Sunday, October 01, 2006


África Minha

Ao longo da história, houve sempre (e haverá sempre) estranhos fenómenos de pertença identitária a um lugar que não é o nosso de nascença, e às vezes nem temos um contacto assim tão próximo que possamos dizer: eu sou daqui. A nossa terra natal, mesmo que nos envergonhe e humilhe em algumas situações, e achemos que na Islândia ou na Holanda ou na Alemanha ou na Inglaterra ou até na vizinha Espanha é tudo muito mais evoluído, acabamos por ter uma razão (ou mais do que uma) para amarmos o nosso país de origem. A mim custou-me muito gostar de Portugal, sempre achei um país de terceiro mundo, fechado, macabro, saloio, de costumes demasiado brandos, de gostos duvidosos e com a mania do novo riquismo, ou seja, com uma faixa enorme de pessoas sem cheta mas que se acham da melhor raça e estirpe. Em Portugal, as pessoas que têm dinheiro, algum ou muito, não o dizem nas revistas nem à boca cheia, simplesmente gastam-no em coisas que lhes pareçam úteis e confortáveis.
Quando viajo dizem-me sempre o mesmo: é assim em todo o lado, Espanha e Itália também são como Portugal, e apesar de nos acharmos pouco evoluídos, é preciso entendermos uma coisa: temos muitos recursos excelentes, a todos os níveis: temos boas cabeças (infelizmente muitas são obrigadas a emigrar), bons especialistas, bons sentimentos, boas pessoas. Mas no meio urbano é a selva pura e dura, e sempre que regresso a Lisboa penso: que se passa com as pessoas? Que aconteceu para nos fecharmos dentro de carros em bichas intermináveis, a buzinar, a resfolegar, a atropelar? Ainda estranhamos ficar doentes quando afinal a própria vida é isso mesmo, uma doença, uma dor de cabeça?
Eu gosto da experiência de viajar, com conta, peso e medida. Nunca fui de andar de mochila às costas sem saber onde dormir, nunca gostei disso, porque me retira a concentração naquilo que quero entender: como são as pessoas nos outros países? Vivem como eu? Pior do que eu? Como falam as pessoas umas com as outras? Como cuidam dos filhos? Sou uma verdadeira National Geographic Woman, gosto de me colocar a postos para fazer observações sociológicos e antropológicas que me enriqueçam. Por isso adoro África. Posso ter gostado de ir a Londres, a Roma, a Barcelona, todas cidades gigantes, cheias de barulho, como Lisboa, e com milhentas distracções. Mas em S. Tomé e Maputo a distracção é outra, pois temos de nos concentrar no que é viver abaixo de toda e qualquer possibilidade económica: de ter água potável, de ir à escola, de andar calçado, e mesmo perante isso, encontramos crianças em Bazaruto que nos escrevem cartas de agradecimento e são simpáticas connosco (a Bazaruto não fui, só estou a contar o que outros turistas me disseram), em S. Tomé encontramos pessoas que nunca viram brancos e que, mesmo com os filhos doentes nos diziam " Toca nele que dás sorte! ", achando que um branco trazia consigo a promessa de cura.
Em cidades africanas, encontramos o mais básico de nós próprios, antes de termos a imensa ganga que nos foram colocando por cima, de educação, de valores, de moralidade, de sentimento, se é que isso nos foi alguma vez ensinado, porque quando não foi o efeito é desastroso, tornamo-nos uns pedantes sem miolo e só com casca. Ali as pessoas têm miolo, mas há pouca casca para partir. Vê-se o que é, à transparência, no seu melhor e no seu pior. Vê-se os negros a desenrascarem-se de todas as formas e maneiras possíveis, risíveis para nós, brancos evoluídos, ocidentais. Ali a filosofia é «se não há, arranja-se», por isso furos, pneus suplentes que não servem ou caem no chão se não forem atados ao carro com cordel são constantes que nos parecem hilariantes mas que têm um significado: ali está tudo a uma distância infinita, no entanto as pessoas param para ajudar, sem a desculpa de terem horários a cumprir. Um branco a viver em África é o chamado «bolicao», branco por fora negro por dentro, porque tem de agir de acordo com um jogo de cintura que não está previamente estabelecido. Ao sermos apanhados desprevenidos nesse jogo, caímos nas mãos de muita gente insensata e corrupta, por isso África também é lição e ensina isso mesmo: cuidado com o próximo, pode estar a jogar contigo. Se é verdade que a pobreza e a falta de recursos provoca a corrupção e a proliferação dos mercados paralelos, também é verdade que países evoluídos sofrem do mesmo mal. Por isso, talvez a desonestidade se distribua equitativamente. Ainda tenho de viajar mais para saber isso, ou estudar mais este assunto.
