A minha honestidade
Hoje pensei nisto. Pensei nisto seriamente. Sou bastante honesta, porra, «uma verdadeira pérola», como diria o meu marido. É que é raro, vocês nem sabem…Hoje de manhã lá estava eu, dentro do arquivo secreto, a marcar uns trinta números para conseguir telefonar ao padre Chaves a dizer que, contrariamente ao esperado, eu não tinha autorização para entrar no arquivo de tarde. É sabido, franceses, espanhóis e alemães entram quase sempre porque coordenam projectos de luxo, mas esta pobre investigadora, rica em sonhos mas pobre em ouro, lá estava de computador em punho a ouvir o senhor-que-manda-mas-não-tem-poder-nenhum a dizer em italiano que entendia as minhas motivações mas o arquivo de tarde não tinha empregados suficientes e tinham entretanto entrado muitos estrangeiros. Fiquei sem pinga de sangue, com tanto trabalho, o que vou eu fazer? Então liguei à dita cunha, o padre Chaves, falei em italiano, ele atendeu em italiano, qual coisa ridícula, somos ambos portugueses. E aí estava ele, muito zangado com um italiano que lhe tinha pedido algo invulgar, uma autorização, vulgo cunha, ao Papa, para se poder divorciar. Devia ser alguém ali do Vaticano, o divórcio estava complicado. E eu muito sã de espírito, como diria a minha avó, disse: “ Padre Chaves, isto é chato, é verdade, mas você não pode fazer mais nada por mim, era só para lhe dar um cumprimento “. E é que era mesmo verdade, ele já me tinha explicado que, com hierarquias religiosas não se brinca, com o Prefeito não se brinca e toda a gente, dentro do arquivo, é sempre impecável comigo, por isso não há razões de queixa. Não falo italiano mas vou aprendendo e vou-me divertindo ensinando-lhes a dizer «treze», que os faz rir muito, porque eles dizem uma coisa estranha como «trédechim» que a mim me soa a «espadachim». O Gianluca e a Katja, recentes amigos, italiano e finlandesa (combinação estranha mas deliciosa) já me disseram que português é uma língua erótica, que quando o Pedro e eu falamos é sensual. Será isso? Dentro do arquivo eles riem-se ou ficam atordoados, do género «que língua falou a gaja, pá??». E quando vim à recepção disse em português, com lagriminha no olho «olha, não tive autorização para entrar de tarde». E o recepcionista lá me explicou, em italiano, claro, que já se tinha apercebido que eu não ia ter autorização para entrar, mas que realmente lamentava, e só depois atendeu as três chamadas que deixou penduradas para me ouvir falar em português.
E estava eu naquilo «ó padre Chaves desculpe o incómodo» e ele sai-se com esta que eu adorei de paixão: “ Gosto imenso do teu carácter. És honesta, não és de esquemas! Gosto disso! Vem visitar-me! “, e eu atordoada, «posso levar o meu marido?». E sim, levarei o meu marido, era meu namorado quando o padre Chave o conheceu em Fevereiro. Já gostava do padre Chaves, mas fiquei a gostar mais (como diz a Patrícia e o filósofo Schopenaeur, gostamos dos outros pela opinião que têm de nós) e, curiosamente, coisa que não costuma acontecer em manhãs chuvosas e de Inverno, fiquei a gostar um pouco mais de mim. Porque agora vou todos os dias para o arquivo a armazenar informação no cérebro para falar com uma pessoa de que preciso muito de falar e dizer-lhe uma verdade que há dois anos estou para dizer. E o padre Chaves deu-me esse incentivo para eu ir em frente. Naquele dia de manhã, eu precisava dele e ele de mim. E as nossas palavras cruzaram-se em Roma à velocidade luz. E quando eu voltei fui ler os documentos e correu bem, consegui fazer isso e em paralelo organizar a minha cabeça. Vou em frente. Sou corajosa e honesta, ao menos isso.
