Friday, December 29, 2006

Ano novo, vida nova

Sabemos perfeitamente que esta é uma das maiores mentiras vivas – e instituídas – na nossa sociedade de consumo: a passagem do ano, que para nós cristãos é agora, mas para milhões de pessoas é noutra data qualquer, tudo dependendo do calendário adoptado. Mesmo assim, era muito bom que ano novo representasse vida nova, pelo menos para quem não tem a vida que gosta. Como eu.
Digamos que tenho muitas coisas boas na minha mãe, muitas das quais nem sonhava ter, e outras que nem achava serem possíveis no meu universo. 2006 foi cheio de novidades para mim: ter um sobrinho em Janeiro foi logo uma alegria, depois veio o emprego, pude sair de casa, casar. Foram mudanças exteriores que me afectaram o interior de modo positivo. Foram progressos. Se é certo que nos devemos concentrar nas coisas boas, também temos de reflectir o que mudou no nosso interior naquilo que somos, na nossa natureza.
A minha natureza é muito desconfiada, vivo tudo com imensa suspeita, penso sempre na perda como uma dado adquirido, por isso tudo o que vier de bem é bem vindo. Mas é uma natureza pacífica, muito mais pacífica do que a minha ansiedade e nervosismo deixa pressupor a mim mesma. Ser pacífico não é baixar os braços nem deixar de lutar: é querer, acima de tudo, paz para nós e paz para os outros. Feliz ou infelizmente, e porque toda esta vida é um teste de esmero e dedicação, o meu percurso é o de uma guerreira insatisfeita com a vida. Porque realmente, como diria a minha amiga Diana, não lido satisfatoriamente com a falta de valores dos outros. Mas lido menos bem ainda comigo própria, com a minha intuição e com a minha inteligência. Deveriam talvez ser motivo de orgulho – ou quiçá, se fosse muito orgulhosa, nada aprendesse. Mas a verdade é que, na escrita, o meu olhar é omnisciente. E a vida reflecte a minha escrita – e não o contrário, cada vez mais sei isso. Por isso o meu olhar sobre a vida é muito ansioso: porque é omnisciente. Hoje posso achar que aquilo que pensei, em fracções de segundos, foi uma imbecilidade, mas uma coisa é certa: se eu intui alguma coisa, então faz sentido, encaixa algures numa parte qualquer do que me vai acontecer. Dou um exemplo estúpido: toda a vida pensei em África e acabei por fazer um mestrado nessa área. Toda a vida pensei em ler escritores russos, e estou agora a estudá-los. Toda a vida li coisas que mais tarde me vieram a servir. E quando eu digo «pensei», digo «intui», porque o desprezo pela intuição é um bocado a morte da alma, e as palavras também reflectem isso. Há muitas coisas que eu sabia que iam acontecer. Como é que eu sabia? Eu sabia, simplesmente. Aceitar isso será um passo para chegar à paz com o meu espírito. O segundo passo é desinteressar-me da vida das pessoas que não me interessam. É não permitir sequer que haja cruzamentos de informações com essas pessoas. Porque se eu intuo que são perigosas é porque são. Por isso afastar-me é a melhor hipótese, mesmo que lute contra o impossível, mesmo provocando cisões. Penso que nada beneficiamos em deixar que a vida dos outros seja a nossa.
Na vida, só há uma hipótese: acreditarmos em nós próprios. Todas as outras batalhas serão inúteis se essa não estiver vencida. Sem gostarmos de nós, assumirmos erros, aprendermos com eles, percebermos quem somos, não vale a pena lutarmos com armas honestas, porque tudo o que sai deste jogo é um outro jogo, muito mais cruel: o da falsidade, da mentira, da superficialidade. E a maior parte de nós joga este jogo com a habilidade com que o aprendeu, falsificando a nossa imagem vezes sem conta e falsificando a imagem dos outros. Uns habituam-se, outros não, e voltam vezes sem conta a si mesmos, perguntando-se «o que me está a acontecer?». É a eterna contradição entre aquilo que os outros vêem e o que somos, e se tivermos muito medo do que somos, disfarçamos com qualidades que de facto não são as nossas, que não temos e com gostos e valores que não cultivamos. Viver na mentira traz muitas vezes sucesso e as pessoas confundem isso com felicidade, porque lhes preenche o vazio interior com o qual não sabem lidar.
Na minha vida tenho observado, e já aqui o disse por diversas vezes, que os meus amigos espelham as minhas qualidades e defeitos, e eu os deles. Essa é a minha maneira de me ver ao espelho. Se nos rodearmos de pessoas semelhantes a nós, na sua essência, nunca nos enganamos. Elas dizem-nos sempre o que somos com sinceridade. Se pelo contrário nos rodearmos das nossas antíteses, elas vão-nos indicar um caminho bem diferente de nós próprios.
Tudo o que mais desejamos da vida advém daquilo que podemos discernir, a preto e branco, e nunca do cinzento onde algures nos convenceram a sentar o rabo, por ser mais fácil, mais rápido, ou mais simples.
Por isso, para 2007, desejo a todos os leitores do meu blogue, a maior parte grandes amigos e amigas (mais amigas, que são menos preguiçosas do que os meninos) que se rodeiem das pessoas que os façam sentir leves e transparentes, e nunca das pessoas cujo peso nos carrega os ombros só de olharmos para elas, pela mentira que são. Não direi a nenhum de vocês que este é o caminho mais fácil, mas é com toda a certeza o mais certo. É o que me diz a minha intuição.

