A festa de casamento lá do bairro Foi demais e não volta a haver outra festa de casamento tão boa como aquela. Foi a festa do bairro, mas só com algumas amostras lá do bairro (e ainda bem, porque se fosse o bairro todo era uma festa popular). Eu sempre disse que gostava de me misturar em meios estranhos à minha educação e à minha maneira de ser, embora com limites, evidentemente, não posso garantir que gosto de tudo e que tudo me agrada. Fui educada em bairro e em meio suburbano, e francamente, para além das casas, que são um pouco melhores nos meios suburbanos (pelo menos eu acho) não vejo diferença no grau de coscuvilhice que se pratica em ambos ou no desastre que é viver num local onde toda a gente sabe a que horas entramos e a que horas saímos. Mas no bairro é diferente. As pessoas também existem para apoiar as nossas opções de vida – se gostarem delas, porque senão seremos «as rameiras lá do bairro». E disso eu sinto falta. Nunca cheguei a ter «os amigos do bairro», porque andava sempre de cá para lá. Com o tempo, eles perderam-se. Só ficaram os amigos do meu irmão. Alguns também já bastante distantes da minha vida. Por isso, os meus amigos são «os amigos da faculdade». Não há «os da infância». Não há «os do bairro». Mas a minha amiga C. é da escola secundária, e sempre viveu no bairro, por isso é a única sobrevivente do grupo anterior à faculdade. E por isso eu tenho-a como uma relíquia, uma mascote de ouro e sou amiga dela vai para mais de dez anos. Ela casou-se novamente, com alguém que se casou novamente também. É o segundo round para ambos. Embora as pessoas achem que o primeiro casamento é uma coisa imortal, única, insubstituível, eu não penso nada assim. Não tenho qualquer preconceito contra o divórcio, nunca tive. Acho qualquer coisa preferível a sermos infelizes fadas do lar. E acho que o amor é sempre possível. Sou uma romântica virada do avesso (como a roupa, virada do avesso dá presente). Evidentemente que não defendo opções sem consequências, nem casamentos relâmpago, privilegio o esforço de uma vida em comum. Mas digo com muita honestidade que não vejo mal nenhum em segundos casamentos, acho-os à mesma muito bonitos. E talvez mais autênticos, porque geralmente num primeiro casamento somos mais jovens e queremos uma festa maior com imensos amigos, num segundo casamento percebemos finalmente que isso vale muito pouco. As coisas que sustentam um casamento não se baseiam só nas emoções, vai muito para além disso. Exige cabeças frias, racionalidade, jogo de cintura. E por vezes exige silêncio. É verdade que adoramos uma festa cheia de amigos e boas decorações. Mas no final percebemos os factos: não é com isso que vamos viver todos os dias. As coisas são muito mais difíceis do que parecem. E por vezes mais repetitivas e fechadas ao mundo exterior. Vamos a casamento do bairro. Valia o local e a comida. O bairro ainda tem disto: locais engraçados, com boa vista, bom espaço, sem ser naquele amontoado horroroso de cadeiras e mesas em que ninguém pode passar para ir fazer xi-xi. Ali estava-se bem. Quer dizer, estava-se bem se as pessoas falassem mais baixo, porque o som das vozes era ensurdecedor. Eu já me tinha esquecido o quão incomodativo pode ser haver tanta gente a gritar ao mesmo tempo…mas no bairro é assim. E as piadas porcas, com aquelas metáforas enigmáticas e grosseiras, que eu percebia mas nem queria perceber, do género «tens o cravo murcho! Põe o cravo em pé!». Noivo e convidadas andaram em reboliços, a fecharem-se em casas de banho e a atirarem arroz uns aos outros, a discutirem futebol em altos berros e com piadas aberrantes, com trocadilhos estúpidos e espalhafatosos. O noivo comentava que no cartório havia uma «fotógrafa boa como o milho», e que o filho ia casar com uma mulher «que ele até comia», perante as risadas da noiva, provavelmente habituada àquele linguarejar absurdo e tétrico. Perante o comentário