Sunday, May 14, 2006


As coisas que eu gostava de saber fazer

Shopenhauer tinha razão. O homem é o grande causador da sua angústia, da sua infelicidade. Para ele, a felicidade é a ausência de sofrimento, a supressão da própria angústia, mas como quer sempre mais, está sempre à procura, está sempre só, está sempre descompensado. Em vez de pensarmos naquilo que sabemos fazer – e são inúmeras as coisas que sabemos fazer, contando com as inatas (como respirar, mexer) – se tivermos saúde podemos aprender a fazer praticamente tudo. Podemos aprender línguas diversas, podemos ler mapas, podemos bordar, podemos escalar montanhas, podemos ser intelectuais, podemos inventar. Evidentemente, se levarmos a vida fechados num sítio qualquer a fazer o que não gostamos, o mais provável é nunca fazermos nada do que realmente queremos.
Admiro muito as pessoas que aprendem tudo rapidamente e sabem fazer tudo e mais alguma coisa. Não sei se é um dom se é, afinal de contas, a normalidade, porque passamos a vida a queixarmo-nos e a não tentar aprender coisa nenhuma. Há realmente pessoas com muito jeito (ou atrevimento, como um dia me disseram) para aprender tarefas como cozinhar, dançar, falar línguas, tricotar uma camisola, desenhar, pintar, tocar um instrumento, cantar, contar anedotas. Na realidade, estou a citar tarefas que me sinto totalmente incapaz de fazer – algumas nem me atrevo a tentar – e que levam à tal angústia estúpida que Shopenhauer citava. Ainda por cima sobre a mulher recai aquele estigma de ter de ser boa dona de casa, e ainda bem que cada vez mais mulheres admitem ser uma nódoa na cozinha ou nas limpezas. É o meu caso. Os meus pratos são insípidos e deslavados e a casa está sempre um nojo, porque sou preguiçosa, desarrumada e pouco dada a tarefas caseiras. Ou seja, o contrário que a sociedade reclama que uma mulher deve ser. A minha vontade de ser mãe anda pela estaca zero, e não tenho paciência para os mitos da beleza e do bem vestir. Outra coisa que não sei fazer: vestir-me bem. Às vezes olho para algumas mulheres e invejo-as bastante, não por serem bonitas, elegantes ou bem feitas, mas por terem feito escolhas adequadas no vestir. Não percebo que cores me «assentam» bem, que formas, que calças, por isso aposto no conforto. A mim parece-me lógico. O ideal para mim seria andar como na tropa: sempre igual. Como uma colega da faculdade que só vestia blusas brancas. De vez em quando apetece variar, na verdade, mas sinceramente não me agrada o tempo que se perde a escolher, a procurar, a adquirir.
Também penso muitas vezes que não tenho jeito para nada. Tenho talentos pequenos e invisíveis, que me parecem exactamente iguais aos de toda a gente. Raras vezes me sinto especial. Acho que qualquer pessoa faz o que eu faço muito melhor do que eu. Por razões que desconheço, esperava ter nascido com um cérebro como o do Einstein, com a capacidade de estudar emoções do Freud, com a voz da Aretha Franklin, com a escrita e a visão política de Nadine Gordimer, ou mesmo de conseguir correr como a Rosa Mota. Ou seja, gostava de ter talento, mas um talento de exigência e dedicação. Por isso a Paris Hilton não está incluída na conversa.
O budismo defende uma ideia contrária à que estou a apresentar. O budismo defende que é a anulação deste sentimento egocêntrico que nos faz felizes. Por isso somos tão felizes quando anulamos o pensamento «não sou capaz, mas aquela pessoa é», quando deixamos de invejar para simplesmente respirar o ar que nos rodeia e olhar as flores do campo, como fazia o Caeiro. Estamos demasiado centrados em nós próprios, e isso leva a duas coisas: à infelicidade suprema de nunca encontrarmos caminho nenhum ou actividade alguma que nos satisfaça, ou à felicidade falsa e absurda de acharmos que somos brilhantes, quando estamos muito longe disso.
Talvez o verdadeiro talento seja aprender a viver sem talento nenhum especial. Sermos iguais, sendo diferentes uns dos outros.

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