Com tantos defeitos, tantas manhãs em que acordo mal disposta, tantos dias nervosa e com a cabeça noutro lugar menos bonito: derrotar o demónio com as minhas próprias mãos talvez não seja possível, mas ao menos afastá-lo, arredá-lo de ao pé de mim para outro lugar, dizer a um amigo, põe-te a pau. Porra, custa! São dois anos e tenho isto entalado na garganta com violência. É verdade que sempre que falamos com as pessoas as nossas palavras têm repercussões inimagináveis. É verdade. Mas nem sempre isso é mau. O padre Chaves é a prova. E a Patrícia. Recebi carta dela aqui em Roma, trazida pelo meu carteiro pessoal, o Pedro, e tenho-a na cabeceira. Diz que às vezes as minhas palavras têm mais força do que eu, e eu nem sei, nem sei a força que tenho. Nem a Patrícia sabe. Diz que lê parágrafos meus seguidos sem se cansar (é ela que é boa leitora). A diferença entre ela e o padre Chaves é que ela vai arder no Inferno e ele não, porque é padre (lol). Mas a avaliar pelo frade franciscano do arquivo que me empurra todas as manhãs para assinar primeiro a folha de presenças, não sei se o clero é santo. Nem sei se gosta de pessoas. Hoje estavam aqui duas freiras medonhas à porta das pizzas que nos fizeram, a mim e ao Pedro, tremer da cabeça aos pés. Podiam ser boas pessoas, mas aquela fatiota (hábito) assusta e afasta qualquer ser humano…
Nestes dias lá andei eu, tenho certeza e tenho certeza, mas não posso fazer nada, ai posso, posso, ai não posso. Os meus leitores não sabem do que estou a falar. Mas eu sei. O que interessa aqui é a força das palavras. Do padre Chaves. Da Patrícia. Idades e vidas tão diferentes, trabalhos tão diferentes, experiências tão diferentes e dizem o mesmo: sou honesta. Eu também acho. Não sei é se adianta. É como ter razão: é uma maçada, diz o Lobo Antunes. E é. É uma merda. Porque se não falamos ficamos com a angústia presa, mas se falamos podemos estar a dar impressão errada ou mesmo a dar cabo da vida de uma pessoa, ou provocar efeitos em cadeia terríveis e nunca mais superáveis. E como isso já me aconteceu: quem sou eu para fazer isso às outras pessoas? Mas é a minha costela de Arcanjo São Miguel. Eu tenho de derrotar o demónio. É essa a minha função no mundo. Está bem, é difícil, mas não está acima das minhas capacidades. Também vi a morte com os meus olhos e achava que não era capaz. Porque não agir de frente para o demónio? Porque o demónio ataca, porque magoa outras pessoas, porque não melhora o mundo, porque não muda nada, porque também nos magoa, etc. Todos os dias há uma desculpa. Mas há muitas coisas de que não me achava capaz e agora sou. Às vezes choro de raiva: de impotência, de dor, e, muito provavelmente, de honestidade. Também choramos quando somos honestos mas nos deparamos com um mundo filho-da-puta sem honestidade nenhuma, mas, acima de tudo, com pessoas que nos magoam e magoam amigos nossos, mesmo quando eles se acham as pessoas mais felizes do mundo, melhor, sobretudo quando eles se acham felizes e estão a cavar um buraco fundo para caírem. Deixamos? Não faz mal? Ou o universo está a desafiar-nos a não deixarmos?
O sonho desta noite fez-me suar e dormir mal, mas consegui ficar um bocadinho mais livre depois de falar com o padre Chaves. Sonhei que não tinha pernas, sonhei que tinha duas próteses. Primeiro uma, depois outra. Quando as tirava eu era meia pessoa. Era essa a metáfora: eu sou meia pessoa, não consigo andar. Preciso de andar. Tenho de andar. É urgente andar.
Então uns esforçam-se e outros têm a barriga cheia mesmo antes de serem gente? Como é? Dizemos que é a lei da vida, mas não pode ser. Há que fazer a nossa parte. A nossa parte. Não é deixar andar, deixar andar, deixar andar, a ver o que dá, como se resolvem as coisas. Temos de ser fortes, bravos, destemidos. Porra, temos de ser. Então eu vi a minha mãe morrer, que é tão difícil, e agora fico quieta?? Como os gregos, assimilei as características positivas dela: a força, a coragem, a sensatez, a ponderação. Mas estou há dois anos a ponderar onde ela já teria virado o jogo todo. Estou há dois anos a ver uma burguesa de barriga cheia, qual porco a viver num apartamento (como na história do Manuel Rui, Quem me dera ser onda) e ainda pondero? Pondero o quê? Se fosse filha da minha mãe já teria apanhado na cara. Quando eu tinha boas notas a minha mãe dizia-me «agora mantém ou faz melhor», mas não me fazia cócegas na barriga, nem dizia «coisa linda, quando cresceres vais casar com um bom partido». Então nós mulheres andámos séculos a lutar pela nossa independência, financeira e emocional, e agora aparecem burguesas de salto alto, armadas em boas psicólogas, a quererem casar por dinheiro e não por sentimentos? A serem recompensadas só por existirem e respirarem? A terem categorias e títulos comprados a granel? A acharem que podem humilhar os outros, sobretudo a acharem que podem humilhar esta investigadora honesta, com o casaco sujo de pizza de tomate, que não fala italiano mas faz amigos italianos? Em que mundo vivemos? Temos sempre de arriscar: ou queremos fugir ou queremos enfrentar o bicho. Porque o bicho às vezes não está bem, porque é como diz o Bruno Nogueira, a galinha tem asas e não voa. Assim sou eu: tenho asas e não vôo. Sou um bicho que não está bem. E não pode. O Vaticano inspira. O Arcanjo São Miguel está aqui perto e diz «Fernanda, avança». E o padre Chaves diz «gosto de pessoas como tu». E a Patrícia diz «Nem sabes a força que tens». E o meu marido diz «És uma pérola». E eu vou acreditar neles ou nas burguesas, acumuladas algumas delas num canto da minha memória? Outras por aí andam, a ver se magoam, se chateiam, se transtornam, mascaradas de pretensões altruístas e egoístas.
