Wednesday, August 23, 2006


O exercício físico

Não é para todos nós linear que corpo e espírito sejam um só e que tenham de ser tratados da mesma maneira e com o mesmo respeito. Para mim é compreensível, mas talvez nunca na vida tenha levado muito a sério essa premissa. Procurei sempre enriquecer o espírito, tratá-lo, procurar as razões da minha existência no mais fundo de mim, no mais rebuscado dos livros, e sempre adorei estudar e escrever. Nada disso implicaria que eu hoje fosse uma nódoa, em termos físicos (e não consiga fazer aquilo que a maior parte das pessoas faz com uma perna às costas) se eu tivesse tido cuidado.
Em primeiro lugar, em minha casa nunca houve propriamente o culto do corpo ou de uma alimentação saudável. Só muito tarde, já na faculdade, me comecei a aperceber que beneficiava muito com uma alimentação variada, mas também foi nessa altura que fisicamente me tornei pouco flexível, porque passava horas a escrever e a ler, sentada nas aulas, sentada em casa, e antes disso na variante deitada na cama. Não fazia ginástica nem tinha paciência sequer para pensar nisso. Achava que a magreza vinha simplesmente do não comer, e isso nunca consegui fazer, excepto antes dos exames ou quando me enervava. Com o tempo, também emagreci bastante porque as coisas corriam mal, sentimentalmente, e eu achava que isso era reflexo de um corpo mal feito (ou talvez alguém me tenha convencido disso). Levei a minha vida toda a ouvir comentários completamente absurdos e desnecessários. Na minha casa, se eu acordasse com uma borbulha, ia ouvir que tinha uma borbulha quinhentas vezes (nem imaginam o que se ouve quando se tem um rabo gordo…). Pronto, não vamos contar com a imagem que o meu irmão teve sempre de mim, que ao desenhar a minha biografia desenhou Deus a deixar cair um novelo de lã e uns óculos: tinha nascido eu, uma trunfa com miopia. Com essa imagem atravessei a adolescência e parte da idade adulta, até um dia ter acordado a borrifar-me quase na totalidade para a minha imagem ou auto-imagem, porque estava magra, anémica e com as costas todas tortas. Estávamos no célebre ano de 2001 e já contei o que se passou, tinha acabado de ver a minha mãe a morrer de cancro. A somar a este estado físico débil estava um estado psicológico ainda mais débil e muito fragilizado. Digamos que quando isso acontece é porque houve terreno para isso acontecer. Está mais que provado que quem adoece de depressão é alguém com baixa auto-estima. E alguém com baixa auto-estima vai puxar pessoas semelhantes para ao pé de si. Por isso, desse ano para a frente, a minha aprendizagem acerca do corpo, do espírito e das diferentes facetas que as pessoas assumem quando se relacionam umas com as outras foi (e tem sido) exemplar.
Achamos sempre que percebemos muito bem que sem cuidar do corpo não conseguimos nada e vice-versa, sem uma cabeça arrumada a vida não anda para a frente, mas não é assim tão linear dar o primeiro passo para cuidar de ambos, e às vezes esperamos anos ou arranjamos desculpas esfarrapadas (outras bem válidas, porque qualquer tratamento nos sai da carteira), até para mudar de emprego, ou ter uma conversa franca com alguém, ou resolver um problema antigo.
O meu problema mais antigo é a minha auto-imagem, e com ele passo a vida a refilar e a Patrícia também passa a vida a refilar comigo, porque me enervo e nunca respondo mal às pessoas e fico chateada e queixo-me à Patrícia, e é sempre assim, na biblioteca, no messenger, no comboio, no autocarro, à hora do almoço, eu pareço um turbilhão de emoções completamente descontroladas, porque me acho fraca como pessoa, incapaz de fazer frente às mínimas adversidades, embora a vida me tenha provado, literalmente, o contrário. E nesse estado, tenho encontrado muito gente que me tem agravado a fraqueza de espírito, porque às vezes, muitas vezes, não sei para que lado me virar e esmagam-me com coisas menores que afinal se tornam cavalos de batalha, uma batalha da qual saio sempre perdedora. Isso faz-me sempre ficar a pensar que não vale de nada sermos honestos de sentimentos ou mesmo pessoas inteligentes quando afinal somos estúpidos e não sabemos responder às pessoas apropriadamente. Sinceramente, às vezes um conflito é melhor ser evitado. Mas outras vezes não. Enfrentar um conflito é uma batalha ganha e responder até nos liberta o espírito. Um espírito atrofiado só podia atrofiar o corpo. É o que me acontece. A minha teoria é que as minhas costas são uma grande porcaria porque o meu espírito vive no lixo, a energia não flui, há para aqui bloqueios emocionais a dar com um pau.