Quem sou eu?

Não há nenhum problema, por mais distante que nos pareça ser, que não culmine na velha questão, permanente e determinante, quem sou eu? A questão do dinheiro, do emprego, da casa, dos filhos, do que pensamos, tudo vai ter aí. O que nos acontece, sobretudo. Muitas vezes confundimos o interior com o exterior. Achamos que somos o que os outros acham de nós e o que nos acontece. Todavia, somos sem dúvida muito mais do que as nossas doenças, os nossos desastres, as nossas vitórias, os nossos amigos, os nossos familiares. Nós somos quem somos, o foco de coerência mantido antes, durante e depois e tudo isso. Portanto, somos o esqueleto, a estrutura, por vezes tão incompreensível, de todas essas coisas. Perdemo-nos muitas vezes de vista, sem qualquer dúvida. A força interior, à qual tanto apelamos, é exactamente isso: a nossa capacidade de fazermos face não só ao infortúnio, mas à grandiosa questão: quem somos, afinal?

Para nos mantermos sãos em relação àquilo que somos precisamos de muito trabalho. E de muitos amigos. Porque nos perdemos muitas vezes. Mas como eu costumo dizer, só se perde quem tem inteligência para isso. Nunca vi uma pessoa burra perder-se de si mesma: já vi pessoas burras a sofrer, claro, sentimentos são humanos, não são exclusivos das pessoas inteligentes. Mas compreender e enquadrar o sofrimento não é para qualquer um, e suponho que o esclarecimento, a lucidez, a consciência é o trabalho interior que exige paciência, inteligência, e predisposição. Porque se não estou predisposto a ouvir, a perceber, a questionar e até a perder-me, então não vale a pena. Sócrates tinha razão. Sem termos a noção de que nada sabemos não chegamos ao conhecimento. E para isso temos de ouvir os outros, mesmo quando custa, mesmo quando dói, mesmo quando achamos injusto.

Por vezes os outros estão só a despejar frustrações. Estão a fazer de nós um caixote do lixo de emoções, como diz a Elisabete, e não têm esse direito. Ninguém tem esse direito sobre nós. Não temos de ter costas largas ou um alçapão sem fundo para ouvir dislates, disparates, coisas torpes e apanhar, vezes sem conta, com a indelicadeza e a arrogância das outras pessoas. Na realidade, não devemos dar nenhum poder a essas pessoas, mesmo quando elas estão no poder. É deixar que as suas palavras amargas fiquem suspensas no universo e lhes voltem às mãos. Eu sei que nem sempre acontece. Mas mais tarde ou mais cedo somos julgados pelo que fazemos em praça pública. Mesmo as pessoas mais intocáveis e protegidas algum dia saem da alçada dos outros que as protegem. E quem são elas, nesse tempo e nesse espaço, senão seres frágeis sem qualquer espécie de apoio? Significa que o somos somos, para além dos outros e da opinião dos outros. Se nos apoiamos única e exclusivamente em opiniões, às vezes lançadas ao acaso, não podemos ser nós. Só somos para os outros. E deixem-me que vos diga: essa é a melhor maneira de fugirmos de nós mesmo e de quem somos.