Um dia escolhemos. Escolhemos se queremos ser tolas e fúteis e arranjar um palerma qualquer para nos suportar os custos da existência, ou se queremos ser pessoas inteligentes e determinadas e lutar a sério, com armas sérias. Um dia escolhemos. Mas o final não tem muito a ver com isso. Na verdade não faltam atrasos de vida com bons empregos e boas vidas, sem pedras no sapato alto. E não faltam investigadores de casaco sujo na miséria, com botas de caminhada cheias de lama. Só que, na vida, temos visto que só há dois percursos: o rápido e o vagaroso. No caminho rápido, o preço é a nossa alma, vamos em frente e não olhamos para os lados. No vagaroso, tropeçamos em tudo e vamos aprendendo com os escolhos no caminho. Há ainda o caminho da Floribella, que fala com as árvores e anda a contar as pedrinhas. Esse é o caminho dos tolinhos, que acham que tudo é cor-de-rosa e corre bem, que vivem numa banda desenhada, à margem da realidade. Tenho aprendido outra coisa, nesta vida: um mentiroso nunca é derrotado. Se for diz que não. Mente.
Em Roma, não adianta. Fico cheia de dores, massacrada mesmo. Sou eu que transporto o meu computador às costas, meio dia ou todo o dia. Porquê? Porque fui eu que escolhi andar assim. Ninguém tem a culpa, só eu. Responsabilizo-me pelas minhas escolhas. Logo, ninguém tem de transportar o meu computador, nem de fazer o meu trabalho. À transparência, sou bastante honesta. A minha antítese é que não. Mas o mundo constrói-se assim: de antíteses e transparências.
4 Comments:
Tenho curiosidade em saber o que se anda a passar por aí... Estás, finalmente, a acreditar que tens força? A sério?? Toda a gente à tua volta já se tinha apercebido disso, excepto tu! Fico feliz, fico muito feliz!
Ó assim...é sensação que vai e vem, eu não acredito no Pai Natal!
O Bino tem perninhas dormentes e espírito titubeante. Haja paciência!
"Que a força esteja contigo" - Não, não sou uma taradinha do Star Wars, o que eu queria dizer é que tu tens mesmo uma força muito grande e não sei como podes duvidar dela. Até os Anjos falam contigo! (Os Anjos Anjos, não aqueles que cantam o "Ficarei, mais perto do céeeeu; Ficarei, mais perto do maaaarr") ;p
Este foi o teu melhor post (na minha opinião claro). E digo isto porque parece uma tomada de consciência, um acordar de ti mesma para uma capacidade que sempre tiveste mas que nem sempre soubeste usar.
Tu és forte. Quem não quiser acreditar que vá experimentar a tua força. E boa sorte...para essa pessoa!*
Ui! Patrícia Patrícia! Tu poderias escrever uma teoria da vida com todas as tuas boas ideias (excepto as amorosas, que são meio Morangos com Açúcar), mas no resto sabes, sabes mesmo. Não sei se tenho essa foça, mas vou experimentar. Estou já a experimentar. Na verdade fico chata antes de ir à luta, muito chata, medonha e neurótica. Mas na luta, mesmo que não ganhe, sou um bom desafio...
Quanto aos sonhos, o melhor é abrirmos as duas uma banquinha no Campo Grande de adivinhação e leituras da aura, é que somos mesmo mesmo boas nisso!
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