Tuesday, April 25, 2006


A postura e o perfil

As palavras dependem do contexto em que são utilizadas. Todas elas. Mas postura e perfil são duas palavras cheias de carisma (outra palavra cujo significado depende, em grande parte, do contexto), que, utilizadas no mundo profissional, adquirem vida própria, pernas para andar.
Dentro dos significados que fui aferindo, compreendi que ter perfil significa ter vocação para uma coisa, ter jeito, ter características que nos permitem executar competentemente uma tarefa. Enquanto postura é a atitude perante as coisas, a forma como nos posicionamos no mundo do trabalho, o nosso cariz pessoal emprestado às coisas.
Há profissões em que o perfil é essencial. Um médico, por exemplo. Não é para todos. Em primeiro lugar, tem de ter saber aguentar-se nas canetas quando vê sangue, cortes, pernas partidas, pessoas esventradas, etc. Isso exclui logo metade dos candidatos a medicina. Claro que tem de ter a parte científica completa. O saber é essencial. Mas ter perfil compõe-se de todas as partes: a científica, a técnica, e emocional. A maior parte delas adquire-se, mas o perfil tem a ver com algo invisível. Há mais qualquer coisa não avaliável pelas universidades. Depois a postura é uma outra parte. É aquilo que se decide ser ou parecer.
Não se pode confundir as duas coisas. Quantas vezes aparecem pessoas com imenso perfil para uma tarefa, mas sem postura? E quantas vezes aparecem pessoas cheias de postura (e por causa disso aceites numa entrevista de emprego) que não têm perfil algum? Estou-me a lembrar do professor, sobretudo do professor universitário. Só tem de ter postura e lamber os cus certos (para não dizer piores). É isso que explica que a maior parte dos meus colegas mais inteligentes e competentes não dêem aulas na universidade, mas outros, verdadeiras nódoas científicas e pedagógicas, estão lá de pedra e cal. Isto acontece em todas as profissões.
No outro dia o Baptista Bastos disse no programa do Herman que quem escrevia sem paixão não merecia crédito. E é isso mesmo. Há um perfil para se escrever, mesmo que a postura seja desacreditada por todos. E muitos não têm, nem de longe nem de perto, esse perfil, mas vendem livros como pãezinhos quentes, copiando de uns livros para outros parágrafos inteiros. Quando só há postura, o que resta? O vazio.
Há muitas pessoas a trabalhar sem paixão. Eu própria já o fiz por necessidade. De vez em quando perdia a postura, mas na maior parte das vezes tinha de tê-la, caso contrário era despedida. Mas confesso que é difícil manter a postura em situações cujo objectivo é só ganhar dinheiro, e onde o perfil para executar a tarefa é zero. Profissões de ajuda e de contacto com o próximo exigem perfil e postura. O que faz um psicólogo ou um médico cuja sensibilidade é a mesma de um calhau? Ganha dinheiro a tratar mal as pessoas?
O mundo apela muito ao socialmente correcto, por isso a tendência é aprendermos posturas que nos sejam favoráveis, na vida. A postura dá-nos acesso a um emprego, a um namoro ou casamento, a amigos…mas sem perfil para sermos trabalhadores, para namorarmos ou casarmos ou para termos e mantermos amigos, quem somos, afinal? Sabemos que a postura é importante e aprendêmo-la. Mas fora isso, qual é a nossa graça, enquanto pessoas?
O perfil é essencial, até nas coisas mais simples. Tem a ver com o carácter. Tem a ver com a consciência que temos das coisas. Tem a ver com a forma como fazemos somas e subtracções e divisões na nossa vida, e se o fazemos em função do nosso umbigo, ou contando também com a presença inestimável de quem gostamos e dos que nos envolvem. Tudo conta quando se trata de perfil. Sem isso a postura pouco conta.

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