Tuesday, October 17, 2006

O brilhantismo que a vida não tem

Já aqui disse muitas vezes que gostava de ser uma pessoa brilhante, com muitas capacidades intelectuais, daquelas que se formam com médias altas e irrepreensíveis. Mas, para além de obtermos emprego de uma forma mais rápida e eficaz (e certamente pelo motivo que me é, pessoalmente, mais caro, a competência), e provavelmente ninguém ter espaço para duvidar que somos, de facto, inteligentes, por vezes serve de pouco a inteligência que mais facilmente classificamos como inteligência, demonstrada nas boas notas e no bom emprego que obtivemos, nas línguas que falamos, na nossa capacidade de escrita ou de memorização de factos e datas, na nossa capacidade de raciocínio lógico. Para já, só uma pequena percentagem da população tem esta inteligência quase atómica, potencialmente transformadora da sociedade. Eu disse potencialmente, porque conheço muitas pessoas com uma inteligência média que conseguem fazer milagres com o pouco que têm. Sinceramente, não querendo exibir-me, a autora deste blogue é uma dessas pessoas, nada brilhantes mas muito esforçadas. Se há uns anos atrás me dissessem que estava a terminar um mestrado e a apresentar conferências, eu ter-me-ia rido às gargalhadas. No entanto, bem lá no fundo, foi o que eu sempre quis, mas não acreditava que conseguisse fazer. E ainda hoje tenho imensa dificuldade em gerir aquilo que consigo ou não fazer, melhor dizendo, aquilo que acho que consigo ou não fazer. O Walt Disney tinha uma frase lapidar, que era: “ Se consegues pensar é porque podes fazer “. Talvez seja nisso que nos tenhamos de concentrar.
Ser brilhante não garante nada a ninguém: nem um emprego. Há muitas mentes brilhantes que nunca foram descobertas, e não, não têm de ser os nossos filhos disléxicos e hiperactivos, esses provavelmente só são disléxicos e hiperactivos, não necessariamente brilhantes. Isto significa que temos de nos concentrar no mais importante: brilhantes ou não, convém termos um emprego (de preferência de que gostemos e conseguido com o nosso esforço), convém conseguirmos pagar as contas, convém termos amigos, boas relações familiares, capacidade mínima de comunicação com os outros. Isto vale para a pessoa mais inteligente e menos inteligente. Apesar de ter alguma inteligência, acho-me muito má em quase todos os campos que acima defini: não acho boa a minha capacidade de sustentação (sempre fui dependente, o que muito me irrita), nunca achei que tivesse boas relações familiares e falho imensas vezes na minha capacidade de comunicação com os outros. Gostava de ser mais radical a cortar com o que não gosto que me façam, porque desse modo não se voltaria a suceder. Em suma, gostava que a minha inteligência, como eu, fossem mais pacíficas, menos impulsivas, mas mais firmes. Só que somos aquilo que somos (às vezes nem sabemos bem o quê), e portanto tudo o que queremos é uma conquista regular que se vai conseguindo passo a passo. Ou não. Ou ficamos naquilo que achamos que somos.
Depois temos inúmeros casos contrários àquilo que acabei de dizer, portanto, inúmeros casos que são a antítese daquilo que eu acho que sou (o que também está no domínio na especulação, obviamente, que certezas tenho sobre mim própria?). Pessoas desprovidas da graça da inteligência, mas providas de outras graças, às vezes visíveis, outras vezes não, mas que vemos subirem na vida por meios menos honestos, mas certamente mais eficazes. Essa é a razão pela qual muitos colegas do mestrado começam a dar aulas na universidade, sem no entanto terem sequer notas para isso, e outros pobres coitados (como eu) ainda acreditarem numa coisa chamada «trabalho». Essa é a razão pela qual muitos estudantes compram trabalhos na Internet por doze euros, como vinha hoje noticiado no jornal «Metro», com erros e tudo. Essa é também a razão pela qual algumas raparigas e alguns rapazes ficam à espera de encontrar quem lhes faça os trabalhos do mestrado e a tese. Significa que muitas pessoas se encostam à inteligência das outras, e às vezes passam pelo mundo sem se dar conta disso. Mais ou menos, nem todos somos burros. Eu dou conta. E certamente as pessoas que trabalham com gente dessa estirpe dá conta também. É fácil percebermos que há colegas trapaceiros que gerem bem a manipulação de sentimentos dos outros, o que também, diga-se de passagem, exige alguma inteligência, exige um «esquema» pré-definido. Com estas pessoas convivo ao mínimo, crio a maior clivagem de distância que eu conseguir. Em primeiro, porque representa uma grande injustiça para comigo e para com todas as pessoas que se esforçam e fazem o seu trabalho sozinhas. Em segundo, porque a corrupção bloqueia o mundo, e trabalharmos com capacidades que não são nossas é isso mesmo: bloquear o livre curso das coisas. Em terceiro, porque estamos a utilizar as pessoas numa finalidade que elas não têm, como princípio moral e ético: serem objectos ao nosso serviço e dispor.