Voltando à minha questão de identidade. A minha ligação a África nem faz sentido nenhum: não nasci lá, não fui para lá, não tenho familiares de lá, e os meus amigos que lá nasceram são brancos. Só que no meu caminho, nas minhas leituras, no meu percurso pessoal África apareceu e ficou. Desde os dezasseis anos que leio Nadine Gordimer, desde essa idade que a África do Sul me desperta toda a curiosidade do mundo. Depois na faculdade vieram os estudos africanos, os autores angolanos, moçambicanos, caboverdianos, brancos e negros, a mestiçagem, a gastronomia e as danças africanas. Coincidência ou não, houve negros que se apaixonaram por mim, eu apaixonei-me por negros e mestiços, e os meus namorados brancos eram todos de Luanda. O meu mestrado é em literatura angolana, com incursões na cultura africana. Na faculdade ensinavam-nos sempre que cultura é um conjunto sedimentado e enraizado de inúmeras coisas: arte, dança, gastronomia, costumes. Desfaziam-nos a ideia completamente estereotipada de que há culturas mais ou menos evoluídas. África ensina-nos isso, também. Aprendemos que nem tudo na vida é linear, que há pessoas a viver em palhotas e musseques que aprenderam a sobreviver de forma exemplar às intempéries. Nós não sobrevivemos nem ao ar condicionado.
O meu primeiro dia em Maputo, como o meu primeiro dia em S. Tomé, foram de completa estranheza perante o outro, perante uma nova identidade, um novo mundo confrontado com o dos livros, com o da faculdade, com o das minhas leituras. Há muitos anos, uma amiga minha ensinou à filha, na altura com dois anos, que os pretos eram feitos de chocolate. Até hoje acho a ideia fantasiosa, mas muito bonita. S. Tomé revelou uma simpatia nas suas gentes que Maputo não teve. O confronto com o colonialista era evidente e o espírito de guerra e destruição latente. Eu e o Pedro fomos olhados de forma estranha, de lado, de frente, de trás, de soslaio, com raiva, com tristeza, com indiferença. Raras vezes vi alegria. Vi pessoas a viver ao lado dos caixotes do lixo, vi buracos gigantes por fechar, vi crianças a mendigarem junto à estrada ou a atravessá-la como gazelas assustadas. Vi outro mundo, que é o meu mundo, mas virado do avesso. Como dizia a avó Nana, turista que também foi connosco ao Kruger Park, na África do Sul, não sabemos o dia de amanhã. E se agora perdêssemos tudo? O dinheiro, o estatuto, o conforto, o poder fazer, o poder sermos nós? Será que em Portugal nós podemos ser nós, sem tudo o que nos rodeia e é familiar? Não sei, mas desconfio que a avó Nana sabia do que falava. Era a sabedoria do mais velho, que na cultura africana é respeitada, mas aqui nem por isso. Nas manadas de elefantes é também o mais velho que comanda e dá sinal para os outros avançarem. Com os animais também aprendemos coisas exemplares. Os leões são os reis «chulos» da selva, como dizia a guia turística, pois são as fêmeas que trabalham, criam os filhos e ainda caçam para eles. Mesmo grávidas vão à caça, apesar de rapidamente se cansarem. A leoa assusta-me. É forte, capaz, violenta, mas submissa ao leão, que me parece um monarca enfastiado. Também a girafa come as folhas das árvores de forma mais submissa, para além de se dar ao trabalho de parir de dois metros de altura, pelo que tem de ter cuidado para a cria não se aleijar, mesmo no meio da sua dor. As fêmeas da selva são assim.
Os búfalos são também animais de grande porte. Ranhosos e com um olhar penetrante, que à distância dos binóculos me pareceu terrivelmente assustador, o búfalo em manada não permite brincadeiras, todavia sozinho está à mercê do leão. Eis uma lição que ainda não aprendemos, que juntos somos mais fortes contra inimigos temíveis, de dentes afiados, como a morte, a doença, a corrupção. E temos as zebras, que são todas diferentes, embora pareçam todas iguais, e que juntas confundem o predador, com as suas listas intermináveis. Também um bom exemplo de trabalho em grupo. Finalmente, e entre muitos outros, há o palhaço da turma: o macaco-cão. Fingido, traiçoeiro, aparvalhado, mas muito perigoso com os seus dentes afiados e os seus dedos ágeis.
