Friday, December 01, 2006

Pessoas especiais

É uma expressão estranha, eu bem sei. Porque vimos sempre com aquela treta estúpida de que especiais somos todos, nem que seja no coração da nossa mãe, e por isso o meu antigo professor de Literatura e Artes Plásticas dizia sempre «Até O Hitler era amado pela própria mãe». Ele tinha razão. Mãe ama-nos sempre. Foi a mãe que nos limpou as fossas nasais quando éramos pequeninos e nos lavou o rabo, mesmo quando parecia impossível ficarmos com o cu mais limpo do universo. Até a mãe do Hitler deve ter feito isso ao pequenino Adolf, dizendo-lhe ao ouvido «Bebé, um dia vais conquistar o mundo!». Eu teria vergonha se o meu filhote fizesse genocídios, mas a senhora já não devia ser viva nessa altura, ou então era surda e não deu por nada.
As mães são todas especiais, embora algumas pessoas tenham tão pouca expressão maternal e preocupação genuína que chegamos a pensar «Porque é que Deus lhe deu ovários?». Mãe é aquele ser humano a quem fazemos poemas, canções, cançonetas, até o BossAC fez uma llinda canção à mãe chamada «És mais que uma mulher». Ah grande BossAC! Por serem tão especiais, eu estou a escrever à minha mãe no arquivo secreto do Vaticano, às 16h26 da tarde, certa de que escolhi bem o local e o espaço silencioso para escrever à minha mãe, enquanto tenho documentos paleograficamente estranhos à minha esquerda, gaivotas a anunciarem tempestade em Roma (ou no Vaticano, sim, porque isto é outro estado, duuhh), e só quatro ou cinco companheiros de aventuras paleográficas «à pomeriggio» (tarde, olhem-me bem a trapalhada desta palavra) na sala. As autorizações da tarde são escassas e eu não estou a aproveitar esta. Porquê? Porque queria escrever à minha mãe e tenho-me lembrado dela, mesmo quando olho os documentos de Goa do século XIX.
Acredito piamente que a minha mãe gostasse imenso de mim, mas dávamo-nos como cão e gato. Muitas vezes odiei o comportamento dela e ela o meu. Mas tenho a certeza de uma coisa: sem a minha mãe eu não estava aqui a tresler os documentos de Goa do século XIX, sem a minha mãe eu nunca teria casado com uma pessoa honesta, nem teria sido puxada para este trabalho e esta vida, nem teria feito o mestrado «com as minhas capacidades e nunca com as dos outros», como está na minha dedicatória do trabalho. Está bem que há filhos e filhas tresmalhados, que têm excelentes pais e excelentes mães, mas acabam por eles próprios seres maus caracteres, talvez por natureza. Isso não se controla muito. Mas nisso eu sou uma pessoa muito feliz. Todos os dias orgulho a minha mãe, por um lado porque me distancio dos passos que ela deu, mas por outro porque me aproximo dos passos que ela daria na vida, se pudesse, se tivesse tido tempo, paciência, oportunidade, ou mesmo só se tivesse gostado mais dela própria. Todos os dias tento pensar o que faria ela nesta ou naquela situação, na certeza de que eu sou eu – agora sei isso – e não tenho a cabeça dela, nem o feitio dela, nem sei tanto como ela acerca das pessoas.
O curioso é que sei muito. Sinto-me muitas vezes uma sibilia, sobretudo depois da morte dela. O que raio me deu? Dantes eu era tão ingénua, achava as pessoas boas ou parvas, mas não as sabia mal intencionadas, astutas, arrogantes ou más. E de repente caí de cabeça nesse mundo e aprendi alguma coisa. Aprendi a ser cuidadosa: com o que digo, o que penso, o que sei, o que revelo, o que me enerva ou compraz o espírito. Aprendi a escolher pessoas para desabafar, outras só para amar, outras só para ter saudades, porque cada um tem a sua função e nem todos nos ouvem da mesma maneira, com o mesmo sentido crítico e de justiça. Aprendi que há balizas indeléveis nos outros e que temos de respeitá-las. Para bem dos outros e para nosso bem.
E quando os outros me ferem, aprendo como devo esquivar-me, responder, retaliar, ou simplesmente silenciar o mundo à volta da ofensa e ficar obcecada nela, o que é mau, muito mau, porque tudo converge aí: na palavra do outro, na atitude do outro, na vida do outro, e deixa de convergir na nossa vida. A Lisa sabe isto sobre mim. A Célia também. E a Patrícia. E a Paula. E a Sandra. E, acima de todas elas, essa deusa que era a minha mãe, que morreu estupidamente a pensar «raios partam, a vida dos outros é que é! Os outros é que são!». Ela perguntava-me muitas vezes «E eu?». Hoje entendo muito melhor a pergunta dela: qual é o meu lugar no mundo e quando é que raio sou feliz? E afinal não houve tempo de resposta. Deve ser por isso que sou obcecada por respostas. Tenho medo de não ter tempo para responder às situações todas e derrotar todos os corruptos que se atravessam no meu caminho. Tenho medo de ser como a minha mãe foi: uma mulher sem tempo, sem espaço, em lugar, sem ser o de dentro de si mesma, que não estava bem porque não contava com os outros para ajudar, só prejudicar. Chama-se orgulho e força. E eu tenho para dar e vender. Só que doseio, porque viver na realidade é preciso. Não é bom, mas é preciso. Dói, mas é preciso. E tem as suas compensações, porque passamos também a ser narradores omniscientes da vida dos outros, e podemos escrevê-la, mas sobretudo podemos – devemos – participar nela, mesmo quando temos aquela tendência do «não tenho nada a ver com isso». Temos sempre. Não é preciso metermo-nos à descarada, mas podemo-nos meter. Depois, é como diz a Lisa «acabou». E tem de acabar. Não podemos salvar o mundo. Cada um tem o seu percurso, mais realista, mais idealista, mais fantasioso. Cada um é um mundo. E pelos vistos eu não conhecia bem o da minha mãe e estive lá dentro, na barriga dela, quanto mais conhecer o dos outros, cujas barrigas desconheço…
Tenho imensas saudades de pedaços esparsos de vida com a minha mãe, coisas tão estúpidas como ir às compras ou ela ralhar comigo, ou não me deixar entrar na cozinha, ou, se recuar mais um pouco, fazermos o bolo da bolacha juntas. Mas também tenho recordações pesadas, como ela me ter dito que, quando descobriu estar doente se sentiu tão sozinha que se quis suicidar. Senti-me a pior pessoa do mundo, a pior filha. Então eu não dei com isso? Então não era óbvio que ela estava mal? É que nesse tempo eu era ingénua. Não sabia nada de nada. E hoje sei muitas coisas, mas muitas mesmo, e topo coisas inacreditáveis que pouca gente topa, e sei coisas que vão ser ditas e que vão acontecer. Ao passo que há pessoas que, perante a experiência limite de verem morrer (ou de estarem a morrer) se fecham no seu mundo, há outras que abrem mundos ao mundo. Eu devo ser uma dessas. Só pode. Obrigada mãe. És a melhor.

