Sunday, July 30, 2006


Os mitos da verdade absoluta

Eu sou a prova viva de que existe o mito da verdade absoluta. Sei que não a detenho, mas afirmo demasiado as coisas, talvez na tentativa de deter o meu leitor e o conquistar (ou quem sabe para eu própria me convencer do que digo). Na realidade, aquilo que afirmamos a nós próprios desde há longos anos torna-se a «nossa» verdade por excelência. Por isso é importante termos uma boa educação. Porque em crianças somos muito mais maleáveis, e se tivermos pessoas que façam constantes afirmações negativas, o ego fica muito reduzido, gerando apego a essas informações, dificilmente desprogramáveis deste computador que é o cérebro. Naturalmente o registo das emoções depende de cada pessoa.
O meu registo é muito poderoso. Quase nunca me esqueço das palavras. Talvez por isso escreva. É esse o meu dom. Sublinho tudo o que me dizem. Muitas das vezes só à posteriori venho a perceber que aquilo que magoou e marcou muito, que de facto ficou registado e até assimilado. As minhas ideias são construídas com base nas emoções que registei e nas coisas que aprendi, tal como todas as pessoas. Mas muito provavelmente o peso de cada um dos vectores é diferente de pessoa para pessoa. Para mim, o vector emoção terá predominado na minha personalidade. Sou marcada pelo que sinto. Avalio pelo que sinto. Suponho e raciocino pelo que sinto. Talvez por isso procure cada vez mais objectividade no que estudo, porque senão há demasiado lugar para a minha opinião, subjectiva por natureza.
Não sou uma pessoa objectiva. Mas tento ser, na medida em que falsos julgamentos podem levar uma vida feliz à ruína. Sou inteligente para perceber isso. Também não consigo contrariar a minha costela de sibila: adivinho muitas coisas pela superintuição. Outras vezes é a minha costela Woody Allen a falar alto, a minha confusão, o meu caos mental, a desordem de mil ideias negativas que aparecem sem eu dar conta.
Julgamos sempre com base nos nossos valores. Quem não julga, não pode ter valores. Uma pessoa amoral não julga. Estar nesse estado plácido, sem julgar ninguém, é quase impossível. Era o exercício mais difícil quando eu estava na psicanálise: não me julgar, não julgar a minha vida, não julgar os outros, as atitudes, as consequências. Este é um blogue judicativo. Eu nunca disse o contrário, seria uma grande hipocrisia da minha parte.
Quando dou por mim a julgar, procuro organizar os meus pensamentos. Porque julgo eu? Quais as razões para julgar assim? Com que base faço as minhas auto-afirmações? Não encontro fundamento para muitas delas. Quando digo a mim própria «Não vales nada», estou a dizer isso comparativamente a pessoas muito melhores, com melhores e mais bem pagas profissões, mais correctas e menos judicativas que eu, mais completas, mais humanas, mais felizes, mais vencedoras. Sob o meu ponto de vista. Mas e o contrário? As pessoas a quem toca muito mais o infortúnio do que a mim? Que ganham menos, que fazem a vida inteira o que não gostam, que casam e são maltratadas por maridos/mulheres, que têm depressões, esgotamentos e achaques mais graves do que os meus, e vivem sozinhos, isoladas como ilhas, sem amigos? E as pessoas que fingem, que são boas actrizes, que fingem o que não são, que dizem o que não são, que fazem o que não são nem sentem? Que elaboram a profissão perfeita de um trabalho de merda, que elaboram um discurso panegírico de si mesmas, que namoram quem dá jeito sem amor? Que valores orientam essas pessoas? A superficialidade mascarada de uma profundidade e de uma inteligência completamente inexistentes. Às vezes mentimos tão bem que nos convencemos de que é uma verdade absoluta. Só que nem sempre o público é estúpido. E também nem sempre os mentirosos são bons actores.
O mundo não tem verdades absolutas. Podemos construir umas verdades, destruí-las, criar outras que melhor nos sirvam. Mas a realidade é que, mesmo nos tempos das cavernas, o mundo humano estava organizado por valores. Se os homens iam à caça e as mulheres cuidavam das crias, isso significava a inteligência de perceber quem tinha mais força, quem estava mais apto a enfrentar os animais selvagens, e quem por natureza se destinava à amamentação. A organização social foi, desde sempre, estratificada, portanto chefes e comandos sempre existiram. Para que isso acontecesse, não seria necessário haver valores de base? Por isso, a moral e o aspecto judicativo dos comportamentos não é recente.
O que acontece é que estamos numa época dúbia, de liberdade vs. prisão, onde se assistem a extremos que ferem qualquer ser humano em dignidade. É a liberdade de uns fazerem tudo o que querem, roubando, matando, mentindo, sem punição, e de outros não se poderem mexer, espartilhados por um país repressor, ou pela pobreza extrema. Pensar nunca foi fácil e sempre teve consequências, ao longo da vida, ao longo da história do mundo. O raciocínio é uma arma ideológica poderosa. Por isso hoje recorre-se demasiado ao raciocínio…mas também à falta dele, à supressão prévia de raciocínio, e consequentemente de valores morais de base, que estruturem a vida. Porque também são armas, não de arremesso, mas protectoras da corrupção, que mina as vidas que levamos.