Por algum motivo, radicado no meu interior mais profundo, deixo muitas vezes de ser vista como pessoa para passar a ser esse caixote do lixo de muitas espécies de pessoas diferentes: os arrogantes, os torpes, os mal intencionados, os que nada têm para fazer de melhor, o que me querem aniquilar, tantas vezes por eu transparecer o que sou, com toda a fragilidade que isso acarreta. Como me dizia a Sandra, sermos sinceros é o maior fruto de dissabores nas relações interpessoais. O cinismo é quem ganha. E eu tenho sido sempre sincera, porque isso quando não estou bem digo que não estou bem, e parece-me que quando digo uma piada é porque acho que faz sentido. E isso trouxe-me sempre dissabores terríveis, porque os outros acham sempre que, como não são sinceros consigo mesmos, e usam disfarces, podem despejar esses disfarces e outras coisas bem piores nas minhas costas.
Por exemplo, a minha avó usa o disfarce pior da sua época: o machismo. No fundo, sabe que nunca foi feliz sob alçada do machismo, mas cultiva esse poder, submetendo-se a ele através dos outros. E faz comigo esse jogo pérfido do «dá comer ao teu marido», mesmo com o meu marido ao lado, como se ele não pensasse pela sua própria cabeça. Reduz o homem à condição de procriador, achando que a ele nada mais está destinado, senão procriar e mandar. A mulher reduz-se à obediência. Coisa que nunca entendi é porque é que eu, que tanto me oponho a isto, sempre apanhei, qual caixote do lixo com fundo interminável, com esta mentalidade falsa e estúpida. Para a minha avó eu devo ser um bicho raro, que ela, como nunca entendeu, procurou sempre desambiguar. Como sempre ela envia a si mesma mensagens de sossego, para se manter nesse registo – que é o único que conhece – toda a vida. Todas as pessoas são boas e pensam como ela. Fora disto, nada existe ou tem valor. Ninguém decide fora disto.
Depois, tenho servido de caixote do lixo de outras pessoas menos bem intencionadas do que a minha avó, cuja mentalidade pouco evoluída nos aspectos referidos é compreensível. Mas outras pessoas, sobretudo mulheres, que infelizmente é com elas que choco mais, não têm razão para terem mentalidades tão mesquinhas, tão fechadas, tão invejosas e mal intencionadas. Onde foi parar o bom senso? Parece que agora uma mulher para ser mulher tem de estar em disputa com outras, sendo agressiva, bruta e malcriada. Isso são armas masculinas, dizem os especialistas, sabiam? O poder sempre foi atribuído aos homens, primeiro porque tinham mais força e destreza física (na época das cavernas), e porque à mulher era destinado o lugar de mãe, procriadora, protectora do lar, e tinha menos força física. Muitas mulheres disfarçam-se desta segunda imagem, auto-proclamando-se mães excepcionais (mesmo que não sejam mães, acham que adoram crianças), protectoras do lar, mas frágeis criaturas que precisam dos homens. Todavia, é o contrário: têm sede de um poder muito masculino, que oprime as outras mulheres, considerando-as seres inferiores, isto é, muito diferentes de si mesmas.São as mulheres que querem tudo, e quando não têm reclamam que têm. Um homem que esteja ao pé destas mulheres é a parte feminina da relação: é o salvador, o seu protector, o seu faz-tudo, provavelmente pai e mãe dos filhos que ela diz tanto adorar. Sob a capa da frontalidade esconde-se o inevitável vazio: são mulheres arrogantes e desprezadas por outras mulheres que lhes topem as manhas. Digamos que estas são sempre as mulheres que me detestam. São as mulheres de capa dura, que provavelmente, algures na vida, se deitaram com o homem certo que lhes abriu as portas certas. Apesar de não saberem, deixam ver isso na sua face. Acaso do destino serem sempre estas as gajas que me odeiam? Não acho.
Só há uma maneira de deixarmos de ser caixote do lixo das frustrações dos outros: não deixando. Isso não significa dar troco na mesma moeda, porque suponho que um arrogante esteja sempre à espera disso para aumentar o seu poder. Significa desprezo, distância e auto-estima, porque a certeza do que somos é que nos salva do que não somos.


Wednesday, December 20, 2006

O que somos

O budismo tem uma perspectiva acerca das pessoas que me impressiona deveras, pela sua capacidade de perdão, extremamente superior ao catolicismo. O budismo não vê as pessoas como boas ou más, vê as pessoas como lições, com tudo aquilo que sabem e que representam. E talvez, mais do que nunca, seja necessário pensar assim. Sou franca: continuo a acreditar no bem e no mal, nos bons e nos maus carácteres. Mas também acho que todos elas são lições, são sim senhora, para aprendermos a não fazer os mesmos erros e a não perdermos tempo com inutilidades. Porque perdermos tempo com a galinha do vizinho é realmente de uma inutilidade sem par, mesmo quando o vizinho é o pai, a mãe, o irmão ou o cunhado.

Não interessa. Interessa estarmos bem com a nossa consciência, vivermos uma vida sã, rodeados de amigos e de pessoas que nos dizem alguma coisa. Interessa – mais que nunca – termos saúde, num país no qual em cada doze mulheres uma tem cancro da mama, e dos 2.400 casos novos que aparecem, todos os anos, mais de 1000 mulheres sucumbem à doença. Este é só um exemplo, porque Portugal sofre de outros males, como os ataques cardíacos, as doenças degenerativas, os acidentes de automóvel, que mutilam e matam adultos e crianças. Embora ninguém se chateie muito com isto, na verdade, todos os dias venho a pensar que é muito chato sermos bombardeados, diariamente, com questões menores, do diz-que-disseste, das ofensas mesquinhas, das pessoas que convidamos ou não para um casamento (que, afinal, é uma questão muito importante e eu nem sabia disso, que as pessoas podiam perder o respeito pelo outro só porque não foram convidadas para alguma coisa).

