Wednesday, October 25, 2006

Olho por olho, dente por dente

É um provérbio ou ditado árabe, que muito tenho analisado neste blogue e também no anterior. É um ditado simples e honesto, que quer dizer tão simplesmente, se me fazes merda, também te faço a ti. Conversei muitas vezes com a minha amiga Diana acerca dele, e parece-me que concordo com ela, sob todos os pontos de vista: não é um ditado inteligente, nem sensato (a sensatez também é parte da inteligência). Ficariam os nossos problemas resolvidos, se tudo fosse olho por olho, dente por dente? Bem, certamente o nosso espírito descansaria com uma vingançazinha torpe, mas, com toda a sinceridade, resolveria o problema?

O budismo assenta a maior parte da resolução dos problemas no perdão: perdoar a nós próprios, em primeiro lugar, e depois aos outros. Termos força e brilho (na acepção cool da Patrícia França) é a única maneira de ajudarmos os outros. E ter brilho não é só usar o Pantene ProV. É muito mais do que isso: é ter garra, ser empreendedor na vida, saber respeitar os nossos limites e os dos outros, saber mandar, saber dispor das armas humanas que são o corpo e a alma e, acima de tudo, fazer da vida uma luta limpa e transparente. Tenho a enorme felicidade de ver a minha vida preenchida por pessoas que considero serem assim. Não estou a dizer que são pessoas perfeitas, porque ninguém é. Todos têm as suas fraquezas, os seus mimos, os seus defeitos chatos, os seus silêncios incómodos, os seus ruídos. Mas são transparentes, coerentes, limpos como os choquinhos sem tinta. E eu gosto disso nas pessoas, gosto de me rodear dessa harmonia.

Evidentemente que, mesmo sendo uma pacifista, que acho que sou, muitas vezes sou tentada ao olho por olho, dente por dente, porque apetece, porque está na natureza humana, ou só por birrice. Também porque desvalorizamos o movimento perfeito do universo, temos uma visão redutora. Eu tenho, pelo menos. Acho que as pessoas saem incólumes de grandes erros. Acho que os hipócritas vencem. Acho que as mentiras dos mentirosos são frutuosas. Acho que a corrupção prolifera, tem tentáculos, está em todo o lado, em todas as pessoas, em todas as casas. Parece que temos de pagar taxas para tudo, até para respirar. E, acima de tudo, não vejo punições exemplares para imoralidades chocantes, na sociedade como na vida pessoal. O olho por olho sabia-me bem. Tipo câmara omnisciente da vida. Ser Deus um dia. Condutor que passasse com o carro por cima de uma poça de água de propósito e molhasse transeuntes tinha como castigo a casa inundada, por exemplo. Só a ver se gostava da sensação da roupa ensopada ao final do dia (corninhos a nascerem-me na cabeça…). Outra. Pessoa que fosse incorrecta no balcão de atendimento, a seguir à hora de expediente ia ao supermercado e toda a gente era malcriada para ela. Por exemplo. Depois isto ia aumentando, até se fazer luz no espírito da pessoa. Por exemplo. Gaja que andasse a enganar o namorado a seguir tinha outro que a tratasse bem mal. Ou vice-versa. Aluno que fosse mal educado para o professor seria um professor com problemas em disciplinar os alunos.

Mas não é assim. As pessoas não são coerentes. Por exemplo nas relações humanas. Há namorados com quem mantemos uma relação de submissão e outros não. Depende das pessoas, da idade, das circunstâncias de vida, da maturidade. Só temos de amar e ser compatíveis, na realidade é isso. Só que a compatibilidade varia consoante os nossos objectivos de vida. Se queremos ser felizes procuramos uma pessoa que defende os mesmos valores do que nós e nos transmita harmonia, alegria de viver. Não vamos escolher uma pessoa negativa, que saca de nós o melhor e o pior ao pontapé, que se relaciona mal com todas as pessoas de quem gostamos e que não nos inclui na sua vida senão por interesse. Porque será que muitos de nós gostamos tanto de relações medíocres, baseadas na superficialidade e escudadas na norma «estou velho para procurar». Na selva, se um animal fica de lado porque é velho, é morto, comido pelos outros. Por isso na vida, mesmo na amorosa, devemos ser lutadores e não nos contentarmos com o mínimo que podemos ter. Quem senta o cu na mediocridade, medíocre é.