Julgar pode ser errado, se feito com bases erradas e superficiais, mas revela-se extremamente útil e até inteligente se o julgamento servir para nos protegermos e nos mantermos coesos. A coesão nem sempre é pintar o mundo inteiro da mesma cor. Pode existir muita liberdade dentro da coesão. Mas ser coeso é ser estruturado, é ter esqueleto e base sustentável. Só que hoje em dia assistimos ao corpo da vida, esbelto e bem parecido, e por baixo um esqueleto frágil, com osteoperose. A metáfora ideal seria dizer que precisamos de valores morais como os ossos precisam de cálcio. Sem parte interna, seríamos um corpo mole e indefinido.
Será sensato julgar fora dos estereótipos. Não temos de ser iguais uns aos outros, nem fazer o mesmo. Mas a verdade é que é terrível vermos pessoas sem escrúpulos a tomarem de assalto a vida das outras pessoas. É terrível vivermos misturados uns com os outros, às vezes sem percebermos quem é quem, respirando o mesmo oxigénio diariamente. Isso asfixia-me. Gostaria que a vida fosse estruturada ao ponto de se preparar um castigo divino a essas pessoas. Como diz o Livro dos Reis: " No lugar onde os cães lamberam o sangue de Nabot, hão-de lamber também o teu. " Algumas pessoas são completamente vampirescas: alimentam-se das fraquezas dos outros, aproveitam-se delas, deitam por terra tudo aquilo em que acreditamos e damos como «certo». Por exemplo, durante quase toda a vida dei como certo que todos desejássemos amar e ser amados. Mas não é verdade. Há quem goste de ser amado, adulado, ajudado, mas não saiba o que é o amor, a dedicação, o respeito. Muitas pessoas vivem tanto em função de um egocentrismo desregrado, que não sabem o que é estar fora delas mesmas, não têm sequer essa experiência nem estão abertas a essa espiritualização. Ver de fora implica mesmo julgar-nos a nós próprios. Não implica só julgar se trabalhamos bem, ou horas suficientes, se conseguimos ou não fazer tudo aquilo a que nos propomos. Implica percebermos até que ponto estamos ou não envolvidos com as pessoas, com o trabalho que realizamos, no fundo, com o nosso papel no mundo. Mesmo que achemos que somos muito bons, e que até desempenhamos funções neste mundo correctamente, temos de sair de nós próprios para nos darmos conta do que realmente somos e fazemos no mundo. Há pessoas cuja batuta da vida são elas próprias, o seu benefício, o que têm, e pouco mais. Sabem que há fome no mundo, mas nem suspeitam o porquê.
Nem sempre as conclusões a que chegamos quando saímos de nós próprios são as melhores. Por exemplo, depois de muito exercitar a minha «saída» do ego, descobri que não ajudo nas situações que me metem medo e nas quais eu acho que um dia posso vir a cair. Dou um exemplo. Considero-me uma pessoa solidária, mas nunca ajudo cegos. Tenho pavor da desorientação geográfica e de ficar cega. É um exemplo. Do mesmo modo, muitos de nós relacionamo-nos só para ter prazer, não ficarmos sozinhos ou simplesmente beneficiarmos com isso, sem pensarmos na desvantagem do lado de lá.
Antes de a minha mãe morrer não me lembro sequer de perceber o que significavam as palavras dela quando se queixava do excesso de trabalho doméstico que lhe caía nos ombros. Mais tarde entendi quando foi a minha vez. Não é nada fácil compreender a perspectiva das outras pessoas, por isso acho uma responsabilidade enorme ser psicólogo, psiquiatra, médico. Muitas das experiências contadas a estes profissionais nunca foram vividas pelos próprios (ainda bem). No fundo, são profissionais que têm de ter todas as perspectivas abertas e disponíveis. E quando também eles não têm maturidade? Gera-se o problema de batermos num colete de aço sem sentimentos, frio e amargo.
Na vida, não temos necessariamente de ter muitas experiências. Temos de ter algumas que nos permitam dar um passo atrás e olhar novamente para as coisas. Não nascemos ensinados. Se alguns de nós são descontraídos por natureza, outros stressam só de pensar em alguma coisa menos boa (como eu). É preciso aprender a gerir as coisas com alguma mestria, algum jogo de cintura.
Gostaria muito de dizer que aprendi a gerir a minha opinião acerca das pessoas, que ganhei distância e faço romances com os comportamentos que observo nos outros. Mas infelizmente, há sempre pessoas cujas qualidades não encontro por muito que vasculhe. Despojada da minha sensação de segurança, não consigo estar ao pé delas, nem interagir. Há características, normalmente antitéticas às minhas, que me irritam e transtornam. No entanto, há que lembrar que a verdade é, também ela, um mito gigantesco….

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