Um dia, temos mesmo de decidir se queremos ser como as pessoas das revistas, glamourosos e parvos, ou se queremos ser pessoas verdadeiramente inteligentes e viver com consciência. Viver com e em consciência é viver no presente (embora tendo projectos de futuro), percebermos que somos uma parte ínfima do universo do conhecimento, mas provavelmente uma parte gigante do coração dos nossos amigos e familiares que realmente gostam de nós. Viver assim parece tão fácil. E é tão difícil. Simplesmente porque nos perdemos. E porque nos perdemos? Primeiro, porque desde há muito nos esquecemos da simplicidade que é existir. Só existir. E ficar a olhar o sol, a sentir o frio da água, a sentir a areia nos pés, a sentir o açúcar do chupa-chupa, a lamber o resto do bolo na forma, a ficar à espera do Pai Natal na noite de Natal. A Patrícia tem razão. É melhor continuar a acreditar no Pai Natal. Ao menos acreditando continuamos a ser infantis e genuínos.

A segunda razão para nos perdermos é acreditarmos no pior de nós, que normalmente vem espelhado nos outros. Agarrarmo-nos à parte mais suja do nosso ego, que é o egoísmo, a mesquinhez, a torpeza, o atirar bocas, a falsidade, a hipocrisia e até a má criação. O melhor de nós também vem espelhado nos outros, mas temos de ir à procura, dá muito mais trabalho. Se ficarmos sentados onde estamos, não vem ter connosco. Ao perdermo-nos de nós, perdemos a verdade do que somos e ficamos presos a uma ideia de perfeição inexistente. Ficamos na caverna de Platão a olhar sombras. A maior parte de nós vive neste estado semi-consciente a vida toda, até acontecer um susto, uma desgraça, uma catástrofe de proporções avassaladoras. A mim aconteceu-me isso. A morte da minha mãe foi para mim a realidade a chamar-me da minha caverna, obrigou-me a abrir os olhos para uma coisa importante: não era só eu que estava na caverna, mas comigo estava (e está) a grande maioria das pessoas, cujos desafios passam por pouco mais do que ter uma casa maior, um carro maior e uma vida invejável. A isso chamam sucesso. A isso eu chamo viver na merda. Porque sem uma consciência, quem somos nós? E tenho descoberto que o que menos falta no mundo são pessoas inconscientes: da sua personalidade, do seu carácter, do seu efeito nos outros, dos seus valores, do seu modo de vida. Vejo coisas gritantes que as pessoas conseguem classificar como «honestas» porque lhes assentam como uma luva. E as coisas que nos assentam como uma luva nem sempre são honestas. Na realidade, é um defeito educacional as pessoas não terem aprendido isto em casa. Um namorado que nos assenta como uma luva pode não ser quem realmente amamos, mas sim a pessoa que nos traz mais benefícios na vida, e nesse caso estamos a dar ao ego o que ele nos pede, mas não estamos a ser conscientes nem verdadeiros connosco próprios. Vivendo uma vida assim, seremos sempre inconscientes, excepto se o universo conspirar contra nós e nos der a nossa lição de uma forma mais brusca e aterrorizante do que estávamos à espera. Foi o meu caso. Ver a minha mãe a morrer revelou-me essa verdade: por muito que custe a verdade, não podemos ser inconscientes. A inconsciência também se paga, e o preço não são móveis caros. O preço somos nós enquanto pessoas. É que se quisermos viver rodeados do bem, ninguém nem nada nos impede. Mas se quisermos viver rodeados do mal também não. A questão é: será que distinguimos o bem do mal? Será que sabemos o quanto prejudicamos ou beneficiamos as outras pessoas à nossa volta? Convém saber, porque essa é a definição do nosso papel no mundo.