Se às vezes a vida prega partidas e é mesmo como eu estou a dizer, colhemos os frutos daquilo que semeamos, e portanto se semeamos a discórdia, colhemos a discórdia, se semeamos a bondade colhemos a bondade, a vida não tem essa justiça exemplar, o que é uma pena. Muitas vezes semeamos a bondade em locais nos quais ela não dá fruto. E muitas vezes semeamos a discórdia onde não valia a pena. É uma questão de ajustarmos a forma ao conteúdo, eu acho. Quando eu aprendo uma coisa, tenho de perceber se posso ou não mostrar que a aprendi. Muitas vezes, se eu disser a que conclusões cheguei posso ser tratada abaixo de cão. Nem todos somos movidos pela vida espiritual. É a história do costume: como digo eu a um materialista que essa via não é a melhor? Não posso. Ou melhor, posso, mas talvez nunca mude aquilo que está mal, ou que eu considero estar mal. O que nos leva a nós, seres humanos, a pensar que estamos a agir bem? É a velha história do burro. Havia um velho, um rapaz e um menino, que levavam um burro. As pessoas passavam e chamavam-lhes tolos: então o burro não serve para carregar pessoas? Sentaram-se os três no burro. Passavam as pessoas e diziam: ena, três marmanjos em cima de um burro! Pobre burro. Desceu o velho. E as pessoas: pobre velho, é o único que vai a pé. Desceu o homem: pobre burro, a carregar com um velho e uma criança! Desceu a criança: pobre criança, a única que vai a pé e os dois adultos sentados. Por fim, velho, homem e criança acabam por carregar o burro aos ombros. Se a história não é assim, é parecida. Significa que a moral está na perspectiva de cada olhar, e se fizermos a nossa moral com base na dos outros acabaremos por cair em soluções estúpidas, como carregar o burro aos ombros. Por isso, é sempre mais seguro agirmos segundo a nossa moral e não a dos outros. Todavia, mesmo que arranjemos a tal «moral provisório» de que fala Descartes, temos de ter cuidado para não sermos traídos por ela. Somos seres humanos. Nem sempre somos coerentes, perfeitos e não somos eternos, existimos hoje e agora, e nada mais. O resto é memória contida no cérebro (e no corpo, porque também somatizamos) e o futuro não passa de ilusão.

Seja com que moral for, desiludimos sempre alguém que não pense como nós. Quem não aposta na harmonia e no amor vai achar-nos tolinhos à procura do Santo Graal. Quem não aposta na superficialidade e no materialismo, vai chocar com a moral provisória de quem se tenta adaptar às circunstâncias do mundo contemporâneo. É o relativismo axiológico. Deixa de existir o bem e o mal, passa a existir o mais ou menos, o virtual, o «homem-espuma» do Manuel Antunes, que é um homem sem firmeza de convicções e de valores morais. E é esse o grande mal. Caídas as balizas principais que nos orientam, na vida, quem somos nós? Somos olho por olho, dente por dente. A sociedade é injusta, eu sou injusto. A sociedade é torpe, eu sou torpe. A sociedade vive na ignorância, eu vivo na ignorância. A sociedade estimula o consumo, então eu consumo. A sociedade é fútil, então eu sou fútil. A sociedade promove o materialismo, então eu sou materialista. A sociedade promove que nos lixemos uns aos outros sem dó nem piedade, então é o que eu faço. A sociedade criou um conceito de sucesso ao qual tenho de me adequar sob pena de exclusão, desse conceito fazem parte: uma profissão bem remunerada onde hierarquicamente eu possa subir; um casamento harmonioso e rentável, mesmo que não seja por amor; um título académico, de preferência elevado, mesmo que tenha sido conseguido com o trabalho dos outros; filhos, mesmo que sejam criados por outras pessoas; uma casa com algum luxo; relações de amizade aparente com pessoas que me façam subir na vida, ou seja, relações de interesse; um carro topo de gama (ou um namorado com um carro topo de gama); valores morais só apregoados; um amante que me dê uma vida sexual de que eu goste. Em suma, queremos ser burros a serem transportados por pessoas burras, que nos carregam às costas e tenham trabalho e valores morais por nós. Assim, ficamos à sombra.