3 Comments:

At 1:44 AM, Blogger XaninhA said...

Sempre que olhares para ti, isto é, para dentro de ti, verás a tua mãe e, consequentemente, saberás a pessoa especial que tu (também) és*

 
At 7:47 AM, Blogger Brisa said...

A vida da tua mãe teve muito mais sentido do que parece. Sem que ambas se tenham apercebido, ela legou-te o bem mais precioso: a conduta da sua vida como exemplo a seguir em algumas coisas e a não seguir, noutras. Porque tens uma natureza rica, sabes aproveitar esse tesouro e, assim, dás sentido à vida dela.

 
At 8:57 AM, Blogger fercris77 said...

Queridas amigas, resposta para as duas leitoras mais atentas do meu blogue. Claro que a minha mãe era especial para mim porque era minha mãe, mas essencialmente aprendi com ela o que é uma mulher despachada, coisa que ela, com muito esforço, conseguiu fazer de mim. A Lisa é mto parecida, nesse sentido, com a minha mãe. Havia outras características nela que escondia, mas todas convergiam na força do seu carácter mas também na fragilidade que acabou por derrotá-la. Talvez por isso procure dar sentido a essa derrota, transformando-a, todos os dias, num ensinamento precioso para mim. Por isso, crescer com as minhas falhas tem sido importante, e sobretudo domar e relativizar os acontecimentos piores, como vocês me dizem para faezr. Obrigada também a vocês. Um beijinho.

 

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