das vizinhas de que a noiva era «cheinha e roliça, quase maciça», o noivo protestou que era a mulher que ele amava. E uma das vizinhas retorquiu: «em que posição ficam na cama?». Toda a gente se auto-convidou para os perseguir até à lua-de-mel para «ouvir sons e gemidos», e, perante toda esta ordinarice pegada, o noivo levantava o dedo do meio, depois de pedir licença à noiva. Depois é preciso descrever a fauna que ali estava, com alguma flora à mistura. Ninguém tinha a dentição completa (eu também não tenho, mas não me faltam os dentes da frente, caramba!), um dos presentes assemelhava-se ao emplastro e a mulher dele parecia um pote das migas mal enjorcado. Mas a Ti Lurdes era a mais engraçada, porque, embora velha, apanhou o bouquê e ficou radiante, pois era o décimo bouquê que apanhava, no meio de tanta gente nova. O noivo entretanto dizia que era «um borracho» (embora cheirasse mal e não tivesse dentes) e agarrou-me de tal forma que eu ia vomitando com a nojice. Na apanha do bouquê, esse estúpido ritual tão fora de moda, lá fui obrigada a comparecer, dada a escassez de mulheres solteiras (ou não-casadas), puxada violentamente pelo noivo, pelo braço, mas com alguma sorte, porque outra rapariga foi mesmo puxada pelo cachaço. Assim, todas juntas e tratadas como gado, a Ti Lurdes, esse vegetal, apanhou o bouquê. Só para não ter de comparecer a este estúpido ritual, eu casava. Eu saí antes do fim da festa. Mas gostaria muito de ter sabido qual foi o final da festa. A noiva pedia ao noivo que se despisse, ele dizia que era apenas «um monte de ossos» (ao menos não se despiu!). Cada vez havia mais pessoas fechadas na casa de banho a gritar e o arroz era atirado violentamente contra as pessoas ou mesmo enfiado no rabo delas, com a laracha do costume do noivo: "Hoje chego a casa e faço arroz cozido!". Com a vida, tenho aprendido que, aconteça o que acontecer, deve-se respeitar as escolhas das outras pessoas, sobretudo se forem nossos amigos, ou acima de tudo se forem nossos amigos. C. sofreu bastante na vida: sufocada pelos pais enquanto filha única, muitas vezes desempregada, casamentos falhados, muitas frustrações pelo caminho. Sou tentada a dizer «merecia melhor!», sem dúvida que sim. Dá ideia que ele gosta dela, que a protege, que a estima e até respeita (à maneira dele), apesar dos palavrões, da verborreia (palavra óptima, porque junta palavra a diarreia). Mas é velho, feio, desdentado, tem ar de bêbado e de doente, de homem das obras grosseiro com as mulheres. Mas o amor é mesmo assim. Ou se calhar a vida. Importa que ele cuide dela…e que tome banho de vez em quando. À parte de tudo o que está estipulado sobre casamentos, que é uma grande treta e uma seca, de talheres, comidas e centros e mesa caríssimos, existem estas almoçaradas valentes, em que se come com faca e garfo (e não com dez facas e dez garfos), em que se bebe até cair para o lado, e em que o conceito de etiqueta deixaria qualquer Paula Bobone irritada. O bairro é outro mundo. À parte. As pessoas vivem com as casas coladas umas às outras, sabem tudo de todas as formas, por isso não vale a pena esconder muito. Eu lido muito mal com isso. Gosto de ter a minha vida sem muito alarido, com muito silêncio para me poder ouvir e poder ouvir os outros, e, sobretudo, para escrever. No bairro não é assim. Não há momentos vazios, de silêncio, de escuta atenta. Há só momentos para falar e dizer asneiras. Tipo convívio de tasca, de ginjinha e faducho cantado aos gritos. É outro mundo. Não adianta classificá-lo. Existe. |
2 Comments:
Quando uma vida é levada a apanhar tareia de toda a espécie e sem qualquer amor, até um rosto sem dentes e garganta obscena que se disponha a amar e a protejer, se transforma em ouro!
Não viste lá a TVI a filmar? Pela descrição parece ser uma sequela do "odioso e inacreditável noivo", ainda mais grotesca.
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