O desperdício
Acho que há muitas pessoas, muitas coisas, muitos pensamentos, que são um perfeito desperdício. E eu desperdiço-me neles, não sei bem porquê. Um dos livros de auto-ajuda que li, um dos muitos, dizia que uma das piores maneiras de gerir o stress é acharmos que os problemas vão para onde nós formos. Ou seja, quando estamos em casa pensamos nos problemas que temos no trabalho e vice-versa, quando estamos no trabalho pensamos nos problemas de casa. É uma bela maneira de não sermos bons em coisa nenhuma. Quando estamos num lado temos a cabeça noutro, ficamos fulos com aquilo que nos fizeram e disseram há tempos atrás. Eu sou uma pessoa muito pouco concentrada. Preciso mesmo de experiências como a leitura paleográfica: um segundo fora dali e já não consigo ler nada, fico danada e não rende o trabalho. Assim é a minha vida. Estou sempre chateada com coisas que não me estão acontecer agora, mas que me aconteceram ou eu acho que vão acontecer outra vez.
Roma também tem aquela doçura que permite esquecer isso. Por todo o lado há coisas que nos chamam a atenção e há uma beleza no ar que transborda, que passa por cima de nós e esmaga os nossos problemas, um a um. Aqui é o problema da língua, que não falo; do dinheiro, que tenho pouco e acho sempre que gasto muito; do trabalho e da falta de tempo para tudo. Aqui o problema é que não me apetece nada os problemas que tinha antes de vir, que ainda tenho e nos quais penso, que vêm ter comigo. As palavras chatas e duras das pessoas que me querem magoar. Aqui, eu sou eu, e só conta a minha bravura para ler os documentos do arquivo.
Porque será que eu tenho um gosto tão apurado e indigno para lixo? Levanto-me a pensar em lixo, passo o dia a pensar em lixo, deito-me no lixo que são os meus duros e intransponíveis pensamentos. Às vezes penso: porque sou eu assim? Porque me chateio tanto fora dos momentos e nos momentos não, passo por eles como se me estivesse a defender de uma chapada dada com força, remetendo-me ao meu instinto primário de protecção e de segurança. Tenho pouca capacidade de defesa.
Com esta vida e não com outra, dou por mim em idade de ter filhos. Quer dizer, em Portugal, nos dias que correm, temos filhos por esta altura. Essa é a última coisa que quero. Porque será? Porque será que acho os filhos sufocantes e insuportáveis? Porque será que acho que nunca vou ser capaz de educar nenhum? Porque será que a simples ideia de ter filhos me deixa infeliz? E porque será que penso nisso? Aqui só estou eu, uma investigadora. Porque haveria de pensar em filhos? Porque será que acho que com eles é que não consigo mesmo ser boa pessoa, só uma pessoa irritante e irritada com o mundo? Porque será que sou egoísta ao ponto de pensar que tenho pouco dinheiro e é para mim, nunca para eles, porque mereço tê-lo, trabalho para isso, esforcei-me e esforço-me até ao limite das minhas forças, porque raio haveria de partilhar o pouco que tenho com crianças?
Com esta vida e não com outra, dou por mim a pensar que gostaria de viver longe de Portugal muito mais tempo, um ano, dois, três. Não porque não goste de Portugal, mas porque acho a minha vida invariavelmente repetitiva e negativa. Encontro-lhe sempre um pendor de desastre, de pessoas que adoram irritar-me e ofender-me só com a sua arrogância, as suas palavras, ou simplesmente com a sua presença snob.
Porque será que, a esta distância de tudo e de todos, detesto tanto a educação que tive, em algumas coisas, e gosto dela, noutras, que me faz ser diferente das outras pessoas, e talvez por isso mesmo a única investigadora que oferece bombons aos senhores do arquivo?
Porque será que, a esta distância, ainda acho mais injusto ser mal tratada? Ainda acho mais injusto ser sufocada, dia a dia, numa educação ainda pior do que a que tive? Porque sou obrigada a isso? Porque será que, a esta distância, as filhas da puta que põem os namorados a trabalharem para elas em troco de um queca (que provavelmente também dão com outro que lhes dê jeito no seu percurso existencial), ainda me parecem mais filhas da puta, e eu ainda pareço mais diferente delas? Quem, como eu, guarda dinheiro para um presente especial para a Patrícia, que é uma das minhas melhores amigas, que está na Madeira, mas merece um presente com brilho e borboletas? Porque é que, a esta distância, ainda gosto mais da Patrícia, e ela me parece ainda melhor pessoa, mesmo falando com ela todos os dias?
Porque será que, a esta distância, o meu percurso isolado ainda me parece mais digno? Porque fui eu a fazê-lo, a trabalhar para ele e não esmaguei ninguém pelo caminho, simplesmente porque não sou assim?
