Tuesday, June 13, 2006


A família

Quando falo dos meus problemas familiares, todas as minhas amigas e todos os meus amigos têm a mesma resposta: as famílias são todas iguais. Embora eu não ache bem que todas sejam assim, conheço muitas bem piores do que a minha, naturalmente, e acho mesmo que há aspectos dos quais não tenho a mínima razão de queixa.
Em primeiro lugar, ninguém escolhe família. Ninguém escolhe nascer, eu acho, excepto para quem acredita no contrário. Há budistas convictos que reencarnamos e que escolhemos a família para aprendermos uma lição qualquer. Mas vamos pôr estes de lado. Mesmo que seja assim, eu reitero sempre que não nos lembramos dessa tal vida anterior, só temos «reminiscências», por isso de nada vale andarmos à pancada com teorias destas.
Em segundo lugar, há pessoas que nada têm a ver com a família que lhes calhou na rifa, nada mesmo. É o caso de pessoas ultra-dependentes com pais que não educam desse modo, ou vice-versa, de pessoas independentes que foram educadas para depender e não sair de casa. Outros, mais azarados, têm famílias de toxicodependentes ou abusadores violentos. Esses são realmente os casos mais injustos. Que faria eu numa família dessas? Quem seria eu hoje? Conheço casos desses, embora escassos e distantes, de pessoas que têm pais violentos. São pessoas muito diferentes, com imensos problemas, e para terem uma vida dita «normal» têm de se esforçar muito mais.
Em terceiro lugar. As famílias vêm todas de Marte. Se não fosse assim, como explicaríamos a proliferação de sitcoms americanas e britânicas acerca do assunto? E são engraçadas. A que menos gosto é a «Dharma&Greg», um casal antitético, com famílias díspares à força toda. Ela provém de uma família «hippie» e trata os pais pelos nomes próprios, ele provém de uma família rica e superficial, em que todos se tratam por «você». Embora apeteça bater na Dharma, por ser tão parva, as famílias têm a sua graça. Mas a série «Todos amam Raymond» tem uma vertente cómica mais inteligente. Raymond tem três (quatro?) filhos, vive com a mulher, mas a torto e a direito aparecem os sogros e o irmão em casa, cada um com uma ideia mais estúpida do que a outra. E que dizer de «Archie Bunker»? Ou do «Cosby Show»? Ou do «Príncipe de Bel-air»? Todas se baseiam em famílias estapafúrdias. Excepto, claro está, o «Seinfeld», ou a série «Friends», que são engraçadas, mas baseiam-se em grupos de amigos/vizinhos, e não familiares.
Porque é que as famílias têm tanta graça da televisão, mas na vida real nem por isso? Na televisão até tem graça o Raymond ter os pais sempre metidos dentro de casa, mas na vida real…E as diferenças entre os pais de Dharma e de Greg encaixam na perfeição (assim como o casal principal), mas na vida real parece-me bem que nunca resultaria. Qual seria o advogado de sucesso, rico, que se deixava levar por uma paixão assolapada por uma instrutora de ioga completamente maluca, com pais mal comportados que gostam de andar nus pela casa?
As famílias reais que eu conheço são muito parecidas. Regra geral os pais dependem dos filhos e os filhos dos pais (na minha humilde opinião, em demasia), às vezes os avós andam metidos ao barulho, sem saber para onde ir. Quando alguém adoece é culpa de todos. Toda a gente se mete na vida de toda a gente. Os pais e avós desenham expectativas irreais para a vida dos filhos/netos, procurando que eles sejam tal e qual imaginaram, e se não forem têm logo «um desgosto». Hoje em dia temos medo de ser nós próprios, o que somos, genuinamente, a nossa essência, aquilo em que acreditamos. Fazemos demasiado o que os outros esperam de nós, e pouco aquilo em que acreditamos. Na realidade, nenhum pai ou mãe morre de desgosto se um filho casar com quem não querem, ou sair de casa, ou tiver um emprego diferente daquilo que era esperado, ou não tirar um curso. Um pai ou mãe deveria morrer de desgosto se o filho ou filha não pensasse pela própria cabeça. Isso, se eu fosse mãe, far-me-ia vacilar e entristecer.
É um bocado parvo pensarmos sempre que vamos desiludir pais e avós. Claro que isso afecta, cria mau ambiente. Há famílias em que é impossível pensarmos pela própria cabeça. Há famílias que não aceitam que a vida tem um rumo, flui de uma maneira diferente da sua, que a vida dos filhos pode ter outra dinâmica, já que o tempo histórico e o tempo discursivo mudaram desde a sua juventude. É chato pensarmos que somos espartilhados pelos pais, pela educação que tivemos e andar à espera de um milagre para mudar a mentalidade deles, coisa que nunca acontecerá. Muitas vezes parece que ninguém percebe que a vida muda a todos os segundos e milionésimos de segundos. Que a vida amanhã não é igual à de hoje. Amanhã a expectativa muda. Por isso, como é que as ideias, as ideologias, as maneiras de ser e de estar podem ser as mesmas? Como dar às famílias o que elas querem sem desvirtuar o que somos?
Há coisas na vida que não entendo, nem nunca entenderei. Não vale a pena fazer terapias cognitivas, psicoterapias, terapias alternativas ou ler inúmeros livros de auto-ajuda. Bem sei. Quem tem de mudar sou eu, não o mundo. Por isso toda a gente me diz: "Mas ainda te chateias com isso?". Eu explico do que é que estou a falar, dos impostores. Há por todo o lado essa corja de gente, mas bolas, poupem-me, na vida pessoal e familiar é que não! Todavia, quem somos nós para escolher de quem os outros hão-de gostar? Pode parecer-nos injusto, perda de tempo, manipulação contínua e agravada, mas é assim: não se toca nos sentimentos dos outros. Como mandar nos outros? Como abrir-lhes os olhos? Inútil. Não podemos escolher uma madrasta, padrasto, sogros, cunhados…são escolhas dos nossos familiares. Por isso, quando algum dos supracitados entra, há um abalo tremendo nas nossas vidas (a minha cunhada que o diga…), porque os loucos duplicam. Mas temos de ser razoáveis. Há entradas na família que são soberbas, trazem lufadas de ar fresco e, embora não mudem as estruturas antigas em que vivíamos, são bem vindas. E depois há as entradas pós-fabricadas: as crianças, sempre bem-vindas à família – novos primos, sobrinhos, irmãos, netos, etc. dão uma outra cor, um outro ânimo à família, e escusa a minha avó de dizer, em voz trémula: " Somos tão pouquinhos!...".
Não podemos escolher pais, avós, irmãos. É o nosso grande primeiro exercício de flexibilização de personalidade, de aceitação do outro: aceitá-los como são – loucos, casmurros, atrasados mentais, maus feitios. Na dinâmica, toda a gente é bem vinda, menos os impostores. São as entradas familiares «forçadas». As pessoas que entram e de quem não gostamos nada. As pessoas que quase entram, mas à última da hora se escapam por entre os dedos. As pessoas que entram e saem (algumas são impostoras, mas outras não). Todas as pessoas que entram por interesse, dinheiro e uma grande lata. Todas essas deviam ser proibidas de entrar, para que o clã se preservasse bem disposto. Todavia, o clã sofre abalos, rupturas, rompimentos, mudanças contínuas, e mesmo assim tem de sobreviver, o mais incólume possível. Naturalmente que não sobrevive igual. Mas é essa a dinâmica da família: diminuir, mudar, crescer, evoluir.

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