Agora chegamos à velha história incomodativa para muitos dos seres conscientes, como eu, do seu papel no mundo: cheio de boas intenções está o inferno cheio. Ah pois é…esta frase quer dizer que, por muitas e boas intenções que tenhamos, por vezes falhamos. E falhar consiste em cair em saco roto uma atitude que considerámos, do nosso ponto de vista, certa, correcta, consciente e digna. Tenho muitas vezes atitudes que classifico deste modo e sou, permitam-me a palavra, crucificada por elas. Só que temos sempre de pensar como Jesus Cristo: crucificado hoje, um profeta amanhã. Das duas uma: ou ele era mesmo filho de Deus ou tinha uma grande capacidade de argumentação. Uma coisa é certa: influenciou, com a sua palavra, povos de todo o mundo. E falamos de Jesus Cristo, mas podia ser o Gandhi. Ou até o Padre Manuel Antunes, cuja filosofia e ideias políticas perduram até aos nossos dias. Decerto não sou tão importante como eles, sou uma pensadora de estirpe bem diferente, mais quotidiana, mas não tão light como a Margarida Rebelo Pinto. Simplesmente desempenho o papel que me cabe, com a minha asa de Arcanjo São Miguel. Do outro lado não é lido assim: pelos vistos sou uma megera, fiz pacto com o diabo, destilo veneno. Talvez durante uns tempos seja melhor o mundo inteiro achar que somos loucos: porque ou somos mesmo, ou temos aquilo a que os especialistas em espiritualidade chamam de supra-consciência. E ter uma supra-consciência é estar num patamar maduro de leitura da realidade circundante. Há quem lá chegue com a idade, há quem chegue cedo, há quem nunca lá chegue. A Elisabete chama-lhes «almas velhas». Mas eu chamo só percurso mais rápido do que aquilo que é comum. Talvez seja um estádio de desenvolvimento que outrora tivemos na infância, quando ainda não andávamos às compras nos centros comerciais e não tínhamos a ganga de significados estereotipados que hoje temos em cima. É intuição. E embora todos a tenhamos, muitos folgam em escondê-la. Da intuição passa-se para a formulação de um esclarecimento prévio (talvez seja a moral provisória de que Descartes falava) e depois o definitivo. E daí ninguém nos tira: nem a voz mais melíflua, nem a argumentação mais poderosa, nem a violência mais arreigada, nem a raiva, nem a humilhação, nem a frustração, nem o mau carácter. Porque quando chegamos aí, nós finalmente somos nós. E isso ninguém nos pode impedir.

Friday, December 15, 2006

O síndrome de Eva

Toda a gente já entendeu que o meu blogue também se alimenta de uma espécie de cunho idealista feminimo. Uma utopia. É verdade. Tenho uma utopia, um ideal do que é ser-se mulher. Não estará distante de muitas mulheres que conheço, todas super-mulheres, mas está a milhas de distância de muitas e muitas outras, que tendo uma vagina e sabendo usá-la, não são mulheres completas por outros motivos.

Há séculos e séculos que as mulheres se aperceberam que a vagina não serve só para urinar, ser o ponto de partida para procriar e parir. A vagina é uma arma poderosa. Por isso existe prostituição. Os filmes pornográficos vendem por causa das mulheres – apesar de existirem muitos gays no mundo, não serão eles a grande maioria de homens que visiona e compra filmes pornográficos. A vagina é mais do que isso. Eva puxa Adão para o pecado, é um ser desviante e transgressor, instigador do mal, a partir daí sentem vergonha do sexo e ela passa a ter dores menstruais e de concepção. Muitas mulheres assumem bem a sua faceta de Eva: sensual, despudorada, desvirtuada, desmiolada, sensível, frágil e a necessitar da protecção de Adão: “ Amor, não queres antes ir tirar fruta da outra árvore, não sei, para a gente variar...”, e ele: “ Opá, não, nesta árvore tá-se bem, Deus disse-me para vir aqui “, e ela: “ Olha, amor, se vieres comigo à outra árvore, dou-te um doce! “. Decerto que Adão, olhando-lhe as mamas e o cu, terá proclamado: “ Bute lá, Deus não há-de ficar chateado, Ele é um gajo que perdoa tudo “.

Esta atitude da mulher «sensível e frágil», mas sacana, atravessa séculos e gerações até aos nossos dias. Quando uma mulher quer atenção, não há quem a ature, por mais brando e honesto que seja um homem. Uma mulher descompensada é do pior que se pode arranjar. Primeiro, porque cria conflitos com os demais sem razão para isso. Depois porque, sabendo o lixo que ali vai dentro, procura ficar orgulhosa de si mesma da pior forma possível. E em último porque não arranja namorados nem maridos, mas escravos ao seu dispor, como provavelmente serão as outras pessoas à sua volta. Quem não entrar no sistema esclavagista que ela arranja, está excluído do jogo. São formas perigosas de viver, eu acho, mas sobretudo pouco honestas. Vivo na utopia de achar que todas as mulheres são mulheres e que, mais tarde ou mais cedo, este comportamento infrutífero terá o seu castigo, até para elas próprias. Em primeiro lugar, porque nos apaixonamos, logo, todos estamos em risco permanente de, fazendo as coisas baseadas noutros princípios que não os dos sentimentos, irmos ter a um beco totalmente escuro e sem saída, uma Eva que diz “Porra, só há este Adão? Este já deu o que tinha a dar!”. Mas essa é também uma Eva perdida, fora de si mesma. E uma pessoa para se perder tem de ser inteligente. Quem não é inteligente, nunca se perde, por isso também nunca procura outros caminhos. Arriscamos por isso a ter uma Eva burra, que perdeu boas oportunidades no amor em busca de boas oportunidades na vida, recheada de muitas outras coisas.

