Memórias da minha infância Lá estava ele e merece bem um texto à parte. Quando fui ao casamento da C. encontrei-o, já bem mais velho, mas a mesma cara, escondido no meio daquele populacho todo. De entre os convivas, estavam velhas caras minhas conhecidas ali do bairro, algumas distantes na minha memória, mas uma delas bem viva e presente: o Mosca. Ainda de óculos hiper-graduados (não posso gozar muito), mas sempre de sobrancelhas higienicamente rapadas e cabelo à José Cid, mas comprido, tipo anos 60, no tempo da guerra. Lembram-se do José Mário Branco novo? Assim. Cabelo escuro, muito escuro, mas, pelas minhas contas, pessoa para 70 anos. Em pequenina, a minha avó ia à sapataria do Mosca (acho que o Freitas é que era o dono, o Mosca era o empregado…a propósito, passados 20 anos soube finalmente que a criatura se chama Álvaro), e obrigava-me a experimentar (e levar) sapatos de verniz perfeitamente horrorosos, tendo como única alternativa as botas para o pé chato, que nunca usei (não faltava nesta sapataria sapatos ortopédicos, intitulados «Pés doentes»), ou sapatinhos à rapaz, que, embora mais confortáveis, eu odiava. Digo-vos, se há coisa boa no capitalismo é o facto de haver tanta variedade de roupa e sapatos hoje em dia, porque em miúda eu sofri um bom bocado com os fatos-de-treino de risca branca, os lenços na cabeça «para não morrer de meningite, que o sol mata» (sic, avó Norberta), que levou o meu irmão a chamar-me de «velha», ou, noutra variante mais acesa, «velha de merda» (em pequenina eu era a «porcaria vai-te embora, que eu não te quero ver aqui»), os sapatos apertados com fivela e as sandálias com cheiro a perfume, mas que absorviam o suor de tal forma que no final do mês matava qualquer ser humano. Na altura não havia consumismo, por isso tudo isto só seria substituído em caso de estrago irremediável. O meu irmão resolvia isso estragando as coisas sem conserto possível, mas na altura eu não era assim tão esperta e sabia que a mão da minha mãe era pesada. Nesta altura já havia lojas de monhés e ciganos a vender na rua o que roubavam, mas não havia «lojas chinês» com roupas a granel e nem se sonhava com essa invasão. Apesar da falta de tudo que havia nessa altura (excepto na casa da minha avó, em que havia sempre sumo de laranja, bolacha Maria, batatas-fritas cheias de óleo, arroz doce, gelatina e fruta variada, bem como sandes e tang para o lanche dos amigos), nós sobrevivíamos bem com roupa dos irmãos, roupa rasgada e cosida, sapatos furados e, no meu caso, por obrigatoriedade médica, óculos grossos que o Carlos Manuel me tentava sempre roubar. Não sei como sobrevivíamos sem telemóvel, mas ainda bem que assim era, porque não imagino o dinheiro que a minha avó gastaria em chamadas para saber onde andávamos nós. Verdade seja dita. Éramos felizes. Mas também lixámos a felicidade a muita gente, entre eles o Mosca. O meu irmão e os amigos iam-lhe dando cabo do negócio, gritando para dentro da loja «Ó mosca!!». Se o Zé Carlos ia lá comprar sapatos ou ia aos Botões Bonitos (raio de nome para uma loja de retrosaria) a coisa dava sempre para o torto. Então se fosse o Fernando, o caldo estava mesmo entornado, porque de certeza que havia palavrões à mistura. O Bananeiro foi outra vítima. O coitado do homem trabalhava numa mercearia à antiga, com um patrão porco e deslavado (segundo fontes da minha avó, este velho morreu a transbordar de merda pelo umbigo, melhor «imbigo», como diz ela), e não merecia a triste sorte de lhe estarem sempre a pedir «corneto de abóbora». O Caveiredo era outro desta corja. Vendia pornografia e livros da Heidi a 20 escudos, mesmo ao lado da loja do meu avô. Apesar de corneto de abóbora não estar entre aquilo que vendia, era também um produto largamente solicitado. O meu irmão furou-lhe muitas revistas da janela da minha avó. Finalmente os bufos mais perigosos, que apareceram durante anos nas BDs do meu irmão: o Monhé, assim chamado porque era indiano e a Velha Má (assim chamada por ser velha e má). O primeiro deve ter inspirado o novo blogue do meu irmão, que dá voz a um Gandhi absolutamente incrível. É de assinalar que eu sempre fui uma pessoa muito aberta a novas raças, mas levar amigas pretas e indianas lá a casa foi sempre um fiasco. A primeira foi chamada de Branca de Neve, e a segunda…de monhé. Claro que desapareceram do mapa. Houve outras personagens bastante bairristas que povoaram as nossas vidas, como os Fedores, que pelos vistos viviam numa comunidade poligâmica e incestuosa, com irmãos e irmãs a terem relações sexuais, mas também pais com filhos e tios com sobrinhos. O «tio Fedor» ainda foi a personagem mais fantástica porque coçava os pés à janela, mesmo em frente à varanda da minha avó (para azar dele). Durante anos apanhou com os nossos despojos: latas, pastilhas, rebuçados colados ao papel ou já metidos na boca, bolas do canudo, etc. O meu irmão tinha maior poder de alcance e ganhava-me sempre na quantidade de coisas que caíam lá dentro. Escusado será dizer que eu, quando atirava alguma coisa, ia parar à rua, mesmo. Já a Chungosa, que vivia no prédio do Carlos Manuel (a Batalha), parecia ter uma paixão pelo Fernando. Era engraçado vê-lo a fugir dela. Gente que trabalhou em padarias, pastelarias, retrosarias, lojas de computadores ali do bairro sofreu muito. Pobre padeira e pobre vassoureiro que estivessem no caminho, decerto ouviriam piropos pouco educados ou levariam com algum resquício de pastilha-elástica ou uma bomba de mau cheiro no Carnaval. Na verdade, as gerações mudam. Hoje em dia somos muito menos inocentes. As coisas deixaram de ser uma revelação e as reacções das pessoas deixaram de nos interessar. Hoje em dia as brincadeiras são muito mais perigosas, com consequências nefastas, e os professores são mandados àquela parte com a facilidade de um estalar de dedos (e ainda levam pancada dos pais dos meninos). Deixou de ter piada pedir corneto de abóbora, porque hoje em dia espera-se muito mais arrogância das crianças e dos adolescentes. Se calhar até já existe corneto de abóbora e sugos de fruta sabor a melancia. |
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