Agora a antítese, porque este blogue fala de antíteses, também. O sucesso não pode ser ditado pelas regras da sociedade. Se eu quero ter sucesso, tenho de procurar a felicidade que subjaz no simples facto de eu existir, de ter amigos, saúde, de haver dias de sol e de chuva. Na verdade, dita a sociedade que eu trabalhe e tenha uma profissão. É difícil ter uma profissão que eu goste e pague as minhas contas, mas devo trabalhar para isso, mesmo que hierarquicamente não possa mandar em ninguém. Os títulos académicos devem ser tirados por quem tem vontade e capacidades, mas não são fonte de felicidade, só de orgulho pessoal. Devemos pedir ajuda no que não sabemos, sem no entanto dependermos dessa ajuda para ler, escrever, pensar, construir uma tese. Devemos separar as relações de amizade e de amor de todas as outras. As outras são relações superficiais, que também podem ser muito positivas, que nos podem dar balanço para uma vida melhor, sem todavia lambermos o cu a ninguém (perdoem a má criação), vulgo graxa. Quem tem capacidades não precisa de dar lustro ao patrão. Em qualquer relação, devemos promover as capacidades dos outros, não as incapacidades, falhas, defeitos, ou aproveitarmo-nos da circunstância de alguém ser mais ingénuo ou mais frágil do que nós. Na fragilidade devemos dar força, para discutirmos os assuntos e vivermos a vida em igualdade de circunstâncias. Se formos amigos, falamos com os amigos e chamamos a atenção naquilo que não concordamos, com respeito e sem insistirmos. Nem sempre termos razão. Temos de saber ganhar e de saber perder. Perceber que ninguém é o seu carro, a sua casa, as suas roupas, as suas jóias, e nem mesmo as suas palavras. Ninguém é o seu casamento, os seus filhos, a sua profissão, o seu curso. Ninguém é só o seu corpo nem só a sua alma. E para terminar, não devemos ter um amante (é agora que vocês se vão rir à gargalhada) porque é desonrarmos tudo e mais alguma coisa, aí até falhamos em termos jurídicos. Do mesmo modo, não devemos manter um casamento infeliz, porque a vida é muito muito curta e nunca sabemos quando é a nossa vez de irmos embora, como diz a minha avó.

Eu acredito nestes valores, e não, não sou nada boazinha, até porque acho que devemos ser críticos activos em tudo, na vida. Não digo é que esteja certa. E compreendo não ser popular ou socialmente frutuoso aquilo que acabo de enunciar. Mas eu e a Patrícia França andamos numa onda de Deepak Chopra, e de recordar as coisas pequenas e boas da vida, como almoçar sob chuva no jardim do Campo Grande, almoço de pobre, comprado no Modelo ali ao pé, a ver transeuntes das obras armados em mete-nojo a piscarem-nos o olhito…isso é que era vida!

2 Comments:

At 2:53 PM, Blogger XaninhA said...

"A lover knows only humility. He has no choice. He has no choice... Do you love yourself more than you love me?..."
Viva o Deepak! O Deepak é que a sabe toda! Aposto que o Deepak, se conhecesse o jardim do Campo Grande, também ia para lá almoçar com os amigos. E gostava. Tanto quanto nós gostamos. :)*

 
At 5:19 AM, Blogger fercris77 said...

Excelente frase...o amor só conhece a humildade. Gostei muito. É isso. O tipo não é de lagostas suadas, quer é folhados de salcichas e empadas de frango do modelo.

 

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