais e profissionais, mas que acha a sua própria vida um «tédio», ficou petrificada quando percebeu o que eu fazia (se é que percebeu, porque a pergunta que mais oiço nos dois últimos anos é «afinal o que é que vais fazer a Roma?»). Era mesmo o que ela queria. Bolas, e escapou-lhe esta belíssima profissão de investigador pobre a ganhar setecentos euros por mês. Só olhamos para a ponta do iceberg. Eu fiquei dois anos à espera desta bolsa, trabalhei muitas vezes de graça, e aqui em Roma, apesar de não ser uma desgraçada, tenho de controlar bem o que gasto, tenho de andar sempre carregada, e o turismo chateia-me tanto que fico maçada só de pensar que tenho de passar no adro do Vaticano para ir trabalhar e às oito da matina ali estão os fotógrafos de serviço, as excursões do costume, e os acotovelamentos necessários para conseguir passar sem arranhões. Estou certa de que muita gente ficaria farta nos primeiros dias para o resto da vida…e o trabalho? É interessante, mas fica-se pela leitura e resumo de textos. A isso convencionou chamar-se «investigação». Mas a máxima investigação que existe consiste em ir ao dicionário procurar palavras. Quando há dúvidas na leitura, paciência, estou sozinha. Trabalhar sozinho também tem as suas vantagens, que é desenvolvermos a capacidade de sobrevivência, o célebre desenrascanço.
Estou certa de que muita gente me arrancaria isto das mãos sem pestanejar nem que fosse para vir passear a Roma. Mas palavra que se arrependeria…passados uns dias estava a dizer que a cidade e o trabalho são igualmente «entediantes». O tédio é uma coisa que achamos sempre que desaparece, ou que pelo menos se dilui, se mudarmos do local onde vivemos, se mudarmos de trabalho, etc. Mas o tédio existe muitas vezes dentro de nós, outras vezes no facto de fazermos o que não gostamos o dia todo. Então cobiçamos, dizemos «era ali que eu devia estar». Acho que é humano. Eu também fazia isso quando via que alguém tinha conseguido um lugar para o qual eu tinha capacidades. É muito estranho como por vezes as pessoas ficam nos trabalhos que outrora achámos perfeitos, mas um dia chegamos à conclusão, quase absurda, que ainda bem que a nossa vida deu outras voltas.
Eu e a Paula estamos sempre a dizer isso. Nunca conseguimos dar aulas nem formação. Mas conseguimos fazer outras coisas de que gostamos mais. Foram descobertas do acaso, foram oportunidades que surgiram e eu acho sempre que tive sorte, e essa sorte aliada a capacidades dá algum resultado, que não sendo perfeito é alguma coisa.
Não sei explicar às pessoas que estas mudanças custam. Que chegar a casa e ela estar vazia custa, sobretudo quando se é casado. Que andar sempre carregado custa, ganha-se bolhas, varizes, dores horríveis nas costas. Que para comunicar para Portugal temos de entrar em sítios com Internet absolutamente medonhos que cheiram a chulé e mexer em teclados sebentos. Que o trabalho custa imenso a fazer, está sempre atrasado, é sempre para ontem. Que passar todos os dias várias vezes no Vaticano custa. Que a cidade é suja e cruel com as pessoas, incivilizada, grotesca, mal educada, que passados dias achamos isto um horror, um pesadelo e ninguém faz esforço para entender um estrangeiro excepto outro estrangeiro. E…que deixamos em casa situações muito complicadas, sem resolução à vista, que por um lado preferiríamos vir mas por outro não, queríamos estar perto do nosso amor a dar-lhe apoio. Nada disto é explicável, sobretudo para quem pensa que vimos aqui dar uma de grandes investigadores e viajantes dos quatro cantos do mundo. A quem cobiça isto, eu ofereceria de mão beijada um bocadinho do pior que Roma e este trabalho têm, sobretudo o compromisso de fazermos um trabalho de jeito quando é mesmo impossível…
Não quero pintar o cenário de negro, só de verdade, ou da verdade que eu vejo, porque sou eu que viajo e sou eu que faço este trabalho, não os outros que falam dele. Eu sei que nem todos temos as mesmas chances de viajar e que muitos gostávamos imenso de fazer isso – outros não gostam mesmo e assumem, como a Paula, que é muito sincera. Não nos acomodarmos ao que temos é um bom princípio para a mudança estrutural. Mas por vezes as melhores opções são mesmo as mais simples, as que estão ao nosso alcance. Como diz a minha amiga Estela, sempre que olha em volta percebe que vive no paraíso…acho que é isso. Muitas vezes acho que me entregaram em mãos uma empresa de grande valor e eu não tenho capacidades para ela. Mas outras vezes sei que se isto aconteceu no meu caminho é porque tinha de ser, é porque tenho algo a aprender. Por isso vou tentar aprender nos próximos quarenta dias em Roma.

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