A diferença aqui reside em duas coisas: naquilo que é, para nós, perder tempo, e naquilo que é, para nós, ter sucesso. Penso que há pessoas cujo caminho é todo ele desenhado em função de objectivos, sem mais nada a moldá-los. E penso que há pessoas que batalham pelo caminho que percorrem, para que seja um percurso digno de si mesmas e justo. É natural que, em ambos os casos e de diferentes maneiras, criemos muitos inimigos. Não vale a pena ter a perspectiva de que somos bons para toda a gente, porque isso é uma hipocrisia danada. Sendo justos ou injustos, magoamos sempre alguém.

E por outro lado há o sucesso. O que é e a importância que ele pode ter para nós. Para mim sucesso é um conjunto de factores, e muitos passam pelo espírito. Ter um suporte, uma base vivencial rica passa por fazermos amigos, passa por saber amar e sabermos ser amados. E é que saber amar parece inato mas não é. Amar é que é inato. Saber amar é uma aprendizagem de uma vida, às vezes dolorosa. É preciso ter paciência, saber dosear quem somos, mas não filtrar quem somos até sermos o «outro». Sermos o outro é a pior coisa do mundo. Quem nos ensinou que isso é amar? Podemos amar e ter gostos diferentes, vidas diferentes, mas complementarmos a nossa vida na vida do outro. Não substituí-la. Saber isto é saber amar, sem a histeria do «estou curado dos males do mundo». Os budistas falam muitas vezes nas frases de anulação de nós mesmos que proferimos: «vivo por ti», «somos iguais», «curei-me graças a ti», «quando não estás morro». São frases auto-destrutivas. Estamos a atribuir às pessoas a capacidade de um comprimido. Há comprimidos que os hipertensos, os diabéticos, os doentes renais têm de tomar toda a vida. Não tomamos as pessoas com um copo de água, e dá a sensação de que, se pudéssemos, atá fazíamos isso. Quem gostar de ser esse elemento «activo» da relação, sem o qual não se vive, que se cuide, porque ou é sensível e diz ao amado/amada «não pode ser assim», ou o incita a continuar neste disparate, de forma fria e calculista. Será uma pessoa que se vai espetar por causa de uma frivolidade sem par, a frivolidade do «outro».
Com certeza, dir-me-ão, há muitos homens assim. Há pois é. Mas mulheres então...nem queiram saber. Tornaram-se feras quando viram que os homens agora cuidam da aparência, já não cheiram a cavalo e têm cartão de crédito. Tenho conhecido Evas terríveis, que usam o poder como contra-poder, que eliminam quem não lhes agrada, e no fim, tudo o que tiveram de fazer foi acercar-se dos homens e dizer-lhes “Sou frágil, preciso da tua protecção”.