Porque será que, a esta distância, certas pessoas são ainda mais nojentas e medonhas (e não me estou a referir aos japoneses), e me parece ainda mais triste as pessoas estarem umas com as outras por dinheiro e interesse, quando eu, que não faço isso, sofro tanto na minha relação de amor, pelas pessoas e pela vida, e ainda oiço impropérios, ainda sou obrigada a ouvir que poderia fazer muito melhor do que isto? Mas o que é melhor do que isto? Sua Santidade, o Papa, que se rodeia de luxos, que fala da fome como se tivesse conhecimento de causa, mas expulsa os pobres do recinto do Vaticano «para não parecer mal aos turistas»?
Porque será que odeio tanto o processo de aprendizagem pelo sofrimento? Não é para todos? Porque detesto tanto sofrer, mas mesmo quando não estou a sofrer, arranjo motivo para isso? Felizmente há a cúpula do Vaticano aqui perto que, não sei por que motivo, me acalma e adoça os pensamentos. Se Deus existe, Ele anda por aqui perto.
Acho que há muitas pessoas, muitas coisas, muitos pensamentos, que são um perfeito desperdício. E eu desperdiço-me neles, não sei bem porquê. Um dos livros de auto-ajuda que li, um dos muitos, dizia que uma das piores maneiras de gerir o stress é acharmos que os problemas vão para onde nós formos. Ou seja, quando estamos em casa pensamos nos problemas que temos no trabalho e vice-versa, quando estamos no trabalho pensamos nos problemas de casa. É uma bela maneira de não sermos bons em coisa nenhuma. Quando estamos num lado temos a cabeça noutro, ficamos fulos com aquilo que nos fizeram e disseram há tempos atrás. Eu sou uma pessoa muito pouco concentrada. Preciso mesmo de experiências como a leitura paleográfica: um segundo fora dali e já não consigo ler nada, fico danada e não rende o trabalho. Assim é a minha vida. Estou sempre chateada com coisas que não me estão acontecer agora, mas que me aconteceram ou eu acho que vão acontecer outra vez.
Roma também tem aquela doçura que permite esquecer isso. Por todo o lado há coisas que nos chamam a atenção e há uma beleza no ar que transborda, que passa por cima de nós e esmaga os nossos problemas, um a um. Aqui é o problema da língua, que não falo; do dinheiro, que tenho pouco e acho sempre que gasto muito; do trabalho e da falta de tempo para tudo. Aqui o problema é que não me apetece nada os problemas que tinha antes de vir, que ainda tenho e nos quais penso, que vêm ter comigo. As palavras chatas e duras das pessoas que me querem magoar. Aqui, eu sou eu, e só conta a minha bravura para ler os documentos do arquivo.
Porque será que eu tenho um gosto tão apurado e indigno para lixo? Levanto-me a pensar em lixo, passo o dia a pensar em lixo, deito-me no lixo que são os meus duros e intransponíveis pensamentos. Às vezes penso: porque sou eu assim? Porque me chateio tanto fora dos momentos e nos momentos não, passo por eles como se me estivesse a defender de uma chapada dada com força, remetendo-me ao meu instinto primário de protecção e de segurança. Tenho pouca capacidade de defesa.
Com esta vida e não com outra, dou por mim em idade de ter filhos. Quer dizer, em Portugal, nos dias que correm, temos filhos por esta altura. Essa é a última coisa que quero. Porque será? Porque será que acho os filhos sufocantes e insuportáveis? Porque será que acho que nunca vou ser capaz de educar nenhum? Porque será que a simples ideia de ter filhos me deixa infeliz? E porque será que penso nisso? Aqui só estou eu, uma investigadora. Porque haveria de pensar em filhos? Porque será que acho que com eles é que não consigo mesmo ser boa pessoa, só uma pessoa irritante e irritada com o mundo? Porque será que sou egoísta ao ponto de pensar que tenho pouco dinheiro e é para mim, nunca para eles, porque mereço tê-lo, trabalho para isso, esforcei-me e esforço-me até ao limite das minhas forças, porque raio haveria de partilhar o pouco que tenho com crianças?
Com esta vida e não com outra, dou por mim a pensar que gostaria de viver longe de Portugal muito mais tempo, um ano, dois, três. Não porque não goste de Portugal, mas porque acho a minha vida invariavelmente repetitiva e negativa. Encontro-lhe sempre um pendor de desastre, de pessoas que adoram irritar-me e ofender-me só com a sua arrogância, as suas palavras, ou simplesmente com a sua presença snob.
Porque será que, a esta distância de tudo e de todos, detesto tanto a educação que tive, em algumas coisas, e gosto dela, noutras, que me faz ser diferente das outras pessoas, e talvez por isso mesmo a única investigadora que oferece bombons aos senhores do arquivo?
