Wednesday, August 23, 2006


A sinceridade

Uma das coisas que mais temos de aprender na vida, para nosso bem e para bem dos outros, é a gerir as relações humanas. Gerir conflitos, captar atenção e estima, ter capacidade e jogo de cintura para lidar com inúmeras pessoas, algumas bastante difíceis, faz parte de qualquer profissão, quer seja mais passiva ou menos passiva, quer exija mais ou menos trabalho de grupo. Na minha profissão de professora necessitava de algumas capacidades que entretanto ficaram escondidas dentro de mim. A paciência de explicar inúmeras vezes as mesmas coisas, gerir conflitos em sala de aula (muito difícil), saber falar com crianças e adolescentes, perceber a distância que tinha de guardar de alguns colegas. Quando falo nisto, não estou a querer dizer que todos tenhamos de ter uma boa dose de cinismo para vencer na vida, mas, no mínimo, temos de ser cautelosos. As pessoas guardam boas e más surpresas.
O ano de 2001 exigiu de mim capacidades que eu nem sabia que tinha. Uma delas era esta: a calma quase zen de não me deixar abalar por contratempos. Não me perguntem onde fui arranjar forças, porque eu não me lembro, se calhar, se fosse necessário, tê-la-ias aqui outra vez, prontas a serem usadas, registadas na minha memória emocional. Mas do que mais me orgulho foi de ter dado aulas e convivido com inúmeras pessoas muito diferentes umas das outras sem nunca ter dito «a minha mãe tem um cancro». Chegar aos fins-de-semana não significava descanso, ela passava mal, e essa falta de descanso veio a reflectir-se na minha saúde, também. No fundo, estamos todos preparados para as coisas boas, mas não estamos para as más, o que é um erro crasso na forma como vivemos.
Penso que hoje, tagarela como sou, não conseguiria isso, mas penso também que fui inteligente e sensata, os outros nada tinham que ver com a minha vida e, mais do que isso, não queria que nada disso manipulasse, de algum modo, as pessoas ou as minhas notas. Devia ter guardado a lição que aprendi nesse ano: o silêncio é uma arma poderosa a nosso favor, nem sempre a sinceridade traz bons resultados. Infelizmente, os anos seguintes trouxeram-me amargos dissabores com as pessoas que fui conhecendo e com quem fui trabalhando, porque perdi esse escudo com o qual tão bem lutava. Eu diria que ainda faço erros crassos, em confiar em quem não devo, em contar demais. Para que é que as pessoas têm de saber que eu tenho carta e não conduzo, ou que sou assim ou assado? Não têm de saber. E quanto menos confiamos numa pessoa, menos lhe devemos contar, bem como às pessoas que rodeiam essa pessoa. Confuso? Não é. Retracção é a palavra-chave. Por exemplo, fiz um mestrado, mas será sensato partilhar essa informação com meio mundo? Metade não está interessada, a outra metade não vai compreender. Sejamos francos. Um mestrado não serve para grande coisa em algumas áreas, nem adianta muito à humanidade, e isto não é desvalorizar o meu trabalho, porque trabalhei como uma burra para ter aquilo pronto, limpo e bem escrito. Mas não é o supra sumo da humanidade. Provavelmente o meu ano de 2001 transcende tudo isso, talvez seja exemplar das minhas verdadeiras capacidades de ser humano. Fui desafiada de uma maneira trágica (para mim), que me pôs à prova e me obrigou a testar as minhas capacidades de sobrevivência. Mas será justo contar isso a toda a gente (apesar de estar a contar no blogue, são poucos os que o lêem)? Metade não iria entender, a outra metade já teria passado por algo semelhante com outros contornos, mais ou menos trágicos. E muita gente nos responde a actos que consideramos de coragem com um simples «são coisas da vida».
Na vida acho que temos de ser honestos com as nossas capacidades. Há muitas coisas que nem sonhamos vir a conseguir fazer, mas chegamos lá. Há outras, que embora fáceis, não são simplesmente feitas para nós. Lido muito mal com a minha mediocridade, por isso tudo aquilo em que não sou muito boa chateia-me. Há um nível que eu exijo manter. Evidentemente que, com o tempo, fui entendendo que há muitas coisas em que não sou boa porque sou preguiçosa e outras que, embora não seja boa, tenho de fazer incessantemente, como ginástica. Para mim não é mau ter de fazer ginástica, é mau ser tão má a fazer ginástica. É o meu entendimento, que por vezes também é injusto. Quando eu estava em psicoterapia dizia «não estou nada melhor», e a psicóloga respondia «não é verdade, acho que estamos a ir muito bem». Há coisas que nem tento fazer de tão má que sou. Talvez isto seja falta de sinceridade para comigo.
Sermos sinceros connosco implica muitas coisas. Em primeiro lugar, uma honestidade sem fronteiras dentro e fora de nós próprios, o que é muito difícil. Quantos de nós conseguem distinguir a opinião que tem de si mesmo da opinião que os outros têm? Muito poucos. Uns mergulham na própria imagem simplesmente porque toda a gente os acha lindos, outros têm o discernimento de pensar que isso não é tudo. Há uns tempos uma modelo da nossa praça (na minha opinião muito bonita) declarava que, depois da gravidez, já ninguém se lembrava dela. Como se o mundo tivesse de parar para ela engravidar, e depois retomasse as suas normais actividades depois de ela ter a criança. O mundo não gira à nossa volta. Nem sequer o mundo das pessoas que amamos e que nos amam deve girar em torno de nós, tão somente. Porque tem isso de acontecer? Enquanto somos pequenos sugamos a energia dos nossos pais, mas depois de crescidos, isso fará sentido? E os nossos pais sugarem o nosso mundo e as nossas energias, será justo? Penso que também é falta de sinceridade. Isso decorre de não olharmos para dentro, suficientemente fundo, e entendermos o que está mal e o medo que temos de estar sozinhos, em silêncio, só com os nossos medos e as nossas falhas. A sinceridade curaria isso, porque leva à percepção do que está por completar. Sugar o próximo não será o processo mais saudável e um dia pode ter um fim indesejado. Além disso, quem suga nunca está satisfeito, suga sempre mais e mais. E quem é sugado ou é infeliz ou não se apercebe do mundo à parte em que vive.
A sinceridade também exige uma exposição moderada. Não vamos começar de repente a dizer tudo o que pensamos sobre a vida a quem quer que seja. Não vamos mesmo dizer tudo o que nos apetece a um amigo em nome da sinceridade. A sinceridade não corresponde a uma brutalidade necessária nas palavras, mas às vezes implica uma certa crueza de espírito para dizermos às pessoas o que pensamos. Se nunca o fizermos, algum dia vamos ser torturados pelo remorso, ou perseguidos pelos pensamentos que ficaram por dizer.
E para terminar, a sinceridade que não vale a pena, que é aquela que sabemos ter mas que não adianta nada, não muda o mundo, não muda a atitude das pessoas, nem as pune. Consiste em sermos nós próprios e nos defendermos das agressões alheias, sem todavia acharmos que podemos passar aos outros uma «lição». Nem todos estão dispostos a ouvir e a integrar. Nem todos percebem, compreendem ou ficam elucidados. Alguns limitam-se a existir sem consequências.

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