Perdi a conta à quantidade de impalas que vi, às quais a avó Nana simpaticamente chamou «um croquete para o leão», apesar de ter muita pena delas. Muitas traziam, tal como os hipopótamos, dezenas de pássaros colados ao tronco, a catarem as porcarias e os parasitas. Uma relação de cooperação mútua, porque nem os pássaros aleijam os animais, e estes agradecem a desparasitação grátis.
África tem este chamamento que ninguém sabe explicar, pelo menos para alguns de nós é o supra sumo da completude e da harmonia, da cor, da vida, da selva. E tem o outro lado, a selva urbana, cheio de raiva, de dor, de pobreza, de segundo plano, de terceiro mundo, assim definido pelos países ocidentais mais ricos. A ideia de que o negro é torpe, estúpido, preguiçoso cai por terra quando madrugamos e vemos as senhoras negras a levar os filhos agarrados ao corpo, dentro das suas capulanas, para trabalhar na terra, nas vendas, nos mercados. Têm um olhar perdido e triste, desgraçado. A ideia ocidentalizada de que visitar África é conhecer os quatro cavaleiros do apocalipse é comum, mas visitar Lisboa à hora de ponta parece-me muito semelhante.
Nunca tive viagens de «dolce fare niente», tirando as que fazia ao Algarve, que mesmo assim davam muito trabalho à minha mãe. Não sou boa em geografia, por isso ruas e mapas escapam ao meu entendimento, embora aos poucos vá melhorando este meu handicap. Mas pessoas, costumes, olhares, cores, formas, texturas, não escapam. Ficam. Permanecem. Duram. Não vou esquecer o olhar perdido das pessoas em Maputo, sobretudo das mulheres e das crianças. Não vou esquecer os buracos, a sujidade, as vendas ambulantes por todo o lado e a insistência mal-educada dos vendedores, que nos seguiam, chamavam, gritavam. Não vou esquecer as ruas interditas a pessoas, mesmo sem nunca ter percebido porquê, mas com certeza com histórias macabras por detrás. Não vou esquecer as empregadas do Pestana Kruger, sobretudo a cozinheira, que cantava gospel enquanto cozinhava.
Não vou esquecer o leão ao lado do jeep aberto no safari nocturno, nem dos pássaros amarelos e azuis que roubavam comida dos pratos dos turistas, nem dos morcegos a hibernarem por cima da minha cabeça, à hora do almoço, indiferentes ao que os rodeava e aos flaches dos transeuntes. Não vou esquecer aquele búfalo que só com o olhar nos mandava embora, nem o macaco-cão que veio espreitar à carrinha enquanto outro comida açúcar do chão, ou o crocodilo que o Chris (outro guia) disse estar ali há mais de cinco anos, e que baptizo de Salazar, graças ao comentário da avó Nana, que disse que nós levámos mais tempo com o Salazar. Não vou mais esquecer as pestanas da girafa, de meter inveja a qualquer senhora maquilhada, nem dos elefantes bebés a correrem atrás da mãe. Infelizmente não vou mais esquecer a impala atropelada que vi, banhada em sangue e com um rastro de placenta que levava a um feto, ambos mortos e mais tarde comidos por abutres, quando lá voltámos a passar. É a prova da crueldade da vida, que também existe no meio de nós, humanos.
Mas também não vou mais esquecer-me dos companheiros da nossa viagem: da Margarida, que no safari nocturno me apontou o holofote, confundindo-me com um rinoceronte (mas foi sem querer…), e que é a pessoa que conheço que mais gosta de sol e não fica com dores de cabeça mesmo almoçando sem chapéu. E naturalmente não vou mais esquecer-me dos pais e do irmão dela, e da avó. Mas como diria a Margarida, também não vou mais esquecer os candongueiros que me tentavam vender máscaras africanas por duzentos euros, e até no aeroporto apareceu um a vender invólucros de canetas e carteiras para o passaporte (eles pensam em tudo). A Margarida diz que ela e a família foram como cinco emplastros na minha lua-de-mel, mas eu também acho que o contrário se aplica: eu e o Pedro fomos dois emplastros na viagem deles. De qualquer modo, e para ambos os lados, bons emplastros.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home