Tuesday, November 13, 2007

Um ateu em Roma

Roma tem diversos atractivos fantásticos, mas como toda a gente sabe, a igreja, o Vaticano e o clero são um dos conjuntos principais que atraem turistas. Estão imersos neste caos a que chamamos Roma. Não é difícil ser um turista ateu - se assim não fosse, que fariam cá os japoneses? Estou certa que vêem por curiosidade, não por serem religiosos. Mas muitos dos turistas que aqui são despejados (sim, porque aqui os turistas parecem gado) são católicos e vêm papar missas, hóstias, fotografar igrejas e comprar terços, lenços e calendários com a cara do Papa. Não ser católico em Roma deve ser uma heresia brutal, uma coisa absurda mesmo.
Hoje fiz a experiência derradeira da minha existência mundana: fui à igreja aqui em Roma, à missa. Em português de Portugal, afinal ali estão os conterrâneos a cantar português, e quando uma pessoa está algum tempo fora do seu país gosta de ouvir. Naturalmente que os portugueses que lá estavam eram católicos. Muito mesmo. Isto se eu puder classificar como católico a pessoa que sabe a missa de cor. As acções cada um guarda na consciência.
Mais uma vez cheguei à conclusão que, embora não valha a pena tentar convencer a minha avó, eu não acredito em Deus, nem na igreja, nem tenho fé. Só que dantes eu suspirava «ufa, ainda bem!», hoje em dia não sei se suspiro. Embora uma missa me pareça muitas vezes uma experiência de histeria colectiva, uma espécie de bola de neve que nunca estancou desde que Jesus Cristo andou por cá, acho que aquelas pessoas encontraram qualquer coisa que eu não encontrei e que está vedado por falta de fé. Eu bloqueei. E ninguém teve a culpa. Não é por ser ateia que sou menos responsável ou tenho menos moral do que os outros, todavia eu e só eu sou responsável pela minha moral. E esse é um peso muito grande, embora as pessoas vivam a vida sem pensar muito nisso. Todos temos uma filosofia de vida, seja ela qual for.
Apesar de a missa por si não me dizer muito, sinto-me peixe fora de água, desta missa a que fui eu gostei muito, não sei se por ser em português e junto de portugueses (certamente ajudou), se pela música, se pela igreja, se pela homilia do Cardeal Patriarca, de que francamente gostei, porque ele referiu imensos assuntos que me são caros. Para além de puxar pela comunidade portuguesa, e referir a perseguição à religião católica (que hoje em dia me parece muito pouco provável), mas sobretudo referindo-se à tentação de largar a igreja católica por outra melhor ou por nada (por isso até referiu o meu caso, dizendo «alguns até são ateus»), referiu que as sondagens apontavam para que uma percentagem muito elevada de católicos já tenham deixado de acreditar na vida para além da morte e na ressurreição. E curiosamente o meu ponto de viragem está aí, e talvez por isso esta homilia em especial me tenha dito tanto. É porque muito lentamente e por questões bem diferentes das católicas, eu voltei a acreditar que a comunicação com o lado de lá é possível (mais na linha Kardec no que na linha Cristiana), o que significa que parte da minha fé se restaurou. Não como se restaura um dente, e por isso estou certa de que demorá muito, ainda, a ter uma resposta acerca daquilo em que acredito. Só que entre a fé cristã e a fé que tenho na existência não corpórea da minha mãe deve haver semelhanças no processo de acreditar. Porque a mim os bispos, os padres, as freiras e todos os outros católicos, pelo menos os de hoje, me pareciam cheios de terem encontrado um sentido para a vida. Um sentido que eu não tenho e procuro. Pelo menos eu prefiro pensar isso do que pensar que todos estariam ali a adular o poder hierárquico da igreja – alguns certamente que sim, como em todos os grupos.
