Tuesday, November 13, 2007

O elitismo

No outro dia percebi porque me incomoda tanto o trabalho que faço, melhor, o lugar que ocupo. Porque é elitista e eu, por princípio, não sou elitista. Acho que se as pessoas têm qualidades e são inteligentes, podem e devem fazer o que gostam. Mas da palavra à acção, eu ouvi muitas vezes «eu queria fazer isto ou aquilo, mas não tive possibilidade». E depois vem o rol das impossibilidades: falta de dinheiro, saúde, oportunidade, azar na vida, ou filhos, família, etc. Depende do que pomos em primeiro lugar, daquilo em que investimos, da força de vontade, mas depende, e muito, da sorte. Mesmo. E eu pelos vistos tive sorte, depois de muitos azares, mas tive sorte em fazer o que meia dúzia faz (é mais de meia dúzia, cinquenta múmias logo pela manhã). Com o tempo passa a ser rotineiro, normal, até mesmo ver gente mais jovem do que eu. Esse também é outro dos argumentos que mais me ludibria, uma pessoa ser demasiado jovem ou demasiado velha para fazer alguma coisa. Por tradição, documentos velhos é para gente velha. A imagem do historiador de barbas que enlouquece à procura de segredos nos documentos parece ser um dos estereótipos preferidos até dos mais velhos, ali no arquivo. As pessoas mais jovens, ali, são mais descomplexadas. A maior parte está em doutoramento, portanto a investir na carreira universitária, no seu país ou noutro.
Todavia, o elitismo consegue ser horrível, tanto em Porugal como em Itália, e não favorece um país, culturalmente, porque desaproveita uma série de cabeças pensantes que se dirige para outras áreas completamente diferentes. Só aqui em Roma conheci diversas pessoas formadas em História que não exerce nada que se pareça com História. Em Portugal, nem falo dos inúmeros casos de pessoas acumuladas em prateleiras à espera que o seu curso lhes renda alguma coisa. Acredito que muitas pessoas trocariam o que ganham por menos para poderem exercer o que realmente gostam. Eu acho secante o que faço, mas também vejo muitas compensações que não são monetárias: viagens, alguma liberdade de horário, trabalhar sozinha. Por isso, não me importava de continuar, desde que viajasse, já que o trabalho na universidade é repetitivo e intragável.
O elitismo é a noção de que alguma coisa é para poucos, uns quantos privilegiados que conseguiram alcançar «aquele patamar». Parece pôr de parte uma certa luta, uma certa garra, uma certa sanidade que nos coloca à procura de subir de degrau na escala dos conhecimentos. Se não pertencermos a essa elite, temos poucas chances de sobreviver. Pode ser uma elite de dinheiro, uma elite de poder, uma elite de conhecimento. Sem um attachement qualquer a uma delas, ficamos desasados.
Eu acho que não pertenço a nenhuma elite, todavia estou inserida nesta, portanto acabo por fazer parte de uma, ou dar essa ideia ao exterior. Como muitos outros sítios que habitamos, este é uma oligarquia: quem manda nele, senão o poder (político, religioso)? Quando esse pensamento me ocorre, não me agrada mesmo nada. Não sei como cada uma das pessoas chegou a «investigador», mas há certamente um processo complicado, e como há ali muitos estrangeiros, deve variar consoante cada país. Uns estarão ali com bolsas, como eu. Outros com carreiras universitárias. Outros porque conhecem alguém. E há o clero, que tem uma espécie de livre-trânsito para as catacumbas.
O trabalho parece um mito. As mais variadas pessoas já me disseram as coisas mais estranhas: se posso pedir tudo o que quero, mexer no quero, procurar à vontade. Mas não. Nada disso. A disciplina ali dentro é militar. Há horas para tudo, os documentos estão guardados numas caixas putrefactas que eles vão buscar e levam exactamente 20 minutos a chegar. No caso dos documentos mais podres, a pessoa é obrigada a sentar-se nos reservados – é o meu caso – e a pedir um máximo de 3 caixas por dia. Creio que noutro tipo de documentos é possível pedir-se mais.
Creio que o elitismo, por norma, estraga muito as pessoas no trato humano e social. Cria-lhes a ideia totalmente fictícia de super-pessoas, super-bem-relacionadas e super-bem-equipadas-para-a-vida. Mas a visão é em túnel, com palas nos olhos, muito estreita. A prova é que ali as pessoas são geralmente porcas, arrogantes e muito solitárias, ou então relacionam-se e tomam café com quem lhes interessa. Outras têm uma relação de amor quase erótico com os documentos e afeiçoam-se a eles como se fossem pessoas. Comigo também acontece isso, confesso. Sempre que tenho de entregar uma caixa, vêm-me lágrimas aos olhos, ou porque li os documentos que tinha para ler ou porque finalmente me vou separar da «minha» caixa sebenta. Todavia, tenho muita pena da minha mudez, de não falar italiano (e admiro imenso que as pessoas aprendam quando ali vão, mesmo com sotaque inglês), sobretudo porque me retira em grande parte a humanidade. Como as palavras são importantes…
Curiosamente, a área de leitura de texto antigo – que nunca supus agradar assim a tanta gente, mas toda a gente me diz que «é giro» - nunca me interessou até ao momento de vir trabalhar exactamente nisso. E parece que nunca suscitou interesse a ninguém até…eu vir trabalhar exactamente nisso. Já ouvi as coisas mais disparatadas e tolas que se podem ouvir: que podia tirar fotocópias dos documentos (então para que é que ia a Roma?), que podia ter arranjado «outra coisinha melhor que não me separasse do meu marido» (não interessa a qualidade do trabalho), que podia tirar férias enquanto estou aqui (ó meus amigos…), que não faço nada com isto no futuro (é um clássico bem conhecido), que deve ser giro passear (experimentem apanhar com os turistas quando têm pressa para chegar ao arquivo), que é um trabalho fixe (imenso, mas experimentem levar com oito horas diárias dele). Visto de fora isto parece o paraíso. Mas nunca se pode esperar recompensa nenhuma deste tipo de trabalho: quando regressar a Portugal, vai estar tudo mal, será pouco o que fiz e é preparar-me para grandes e sonoros desgostos. Mas enfim…amanhã é novo dia e os bispos, núncios e missionários esperam por mim. Mais as múmias elitistas dos arquivos.

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