Friday, December 01, 2006

A Célia

O texto não pode ter outro nome, porque Célia, Célia só há uma. A minha amiga Célia, que conheci por intermédio do meu irmão há uns anos, talvez em 2001 ou 2002, não me lembro bem, e que nasceu num sítio chamado Escarigo (concelho do Fundão). A mãe dela, a Maria, diz que é filha dela de certeza, porque nesse dia a Célia foi a única menina a nascer no Escarigo. Tal como o Botulho da minha amiga Ângela, o Escarigo não é local de muito movimento e os turistas vão lá parar por acaso, ou porque são amigos da Célia, ou porque foram a caminhadas do Júlio (para o Júlio o mundo é muito pequeno, todos os sítios são definidos como «perto» e «já ali»). O que dá qualidade e sentido ao Botulho é a Célia, a família dela (que deve ser quase todo o Botulho), sobretudo o tio Carretas, conhecido pelo célebre «Ó Célia, quando é que te casas?». Felizmente para o tio Carretas, a Célia já casou.
A Célia é, quanto a mim, a pessoa mais original que conheço. Mas ela não sabe disso. E tem uma coisa fabulosa: é a preto e branco, mas colorida. Eu explico: é uma pessoa divertida e sã de espírito, percebe a ironia, percebe uma piada, uma joke, uma palermice, mas não perdoa se uma pessoa a chateia ou tem características desprezíveis, como a hipocrisia. E eu sou oldfashion. Continuo a adorar pessoas radicais, que não vivem sentadas naquela zona confortável do «gostar mais ou menos» do «dar um jeitinho», na zona cinzenta do sorriso a quem nos dá prémios. É que quando a Célia não gosta, não gosta mesmo. E ponto final. Tenho a impressão que também sou assim.
Conheço poucas pessoas que demorassem um dia a escolher um bolo de anos para o irmão, que andassem quase 60 Km nos EUA para comprar um cheesecake (de que não gostou) ou que levassem um dia inteiro nas compras para comprar…zero. Estas indecisões da Célia contrastam com o resto do seu carácter, que é muito firme e decidido. Ela é também a única pessoa católica que conheço cujo presépio de Natal foi roubado por outra católica…Do que conheço da Célia, acho que o pior que podem fazer-lhe é roubar-lhe qualquer coisa, ou enganá-la, sobretudo na comida.
Quando estivemos em S. Tomé a Célia angariou uma legião de fãs pretos que se queriam casar com ela (eu também tive direito, mas houve pessoas que não, graças a comportamentos anti-sociais e burgueses, «ai não laves os pés com o sabonete das mãos!»). Ninguém apanhou malária, e a Célia ganhou cocos e carambolas a dar com um pau. A propósito de pau, a Célia ganhou paus para o tambor que tinha comprado. Nem precisou regatear, bastou dizer «sou pobre» que os pretos deram-lhe logo os paus, ao contrário de mim, que paguei tudo o que tinha comprado. De qualquer forma, foi uma viagem excepcional, marcada na nossa memória por filmagens e fotografias inesquecíveis, que ainda hoje vemos como se estivéssemos a recordar tempos muito antigos. Gostamos sobretudo de nos lembrar de alguém que se levantava com as galinhas e punha factor 45 para não se queimar do sol e ficava a dormir o dia inteiro. Na vida, há cromos inesquecíveis que valem a pensa recordar com os amigos.
No outro dia a Célia conseguiu-me espantar com uma afirmação estonteante. Disse-me no messenger que eu era a amiga dela mais bem disposta. Logo eu, que de vez em quando acordo com vontade de esganar alguém (o Pedro é o primeiro a apanhar com o meu mau humor). Disse-me mais: que ao pé de mim se sentia bem. Acho que ela é a prova de que vale a pena sermos positivos e rirmos ironicamente da vida, porque muitas vezes não há outra saída para encararmos as coisas menos boas e as pessoas menos boas que se nos atravessam no caminho. Pessoas como a Célia são a compensação desse outro lado menos bom da vida, porque riem e choram connosco. Sem hipocrisias e sem máscaras. Há que aproveitar.