Porque será que, a esta distância, ainda acho mais injusto ser mal tratada? Ainda acho mais injusto ser sufocada, dia a dia, numa educação ainda pior do que a que tive? Porque sou obrigada a isso? Porque será que, a esta distância, as filhas da puta que põem os namorados a trabalharem para elas em troco de um queca (que provavelmente também dão com outro que lhes dê jeito no seu percurso existencial), ainda me parecem mais filhas da puta, e eu ainda pareço mais diferente delas? Quem, como eu, guarda dinheiro para um presente especial para a Patrícia, que é uma das minhas melhores amigas, que está na Madeira, mas merece um presente com brilho e borboletas? Porque é que, a esta distância, ainda gosto mais da Patrícia, e ela me parece ainda melhor pessoa, mesmo falando com ela todos os dias?
Porque será que, a esta distância, o meu percurso isolado ainda me parece mais digno? Porque fui eu a fazê-lo, a trabalhar para ele e não esmaguei ninguém pelo caminho, simplesmente porque não sou assim?
Porque será que, a esta distância, certas pessoas são ainda mais nojentas e medonhas (e não me estou a referir aos japoneses), e me parece ainda mais triste as pessoas estarem umas com as outras por dinheiro e interesse, quando eu, que não faço isso, sofro tanto na minha relação de amor, pelas pessoas e pela vida, e ainda oiço impropérios, ainda sou obrigada a ouvir que poderia fazer muito melhor do que isto? Mas o que é melhor do que isto? Sua Santidade, o Papa, que se rodeia de luxos, que fala da fome como se tivesse conhecimento de causa, mas expulsa os pobres do recinto do Vaticano «para não parecer mal aos turistas»?
Porque será que odeio tanto o processo de aprendizagem pelo sofrimento? Não é para todos? Porque detesto tanto sofrer, mas mesmo quando não estou a sofrer, arranjo motivo para isso? Felizmente há a cúpula do Vaticano aqui perto que, não sei por que motivo, me acalma e adoça os pensamentos. Se Deus existe, Ele anda por aqui perto.
4 Comments:
Tu gostas mais de mim agora porque estou longe... Então era isso! Grande amiga! Daqui nada estás a dizer que quando eu morrer vais sentir muito a minha falta! :p
O PMA pode ter sido um grande erudito, muito boa pessoa, um anjo; mas para mim, o único sentido que deu à minha vida foi as amigas que me deu. E só por isso, paz à sua alma, e oxalá deus o salve da Langrouva!
"Se Deus existe, Ele anda por aqui perto." E por aqui também.
Também gosto muito de ti :)*
Lolo...claro, à distância tens outro brilho, ficarás mais brilhante ainda com o que te vou dar. Me aguarda!
Bjs.
Não é porque agora tenho um bebé nos braços que vou começar a apregoar os benefícios da maternidade como se tivesse sido a primeira mulher a parir um filho! A maternidade é um estado de um grande egoísmo mas, ao mesmo tempo, de uma grande generosidade. Um puto faz-nos ficar gordérrimas e barrigudas, sempre com a roupa a cheirar a vómito e cabelos em desalinho, rouba-nos todos os minutos do dia mesmo quando está na escola, porque há um cordão umbilical invisível que nunca é cortado! E faz-nos idem passar horas a tentar perceber se estamos a agir bem, ou momentos em que achamos que a criança merecia mãe melhor. Há momentos profundamente difíceis de enfrentar. Porém, todas as coisas têm um outro lado. Nunca eu tinha vivido com a cabeça tão no presente. O passado que sempre me atormentou e o futuro que me assustava deixaram de existir a partir do momento em que soube que tinha um hóspede na barriga. Adeus depressões, maus estados de alma, excessos de insegurança e complexos de inferioridade. Não sou uma pessoa mais forte; sou uma pessoa menos fraca. Não fui ao calendário apontar a melhor altura para emprenhar; permiti que o acaso resolvesse o assunto, porque sabia que nunca teria coragem para assumir que "esta é a altura certa"! Um filho é uma experiência de vida, das mais complexas que podemos ter, que põe em causa tudo o que somos e o que queremos ser e que, em última instância, revela aquilo que realmente somos. Claro, se tivermos olhos para ver!
Lisa, sabia que ias responder pela positiva à questão da maternidade, que no fundo defendeste. Mas a meternidade também depende do contexto. E o contexto actual da minha vida leva-me a descrer a maternidade. Gente a respirar ao meu ouvido enquanto dou de amamentar não. Todavia, acredito em tudo o que disseste, e acho que mais tarde ou mais cedo o meu coração vai pender para esse lado, o dos narizinhos fofos mas ranhosos, como o do Segito.
Post a Comment
<< Home