Sunday, May 14, 2006


À transparência

Eu sei que tudo depende da perspectiva. Que ter perspectiva é que explica a maior parte dos nossos julgamentos, acusações, considerações, críticas. O que é errado para mim pode não ser para outra pessoa. Mas há valores que me parecem óbvios, universais.
Apesar de eu acreditar que somos energia, e isso tem prova científica, não acredito no lado-de-lá, na vida para além da morte, na transmigação das almas, na reencarnação, e o karma nem sempre faz sentido. Então em que acredito eu? Acredito na transparência. Há inúmeras pessoas que não têm transparência nenhuma, ou seja, não se consegue ver através delas, nem ver o que elas são de facto. Pode ser uma forma de se protegerem, ou simplesmente um desconhecimento de si mesmas, e portanto, se não se conhecem, que imagem dar aos outros? Tem de ser uma imagem fabricada.
Outras pessoas deixam ver a sua natureza pelas atitudes, pelo olhar, pela naturalidade (ou falta dela) dos gestos, das emoções, da forma como tocam nas coisas. Basta olhar e estarmos atentos. Não sei se este é um exercício muito, pouco ou nada importante. Mas é interessante. Podemos olhar e tentar perceber e até escrever a história daquela pessoa, mesmo que forjada. Talvez seja assim que se escreve um romance.
Andem de transportes públicos, vão a lojas, viagens, passeiem, olhem bem. As pessoas dizem quase tudo através do olhar. A maior parte das vezes vejo imenso cansaço, imensa angústia, imensa infelicidade. Outras vezes solidão. E encontro neutralidade nas pessoas que se tentam esconder e cujos pensamentos não descortino. Não sei se estou sempre atenta à realidade, ou se eventualmente terei sexto sentido, mas regra geral olho e vejo quem é feliz, quem tenta ser feliz mas ainda não é, quem é infeliz e já desistiu, e finalmente quem é miseravelmente infeliz e está perdido. Acham difícil? Não é.
Porque é que algumas pessoas transmitem confiança e sabedoria e outras transmitem uma profunda desilusão, logo na primeira impressão? Porque é que umas pessoas estão enformadas numa cápsula invisível na qual sentimos que nos podemos apoiar e outras não têm isso? Porque é que algumas pessoas só abrem a boca para agredir os outros? Insegurança, antipatia, indiferença? Certamente os sociólogos e psicólogos terão estudado estes fenómenos muito melhor do que eu. Mas eu acho que a energia das pessoas diz muito sobre elas. E também acho que há muitas pessoas que não sabem disso. Outras sabem e até fazem jogo-sujo.
Em 2001 a minha mãe morreu. Não parece ter nada a ver, eu sei. Mas a morte da minha mãe tornou-me consciente, clarividente das minhas fraquezas e das dos outros, à minha volta. Consigo ver coisas que dantes não via nem supunha ir algum dia ver. Hoje sei coisas com uma certeza inigualável. Sei que algumas pessoas são bem intencionadas, mas sei que há pessoas monstruosas, em dimensões inimagináveis, rebuscadas e retorcidas na sua natureza. Apetece-me destruir raivosamente os intentos dessas pessoas, mas sou uma incapaz, condenada ao inferno de ver e não dizer. Lembra-me sempre a paixão de dois amigos pela mesma mulher, mas um não conta ao outro para não magoar.
Quando a minha mãe morreu, eu tive a sensação que todos os filhos que perdem os pais (por mais tarde que seja) devem ter: o mundo desabou. Mas a realidade é que eu sobrevivi, por isso fui obrigada a aceitar a viver com aquilo a que chamamos «consequências». Não escapei ao sofrimento, nem à dor, nem à depressão, nem à desilusão, e a partir de certa altura, mesmo cansada, não tentei escapar, simplesmente aceitei que faz parte da vida e é um dos grandes ensinamentos da mesma que temos de aceitar causas e consequências, e que o merecimento, na forma como o aprendemos, nada tem que ver com isto. Porque eu sinto que ela não merecia mesmo nada morrer. Porque eu sinto que não merecia mesmo nada perdê-la. Porque eu sinto que o mundo tinha a ganhar com ela, mais do que ela ganhou com o mundo. Nessas alturas tenho muita vontade de acreditar em Deus e pedir-lhe uma justificação plausível ou espetar-lhe um murro na tromba. Mas não acredito em Deus há muitos anos e não é agora que vou acreditar.
Talvez como os gregos eu tenha assimilado a energia da minha mãe…quem dera. Não tenho metade da força dela perante as adversidades, e começo seriamente a pensar que é melhor assim. Não tenho força e aceito isso. Não sou ela. Nem como ela. Nem isso me pode ser exigido. Talvez perceba melhor algumas opções dela porque fiquei num lugar bastante ingrato, presa à vida que ela tinha, presa à vida que eu não quero nem nunca quis. Presa, simplesmente.
Bem vistas as coisas, toda a gente que viva uns anos perde alguém: um amigo, a mãe, o pai, um irmão. Ninguém inteligente e sensível sai incólume de uma perda dessa dimensão. Gostamos das pessoas, isso é que faz de nós verdadeiros seres humanos, na dimensão maior e mais poderosa. O amor. Por isso me intriga tanto…quem somos sem o amor? Uma pessoa sem amor, de auto-estima e pelos outros, é um cadáver de sentimentos, um morto com pernas e braços, um coração batente de falsidade. Essa falta gera a maior parte das atitudes mais negativas que temos, para nós e para os outros. Não falo do politicamente correcto. Muitas pessoas enchem a pança sem nunca terem sabido o que é o amor, na verdadeira acepção da palavra, o deslumbramento afectivo por um amigo, uma viagem, um sonho, um livro, um namorado. Sem nunca fazerem nada pelos outros. Outras pessoas vivem à flor da pele. Como eu. Vivo em permanente angústia, mas também vivo em permanente deslumbramento pela vida. A falta de amor transtorna-me. Sinto-me levada a pensar que muitos seres humanos são monstruosos, maldosos, ou então herméticos: nunca foram trespassados pela paixão, pelo fulgor, pela paz de espírito, pela sabedoria. Isso vê-se à transparência e as pessoas não sabem. Mas num olhar dizem tudo.

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