No meu blogue tenho sido uma objectora de consciência bastante feroz: tenho essa percepção. Mas uma pessoa rígida com os outros, também o é consigo própria, não saio mais bem tratada na minha escrita do que as outras pessoas. Gostava de ser mais condescendente sem ser burra, mas ultimamente tem sido impossível. Cada vez mais, o Boss AC tem razão: o Pai Natal dá aos meninos (e meninas) mal comportados condomínios fechados, que é como quem diz, Deus dá nozes a quem não tem dentes. O contrário será melhor, quem tem dentes afiados quebra melhor as nozes: se não as tiver, inventa-as. Muitos de nós somos bons construtores de nós mesmos, mas não temos conteúdo palpável, assinalável, considerável no universo do brilhantismo, que é como quem diz, das coisas boas merecidas.
Lembro-me de um filme, bastante estúpido, acerca de um homem que, zangado com o facto de ter perdido a sua namorada, resolve vingar-se de Deus quebrando os mandamentos um a um. O início do filme é numa praia paradisíaca, onde a namorada do rapaz se afoga. No início a postura do homem é: “ Que fiz eu para merecer tantas coisas boas? “, no final “ Porque me castigaste, Senhor? Agora castigo-Te eu, sendo um mau espécime, não seguindo o teu exemplo de bondade e perdão “. Parece-me que esta é uma postura humana bastante comum: a maior parte das pessoas vinga-se do que não tem nem consegue ter procurando infringir regras comuns, básicas, isso dá uma sensação de poder falsa, aparente, mas agradável ao ego. A pessoa diz a si própria “ Eu consegui pelos meus próprios meios “. Como nunca se está satisfeito (o que também é humano), a atitude será sempre a de tentar que os outros sigam a sua esteira, idolatrem essa atitude, tendo como fim a prossecução de objectivos previamente definidos e o ego inchado. Quando se chega ao fim, porque pessoas destas também envelhecem, não sei bem qual será a atitude, mas provavelmente serão pessoas perdidas, amargas, solitárias, apesar de morarem na casa dos seus sonhos. É a velha história da «Gata Borralheira» da Sophia de Mello Breyner: a sua personagem é obrigada a decidir se quer ficar pobre ou se quer casar com um homem rico. Escolhida a segunda opção, a vergonha da pobreza, do sapato roto perdido numa festa, dos risos trocistas dos outros perseguem a rapariga, que morre de tristeza. Muitos de nós apostam numa vida muito pouco brilhante em espiritualidade, muito cheia de outras coisas, que os outros nos podem providenciar com dinheiro, com alguma ingenuidade e sendo maleáveis.
Quando somos duros que nem estacas, por muitos valores que tenhamos, somos sempre pessoas mais tristes. Porque não cedemos ao brilho da aparência e andamos sempre a mergulhar mais fundo. Só que mais fundo estamos nós, o que por vezes é assustador. A esse mergulho chama-se consciência. Nem todos estamos interessados nela, alguns até a ignoram. Afinal, sem ela tudo nos corre bem. Como é assim, as estacas da nossa vida vão fora, só boiamos no universo, à deriva, chocando com quem calha. Se eu tivesse a certeza de que isto era um puzzle, diria que encaixamos muitas vezes em peças erradas, para aprendermos a lição que o universo nos tem a dar. Mas não me parece. Muitos de nós sofrem de cegueira congénita. Não vemos nem vamos ver. O que aparenta chega. E para quem aparenta melhor ainda. Mas não chega. Quem aparenta quer aparentar mais e cada vez com menos escrúpulos, com menos doçura, com mais vantagens e ganhos. Todo o nosso percurso é de uma imensa solidão, quase desesperante. Porque pensamos e não dizemos, porque queremos mudar e não podemos, porque queremos ser neutros mas a consciência não aguenta ser tão enganada, porque nos achamos felizes mesmo sendo tratados como idiotas a ver falsas sombras, porque não queremos mudar nada que abale as nossas crenças, e se crescemos a acreditar no amor, então achamos que ele está em todo o lado e pintamos o mundo de uma cor bonita. E chega. Basta. Fim. As minhas ideias e palavras não contam perante a desonestidade açambarcadora de outras pessoas. Merda. Afinal não adianta nada reclamar dos outros. Os outros somos nós, por simbiose, por silêncio, por conivência, por retracção, por parvoíce, por dor, espelhamos a falta de brilhantismo dos outros todos os dias.

2 Comments:

At 8:26 AM, Blogger Brisa said...

Talvez nunca venhas a conseguir mudar o mundo, lamento muito. No entanto,consegues mudar muita coisa ao teu redor e de que nem sequer te apercebes. A seriedade com que conduzes a tua vida, a coerência que transmites no teu dizer e no teu fazer, e esse humor brilhante são ar que se propaga. A uns, a indiferença espiritual só permite que se revele muito tempo depois; a outros, o contágio é rápido. Tu não mudas o mundo. Mas fazes pensar. A sério.

 
At 5:20 AM, Blogger fercris77 said...

Querida Brisa: é bom saber que a nossa existência faz sentido, nem que seja só para alguns escolhidos, que são provavelmente as pessoas de quem gostamos e que por isso se deixam influenciar por nós.
De facto não podemos mudar o mundo, e temos muitas vezes de nos adaptar a falhas incompreensíveis, mas é desse esforço de adaptação que a nossa vida se constrói, também.
Um grande beijinho para ti.

 

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