Não posso dizer que, desde que comecei a fazer ginástica seja uma pessoa mais feliz, mas pelo menos sou mais esclarecida acerca da minha condição física (quando era adolescente só queria ter um espírito, odiava a dimensão do corpo). O exercício tem sempre a benesse de nos manter ocupados fora da nossa cabeça e dos nossos problemas mesquinhos. Enquanto ali estou as minhas preocupações são as que me indicam, aparentemente fáceis, mas complicadas para mim (não imaginam o quão difícil é «ficar direita», no meu corpo esse registo já se perdeu), e procuro cumprir a minha tarefa como um soldado responsável a obedecer ao sargento, sem reclamar para não ouvir repreensões nem ter castigos. Os dias em que não tenho essa disciplina estou sentada demasiadas horas, o que é estranhamente extenuante para o binómio corpo-alma. A esta altura o JPA está muito satisfeito porque está cheio de razão e eu estou a reconhecê-lo publicamente, ou seja, a assumir que me devia mexer mais, muito mais. É óbvio que a tarefa dele é ser chato comigo, entendo bem porque quando era professora estava sempre a chatear os meus alunos com o célebre «exijo frases completas» e descontava a sério nos testes, o que muito os chateava, mas isso eles chegaram ao final do ano lectivo a saber fazer (não deixaram de dar alguns erros ortográficos, mas também não se pode ter tudo). Espero que os meus alunos ainda hoje oiçam a minha voz, mentalmente, a mandá-los construir frases completas, do mesmo modo que eu oiço o JPA a mandar-me endireitar as costas e a pôr a barriga para dentro quando me sento nas cadeiras gigantes da biblioteca e não tenho posição possível para fazer durante oito horas o meu trabalho.
Quando penso que deve ser mau ensinar alguém com pouca ou nenhuma preparação física (como eu), penso também em mim como professora, e no desafio constante que era ensinar os meus alunos a escrever e a tomarem consciência da importância de defender a língua portuguesa. Não sei se chegavam tão longe (certamente que muitos não chegaram sequer a entender estes objectivos), mas chegavam por vezes a conclusões surpreendentes acerca dos textos literários, dos poemas que apareciam e faziam perguntas perfeitamente pertinentes sobre gramática. No entanto, eram adolescentes, não estavam familiarizados com inúmeras realidades que eram o meu dia-a-dia, como escrever e interpretar ou compreender sintacticamente uma frase ou entender a semântica de um verbo. É diferente ensinar adultos (pelo menos espera-se que sim), mas não tão diferente assim, muitos escapam-se às obrigações como se fossem crianças, também. Talvez seja preciso o dobro da paciência, eu não sei, poucas vezes terei ensinado adultos, ao longo da minha vida.
Não tenho a esperança de recompor as minhas costas, até porque nunca acreditei em milagres, sou uma descrente nessas coisas. Com o espírito é o mesmo, não espero recompor a minha imagem e acordar um dia a achar que sou a Brigitte Bardot (quando era nova, porque ela agora é uma múmia e ainda por cima fascista), ou a Oprah, que é uma activista e escreve cartas ao patrão da Hermes por não a deixarem entrar numa loja em Paris e ele vai ao programa dela desculpar-se. Não estou à espera de ter tanta importância no mundo, de a minha opinião pesar assim tanto que me batam à porta a pedir desculpa. Tenho de ser realista: não vai acontecer isso, até porque regra geral as pessoas são poucos justas mas também não pedem desculpa por isso. Não estou a contar que a minha avó, agora com oitenta anos, me venha bater à porta para dizer que afinal homens e mulheres têm o mesmo valor no mundo e eu até valho alguma coisa (mais depressa me batia à porta para dizer que queria vir viver comigo), e até posso sair de casa sem isso ser assim tão ofensivo para a família, só porque sou mulher e nasci com «deveres» familiares. Há alguém que também não vai pedir desculpa por dizer que eu tenho o rabo gordo, que sou péssima, que sou pobre e o meu emprego é uma merda. Há alguém que também não vai pedir desculpa por me querer, de há quase três anos para cá, dar lições de condução que eu não quero receber. E a minha mãe, que de há cinco anos para cá não é corpo e é só espírito (se é que o espírito não morre), também deveria vir do além para dizer que eu tenho capacidades para alguma coisa ou que pelo menos me desenrasco (é melhor não falar muito, que ela ainda aparece). Os ex-namorados também deviam pedir desculpa pela imagem com que nos fizeram ficar, mas como são ex, também não valia de muito. Finalmente as inúmeras pessoas com quem trabalhamos e que nos reconhecem pouco ou nenhum valor. Por isso, porque sou realista e sei que não pode ser assim, quem tem de mudar de personalidade sou eu, talvez deva tornar-me mais agressiva com comentários destes, talvez deixar de os levar a sério, e pensar que fazer o que os outros dizem não me faz nada mais feliz. Além disso, acreditar nos outros dá-lhes muito poder, é esse o fundamento da maior parte das igrejas, sugar os outros através da ignorância e da baixa auto-estima. Do mesmo modo, também tenho de mudar de corpo, o mesmo é dizer moldar este, que está mau mas não é um caso perdido, porque olhando à minha volta na BN reconheço demasiadas cifoses e escolioses, ciáticas e hérnias discais, e muitos loucos que nem banho tomam (ainda bem que ao meu lado se senta a Patrícia, folgo muito com a companhia dela!), passeiam sozinhos por entre os livros e falam com o tecto ou dormem (eu juro que é verdade) e eu não quero ficar assim.
Assim como tenho necessidade de escrever diariamente o que sinto e penso, de estudar, de me informar, de me saciar em conhecimento, a partir de agora a dose de exercício físico terá de ficar equilibrada com tudo isto, para que «isto» renda em vez de atrofiar o espírito. É uma resolução que terei de cumprir, em vez de andar, na vida, à procura do Santo Graal.




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