Numa vida tão atribulada, fútil, superficial, em que tudo parece estar à mão, mas cada vez que olhamos a felicidade está distante da nossa vida e estamos cada vez mais distantes do que somos, do que um dia quisemos na vida, talvez faça sentido o que o Cardeal disse: é um teste à nossa fé enquanto seres humanos continuar a acreditar seja no que for, na vida, em nós, em Deus, na Bíblia, na reencarnação. Não será mesmo mais fácil deixar de acreditar? Para mim não foi fácil. Devo ter deixado de acreditar em Deus aos dezasseis anos. Era muito nova e comecei a ler filosofia e a achar que acreditar em Deus era uma fraqueza tremenda, parecia que tinha de existir um fio explicativo ao qual estávamos presos e sem ele, quais marionetas, íamo-nos abaixo. Os filósofos provavam que havia outras explicações possíveis para explicar o que é o ser humano e qual é o sentido da vida. Depois apareceu o óbvio questionamento, que certamente muitos católicos farão também, das contrariedades entre o que a igreja prega e o que faz. Mas talvez isso não tenha muito a ver com Deus. Esse foi um passo mais fácil de dar, desvincular Deus da igreja que o prega. Só que eu não acredito nem num, nem noutro.
A mensagem principal do cristianismo é positiva: amor, perdão, fé são palavras boas, que respeitam o próximo naquilo que ele é, na sua essência humana. O problema é mesmo esse: como respeitar se não nos sentirmos respeitados? Dar a oura face torna-se extremamente complicado, e como acho que os católicos não são estúpidos, certamente saberão ludibriar essa questão melhor do que eu. Devem aceitar melhor que eu que existem pessoas más, desagradáveis, estúpidas, mal intencionadas, que nos odeiam e a qualquer momento nos tentam exterminar. As palavras são cruas como a minha vida, que também tem sido crua. E dessas pessoas eu ouvi sempre que eu me sentia assim porque queria, como se a normalidade passasse por eu me afeiçoar ao que não quero dentro de mim, em vez de o expulsar com rapidez e eficácia. Com muita honestidade eu assumo que sou incapaz de perdoar tudo o que me fazem, mesmo reconhecendo o que nisso há de mau, que é ruminar os actos dos meus malfeitores, em vez de os ignorar. Certamente que os católicos são pessoas como as outras: também amam, odeiam e acham que há pessoas insuportáveis. Mas têm a explicação que eu não tenho: Deus fez todos os seres com defeitos, temos de perdoar e aceitar a diferença. Ter a explicação nem sempre é conseguir atingir o patamar da lucidez. Por isso estou certa também que nem todos os católicos serão bons a perdoar ou a dar a outra face.
Na vida, parece que estou sempre a ser posta perante a mesma situação: terei mesmo de me adaptar ao que não quero? Parece que de repente a vida se tornou num campo de concentração, em que os judeus tinham de se adaptar ao frio, à fome e à morte; assim eu tenho de me adaptar à ofensa gratuita. Todavia, a maior parte das pessoas tem sempre uma boa desculpa para dizer o que quer e fazer o que quer: a velhice, a doença, a falta de cabeça, o mau feitio ou simplesmente o facto de ser de família parece contemplar as pessoas de um halo de santidade que lhes permite ser desbocadas, cruéis, insensatas, tudo com a desculpa «não foi por mal» - ou como já ouvi, «estavas a merecer». Dar estalos aos outros parece dar às pessoas uma certa alegria, um certo poder sobre o outro. Como lida um católico com isto? Um ateu descalça bem a bota: desvia-se do caminho destas pessoas, ignora-as, passa à frente. Mas um católico tem uma missão muito mais espinhosa: tem de perdoar. Cada vez mais acho que o Cardeal tinha razão na sua homilia, num mundo em que somos tentados a achar os outros monstros, teremos capacidade para os incluir nas nossas vidas como seres «iguais», permanecer na nossa fé e realmente acreditar que esta vida é uma passagem e que seremos reduzidos a «nada»? Ele citou uma frase de alguém não identificado: a vida é bonita, a morte é simples, a transição de uma para a outra é que é complicada.

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