Pessoas especiais

É uma expressão estranha, eu bem sei. Porque vimos sempre com aquela treta estúpida de que especiais somos todos, nem que seja no coração da nossa mãe, e por isso o meu antigo professor de Literatura e Artes Plásticas dizia sempre «Até O Hitler era amado pela própria mãe». Ele tinha razão. Mãe ama-nos sempre. Foi a mãe que nos limpou as fossas nasais quando éramos pequeninos e nos lavou o rabo, mesmo quando parecia impossível ficarmos com o cu mais limpo do universo. Até a mãe do Hitler deve ter feito isso ao pequenino Adolf, dizendo-lhe ao ouvido «Bebé, um dia vais conquistar o mundo!». Eu teria vergonha se o meu filhote fizesse genocídios, mas a senhora já não devia ser viva nessa altura, ou então era surda e não deu por nada.
As mães são todas especiais, embora algumas pessoas tenham tão pouca expressão maternal e preocupação genuína que chegamos a pensar «Porque é que Deus lhe deu ovários?». Mãe é aquele ser humano a quem fazemos poemas, canções, cançonetas, até o BossAC fez uma llinda canção à mãe chamada «És mais que uma mulher». Ah grande BossAC! Por serem tão especiais, eu estou a escrever à minha mãe no arquivo secreto do Vaticano, às 16h26 da tarde, certa de que escolhi bem o local e o espaço silencioso para escrever à minha mãe, enquanto tenho documentos paleograficamente estranhos à minha esquerda, gaivotas a anunciarem tempestade em Roma (ou no Vaticano, sim, porque isto é outro estado, duuhh), e só quatro ou cinco companheiros de aventuras paleográficas «à pomeriggio» (tarde, olhem-me bem a trapalhada desta palavra) na sala. As autorizações da tarde são escassas e eu não estou a aproveitar esta. Porquê? Porque queria escrever à minha mãe e tenho-me lembrado dela, mesmo quando olho os documentos de Goa do século XIX.
Acredito piamente que a minha mãe gostasse imenso de mim, mas dávamo-nos como cão e gato. Muitas vezes odiei o comportamento dela e ela o meu. Mas tenho a certeza de uma coisa: sem a minha mãe eu não estava aqui a tresler os documentos de Goa do século XIX, sem a minha mãe eu nunca teria casado com uma pessoa honesta, nem teria sido puxada para este trabalho e esta vida, nem teria feito o mestrado «com as minhas capacidades e nunca com as dos outros», como está na minha dedicatória do trabalho. Está bem que há filhos e filhas tresmalhados, que têm excelentes pais e excelentes mães, mas acabam por eles próprios seres maus caracteres, talvez por natureza. Isso não se controla muito. Mas nisso eu sou uma pessoa muito feliz. Todos os dias orgulho a minha mãe, por um lado porque me distancio dos passos que ela deu, mas por outro porque me aproximo dos passos que ela daria na vida, se pudesse, se tivesse tido tempo, paciência, oportunidade, ou mesmo só se tivesse gostado mais dela própria. Todos os dias tento pensar o que faria ela nesta ou naquela situação, na certeza de que eu sou eu – agora sei isso – e não tenho a cabeça dela, nem o feitio dela, nem sei tanto como ela acerca das pessoas.
O curioso é que sei muito. Sinto-me muitas vezes uma sibilia, sobretudo depois da morte dela. O que raio me deu? Dantes eu era tão ingénua, achava as pessoas boas ou parvas, mas não as sabia mal intencionadas, astutas, arrogantes ou más. E de repente caí de cabeça nesse mundo e aprendi alguma coisa. Aprendi a ser cuidadosa: com o que digo, o que penso, o que sei, o que revelo, o que me enerva ou compraz o espírito. Aprendi a escolher pessoas para desabafar, outras só para amar, outras só para ter saudades, porque cada um tem a sua função e nem todos nos ouvem da mesma maneira, com o mesmo sentido crítico e de justiça. Aprendi que há balizas indeléveis nos outros e que temos de respeitá-las. Para bem dos outros e para nosso bem.
E quando os outros me ferem, aprendo como devo esquivar-me, responder, retaliar, ou simplesmente silenciar o mundo à volta da ofensa e ficar obcecada nela, o que é mau, muito mau, porque tudo converge aí: na palavra do outro, na atitude do outro, na vida do outro, e deixa de convergir na nossa vida. A Lisa sabe isto sobre mim. A Célia também. E a Patrícia. E a Paula. E a Sandra. E, acima de todas elas, essa deusa que era a minha mãe, que morreu estupidamente a pensar «raios partam, a vida dos outros é que é! Os outros é que são!». Ela perguntava-me muitas vezes «E eu?». Hoje entendo muito melhor a pergunta dela: qual é o meu lugar no mundo e quando é que raio sou feliz? E afinal não houve tempo de resposta. Deve ser por isso que sou obcecada por respostas. Tenho medo de não ter tempo para responder às situações todas e derrotar todos os corruptos que se atravessam no meu caminho. Tenho medo de ser como a minha mãe foi: uma mulher sem tempo, sem espaço, em lugar, sem ser o de dentro de si mesma, que não estava bem porque não contava com os outros para ajudar, só prejudicar. Chama-se orgulho e força. E eu tenho para dar e vender. Só que doseio, porque viver na realidade é preciso. Não é bom, mas é preciso. Dói, mas é preciso. E tem as suas compensações, porque passamos também a ser narradores omniscientes da vida dos outros, e podemos escrevê-la, mas sobretudo podemos – devemos – participar nela, mesmo quando temos aquela tendência do «não tenho nada a ver com isso». Temos sempre. Não é preciso metermo-nos à descarada, mas podemo-nos meter. Depois, é como diz a Lisa «acabou». E tem de acabar. Não podemos salvar o mundo. Cada um tem o seu percurso, mais realista, mais idealista, mais fantasioso. Cada um é um mundo. E pelos vistos eu não conhecia bem o da minha mãe e estive lá dentro, na barriga dela, quanto mais conhecer o dos outros, cujas barrigas desconheço…
Tenho imensas saudades de pedaços esparsos de vida com a minha mãe, coisas tão estúpidas como ir às compras ou ela ralhar comigo, ou não me deixar entrar na cozinha, ou, se recuar mais um pouco, fazermos o bolo da bolacha juntas. Mas também tenho recordações pesadas, como ela me ter dito que, quando descobriu estar doente se sentiu tão sozinha que se quis suicidar. Senti-me a pior pessoa do mundo, a pior filha. Então eu não dei com isso? Então não era óbvio que ela estava mal? É que nesse tempo eu era ingénua. Não sabia nada de nada. E hoje sei muitas coisas, mas muitas mesmo, e topo coisas inacreditáveis que pouca gente topa, e sei coisas que vão ser ditas e que vão acontecer. Ao passo que há pessoas que, perante a experiência limite de verem morrer (ou de estarem a morrer) se fecham no seu mundo, há outras que abrem mundos ao mundo. Eu devo ser uma dessas. Só pode. Obrigada mãe. És a melhor.